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O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e o presidente da República, Jair Bolsonaro,
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e o presidente da República, Jair Bolsonaro,| Foto: Isac Nóbrega/Presidência da República

“Não matei ninguém? Ainda não, sem dúvida! Mas não deixei morrer criaturas dignas? Talvez.” (Albert Camus, em A Queda)

Quem acompanha os artigos dessa coluna sabe que evito ao máximo escrever sobre política – ou, pelo menos, sobre a antipolítica de que se alimenta o Brasil há muito tempo. No entanto, às vezes é preciso marcar posição e respirar o ar de independência e liberdade que sempre foi característica deste espaço. E, claro, lembrar aos que me leem que, em 12 de julho de 2018 eu já alertava, aqui mesmo, nesta Gazeta do Povo, que “avançar, recuar ou permanecer como estamos deve ser fruto da reflexão e da avaliação cuidadosas do passado”. E que, “tanto no âmbito pessoal quanto no coletivo, assentarmos nosso olhar sobre o ombro de gigantes, na expressão de Bernardo de Chartres, é fundamental para evitarmos erros e buscarmos acertos sem rupturas desnecessárias. O desejo fáustico de adequarmos a realidade aos nossos desejos, de imanentizarmos o eschaton, de buscarmos na Terra aquilo que só o céu pode nos dar, é ingratidão para com as gerações passadas e irresponsabilidade com as que virão”. Pois bem: eu avisei.

A pretensão – absurda, diga-se – de formar um governo que levaria o Brasil à Verdade – como dito em seu primeiro discurso como candidato – fez Jair Bolsonaro criar em torno de si uma espécie de mitologia em que se colocava como o incorruptível, como alguém capaz de pressionar os correligionários (e os adversários) a segui-lo por conta de sua suposta firmeza de caráter. O discurso emblemático de seu filho zero-três, Eduardo Bolsonaro, no lançamento da candidatura do pai, mostra com perfeição o tom de arrogância e ameaça que permeava o projeto bolsonarista. Com cara de sedutor de bordel, Bananinha – não quer ganhar um apelido, não lute contra ele – aponta para o auditório e diz: “Eu queria tirar uma foto do rosto de cada um dos senhores aqui, pra saber se, em 2019, quando o coro comer pra valer, se vocês vão se deixar seduzir por discurso do Centrão ou se vão se manter firme e forte Bolsonaro”. Ou mesmo o discurso um tanto patético do general Augusto Heleno, no mesmo evento, parodiando o clássico samba de Ary do Cavaco, eternizado por Bezerra da Silva: “se gritar pega Centrão, não fica um, meu irmão”, buscando fazer uma distinção entre os partidos chamados fisiológicos, sem coloração ideológica, mas interessados unicamente no poder e na barganha, e os heróis patriotas – parecendo ignorar que o próprio Bolsonaro sempre foi do Centrão.

A pretensão – absurda, diga-se – de formar um governo que levaria o Brasil à Verdade fez Jair Bolsonaro criar em torno de si uma espécie de mitologia em que se colocava como o incorruptível

Mas o que me trouxe especificamente a esse texto foi a frase dita pelo “presidente” (sim, entre aspas), de que “passamos a acreditar no voto eletrônico”. Mas que coisa, não?! Após fazer um estardalhaço descomunal, por semanas, em torno desse assunto, chegando a afirmar, categoricamente, que “se não tiver voto impresso, não terá eleição”, levando o país a uma grave instabilidade; de repente, sob a alegação que “tem uma portaria lá do presidente do TSE, o Barroso, convidando entidades para participar das eleições, entre elas as nossas, as suas Forças Armadas”, afirma que agora “vai ser confiável” e que esse é um “assunto encerrado”. Tudo isso enquanto faz acordo com o famigerado Valdemar da Costa Neto, condenado no mensalão e de quem, no passado, quis se desvencilhar.

Ou seja, o “presidente” que, durante a campanha, se gabava por não ser do Centrão, mas que agora afirma (e reafirma) que sempre foi do Centrão; que traiu sua promessa de diminuir ministérios e não formá-los por indicação política; que indicou um petista para a PGR, um biógrafo de Dias Toffoli (que agora é seu amigo) para o STF; que afirmou e confirmou – após dizer que o presidente não é maior que seus ministros – sua interferência em ministérios e na Polícia Federal para proteger os seus filhos; e que criou, juntamente com o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, o esquema baseado no tal orçamento secreto para a compra de parlamentares. Enfim, o “presidente” que costuma usar, à exaustão, a passagem bíblica do Evangelho de João, capítulo 8, versículo 32, acaba por provar, em si mesmo, pela via negativa, que a Verdade pode mesmo libertar. Não à toa, muitas personalidades que gravitavam o universo bolsonarista – por convicção ou por mero oportunismo – deixaram de apoiar o governo. Não porque estivessem preocupados com a verdade, mas porque, para todos os efeitos, o governo teria se desfigurado. Até para os padrões de quem não tinha intenções muito altruístas, a coisa passou do limite. Na verdade esse governo deixou de ser o que nunca foi.

A “verdade” a que Bolsonaro se refere é ele mesmo, pois um político que emula um discurso religioso, que fala em Deus o tempo todo, mas que, em seu primeiro pronunciamento após a vitória, tem a desfaçatez de dizer que “durante a nossa caminhada de quatro anos pelo Brasil, uma frase se repetiu muitas vezes: ʻBolsonaro, você é a nossa esperançaʼ” não está pensando, de fato, em Deus. Está pensando em si e crê, de fato, que seu segundo nome é, literalmente, a representação de seu papel no mundo. Tal discurso e postura, notadamente blasfemos, é a traição mais categórica da Boa Nova evangélica.

Tomás de Aquino, em seu estudo sobre o Evangelho de João, diz:

“um discípulo precisa ser estável para perseverar [...]. Mas é muito mais importante saber a verdade, pois esta é a finalidade de um discípulo [...]. E maior ainda é a aquisição da liberdade que o conhecimento da verdade produz naqueles que creem. Assim ele diz, e a verdade o libertará. Neste contexto, libertar não significa libertar-se de algum confinamento, como sugere a língua latina, mas antes ser libertado; e isso vem de três coisas. A verdade dessa doutrina nos libertará do erro da falsidade: ʻPorque a minha boca proferirá a verdade, e os meus lábios abominam a impiedadeʼ (Provérbios 8,7). A verdade da graça nos libertará da escravidão do pecado: ʻPorque a lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morteʼ (Romanos 8,2). E a verdade da eternidade, em Cristo Jesus, nos libertará da corrupção: ʻNa esperança de que também a mesma criatura será libertada da servidão da corrupçãoʼ (Romanos 8,21).”

Daí a pergunta é: o que isso tem a ver com “vamos acabar com o cocô do Brasil: comunistas e corruptos”? O que a verdade transcendente do Evangelho de Cristo tem a ver com um projeto político imanente de um governo messiânico? O que toda controvérsia e descaso em relação à gravíssima pandemia que assolou o mundo tem a ver com a liberdade que nos oferece o Filho de Deus (João 8,36)? Pois é, nada.

O “presidente” que costuma usar, à exaustão, a passagem bíblica do Evangelho de João, capítulo 8, versículo 32, acaba por provar, em si mesmo, pela via negativa, que a Verdade pode mesmo libertar

O “presidente” incapaz de cumprir uma mísera promessa de campanha está nu diante de um Congresso que o tem nas mãos, diante da sanha voraz do Sistema que conhece muito bem, pois sempre fez parte dele. Quem sonhou com novidade foi enganado; quem pensou que seria diferente errou; quem confiou nas palavras doces do discurso da posse – “Aproveito este momento solene e convoco cada um dos congressistas para me ajudarem na missão de restaurar e de reerguer nossa pátria, libertando-a, definitivamente, do jugo da corrupção, da criminalidade, da irresponsabilidade econômica e da submissão ideológica” – foi tolo diante do histórico absolutamente inócuo e polêmico do deputado que, por 28 anos, não fez nada que prestasse pelo Brasil, a não ser ter se tornado um personagem de si mesmo por meio das mitadas de internet.

No entanto alguns, por incrível que pareça, diante da realidade incontestável, continuarão tergiversando: “você prefere o PT?”. Só lamento.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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