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Cena do filme "O Pequeno Príncipe", de 1974. Foto: Paramount Pictures/Reprodução
Cena do filme "O Pequeno Príncipe", de 1974. Foto: Paramount Pictures/Reprodução| Foto:

“Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças, de modo algum entrareis no Reino dos Céus”. (Mateus 18,03)

Mais de quatrocentos anos separam dois príncipes. Um, “nascido” em 1532 – pelas mãos de um filósofo renascentista que, até hoje, mantém certo mistério em torno de sua figura –, ainda serve de inspiração para políticos e líderes de toda sorte. O outro veio ao mundo em 1943, em meio à crudelíssima Segunda Guerra Mundial, através da prodigiosa imaginação do aristocrata francês que, nutrindo desde a infância o desejo de voar, tornou-se piloto pioneiro da lendária companhia Aéropostale e fez da aviação matéria-prima de suas aventuras literárias. Falo de Nicolau Maquiavel (1469-1527) e Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), respectivamente, autores de O Príncipe e O Pequeno Príncipe.

Maquiavel nasceu e viveu em Florença e é reconhecido como fundador da ciência política moderna, cuja obra se fundamenta no chamado realismo político. Conforme analisa Leo Strauss, em seu Uma introdução à filosofia política (É Realizações), para Maquiavel havia “algo de profundamente errado com uma abordagem da política que culmina em uma utopia, na descrição de um melhor regime cuja atualização é altamente improvável”, Por isso, recomenda que “deixemos, portanto, de nos orientar pela virtude, o objetivo mais alto que uma sociedade pode escolher; passemos a nos orientar pelos objetivos que são atualmente perseguidos por todas as sociedades”. O que quer dizer isso? Basicamente que a virtude de um príncipe (um governante, um líder) não deve ser fundamentada em princípios morais, mas tão somente na prática necessária para se alcançar os objetivos. Deve-se, antes de tudo, abandonar a fortuna (sorte, destino) e assumir a virtú (virtude prática). Portanto, como diz Maquiavel, “é preciso que o príncipe aprenda, caso queira manter-se no poder, a não ser bom e a valer-se disso segundo a necessidade”.

O filósofo florentino diz mais: “Todos concordam quanto é louvável que um príncipe mantenha sua palavra e viva com integridade, não com astúcia; todavia, em nossa época vê-se por experiência que os príncipes que realizaram grandes feitos deram pouca importância à palavra empenhada e souberam envolver com astúcia as mentes dos homens, superando por fim aqueles que se alicerçaram na sinceridade”. Tais princípios, como diz Olavo de Carvalho em seu ensaio Maquiavel ou a confusão demoníaca (Vide Editorial), são, na verdade, não fruto do realismo político do filósofo florentino, mas de um “realismo idealizado, recortado seletivamente segundo o molde mítico do Príncipe: o governante que, separado das condições gerais da vida humana e saltando magicamente sobre alguns milênios de retaguarda histórica, reina onipotente sobre uma Itália abstrata construída especialmente para ele por um filósofo hipnotizado pela visão mítica da antiga Roma”. Maquiavel é, nesse sentido, um pseudo-profeta, um mestre da mentira que se desmascarou a si mesmo quando confessou a seu amigo, o embaixador Francesco Vettori: “Não creio em nada do que digo e não digo nada que creio – e, quando descubro algum miúdo fragmento da verdade, trato de escondê-lo sob tamanha montanha de mentiras que se torna impossível encontrá-lo”.

Esse é o príncipe que ainda serve de modelo a governantes em todo o mundo. É só olharmos a história para vermos o quão maquiavélicos foram um sem número de reis, rainhas, ministros, presidentes e parlamentares de todas as estirpes. Mas não precisamos ir tão longe; é só olharmos o Brasil de hoje, quatro séculos após a publicação d’O Príncipe, para ainda vermos quão sujo é o jogo no qual atuam os poderosos, bem como os aspirantes a tal posto. Desde o mais reles militante de internet até os candidatos a cargos eletivos, passando por gerentes de empresas privadas, funcionários públicos etc.. A tentação é imensa, e subjuga qualquer um que seja fraco o suficiente para se deixar seduzir pelas facilidades que podem lhe garantir algum prestígio.

E me parece ser contra esses tais que se insurgiu um despretensioso principezinho.

Antoine Marie Jean-Baptiste Roger, ou Antoine de Saint-Exupéry foi um sonhador. Nascido em Lyon e criado em meio aos castelos de Saint-Maurice-de-Rémens e La Mole, teve uma infância bastante feliz e lúdica, embora tenha ficado órfão de pai aos quatro anos de idade. Aos doze, ignorando os protestos de sua mãe para que se mantivesse longe do campo de experimento aeronáutico Bellièvre, que ficava nas proximidades de Lyon, mais precisamente em Ambérieu, Saint-Exupéry voa pela primeira vez – tem seu “batismo do ar” – num avião pilotado por Gabriel Wroblewski. Posteriormente, aos vinte e um anos, consegue seu brevê de aviador civil e só parou de voar aos quarenta e quatro anos, ao cair no Mar Mediterrâneo, abatido durante um voo de reconhecimento na Segunda Guerra Mundial.

Na década de 1920, Saint-Exupéry trabalhou como correio aéreo na Aéropostale, fazendo a rota Toulouse-Dacar. Também fez voos para a América do Sul. Há um interessante documentário, no Youtube, que conta a história de Saint-Exupéry e um pescador de Santa Catarina – a cidade brasileira foi rota do correio aéreo.

O Pequeno Príncipe foi escrito em seu autoexílio em Nova Iorque, nos EUA, no período de 1941 a 1943. A obra, carregada de um sentimento sutil de luto – devido a tristeza que o autor sentia por seu país, subjugado na guerra pela Alemanha – tem camadas de sentido que fazem com que tanto crianças quanto adultos sejam por ela atraídos. Conforme nos diz sua biógrafa, Stacy Schiff: “O livro foi proposto como uma espécie de terapia; Saint-Exupéry retornou a Nova York em junho de 1942 sem nenhum projeto imediato. Mas uma vez Elizabeth Reynal [esposa de seu editor nos EUA] veio em seu resgate. Nas margens dos manuscritos de Piloto de Guerra dançava a pequena figura que Saint-Exupéry desenhava – em cartas, páginas de dedicatória, em meio a equações matemáticas, sobre toalhas de mesa de restaurante – desde meados da década de 1950. Bem atenta ao desespero do autor, Elizabeth perguntou se ele não poderia se distrair escrevendo uma história infantil sobre seu “petit bonhomme” [rapazinho]”.

O livro narra a história de um aviador que, obrigado a fazer um pouso forçado no deserto, dá de cara com um principezinho que havia deixado seu asteroide (B 612), por um desentendimento com sua rosa, e decidido visitar outros asteroides “para procurar uma ocupação e se instruir”. Após algumas reflexões solitárias do próprio aviador, o encontro entre os dois tem um início um tanto conturbado, pois o principezinho estava obcecado pelo desenho de um carneiro, mas sem explicar o por quê; também, diz o aviador, “me fazia milhares de perguntas, não parecia sequer escutar as minhas. Palavras pronunciadas ao acaso é que foram, pouco a pouco, revelando tudo”. No fim das contas, acabaram por se entender. E após uma série de descrições a respeito de seu pequeno planeta – que tinha uma rosa, três vulcões e as temíveis sementes de baobá –, o principezinho passa a falar de suas aventuras anteriores à sua chegada na Terra.

Nos próximo seis capítulos, o principezinho narra suas visitas a outros pequenos planetas, habitados, respectivamente: por um rei que, apesar de não ter súditos, julga ser uma monarca universal; um vaidoso igualmente solitário, para quem “os outros homens são sempre admiradores”; um bêbado que, num círculo vicioso – “eu bebo […] para esquecer […] que eu tenho vergonha […] de beber!” – destrói-se, intemperante; um empresário muito ocupado que gaba-se por ser “dono” das estrelas; um acendedor de lampiões que repete sua tarefa infinitamente, mas cujo trabalho “ao menos tem um sentido”; e, por fim, um geógrafo que não conhece nenhum lugar pois não era explorador. Após cada uma dessas visitas, sua reflexão é sempre a mesma: “As pessoas grandes são muito esquisitas [decididamente bizarras e extraordinárias]”.

O ápice da história é seu encontro com a raposa, já na Terra, onde Saint-Exupéry constrói um dos mais belos diálogos da literatura mundial. As célebres e amplamente difundidas frases – que, descontextualizadas, soam piegas –  “só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos” e “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas” – exalam toda a sublimidade da amizade, aquele amor que, como diz C. S. Lewis, para os antigos era “o mais feliz e o mais plenamente humano de todos os amores – coroa da vida e escola da virtude”; mas que o mundo moderno ignora.

Aqueles que dizem que a frase “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas” é uma espécie de transferência de responsabilidade, pois cada um é responsável por suas próprias expectativas e jamais devem transferir suas frustrações para o outro, simplesmente não sabem o que estão dizendo. Erram ainda dizendo que “cativar” é uma atitude espontânea, e que não podemos ser responsáveis por um sentimento que não fomentamos. Mas a história mostra exatamente o inverso! Pois o que diz a raposa? “Cativar é criar laços”, e então combina com o principezinho um processo que durará algum tempo. Não é espontâneo, mas fruto da convivência, da intimidade. De novo, Lewis:

“Numa Amizade perfeita, esse Amor Apreciativo é muitas vezes, na minha opinião, tão grande e tão solidamente alicerçado que cada membro do círculo se sente, em seu íntimo, humilde diante dos demais. Às vezes ele se pergunta o que está fazendo ali, entre pessoas melhores que ele. Estar na companhia deles é uma sorte que não merece”.

Não se trata de transferência de responsabilidade ou mesmo de criar expectativa, mas de amor, e o amor “não procura seu próprio interesse”, como diz o apóstolo Paulo. E é nesse sentido que o principezinho de Saint-Exupéry se opõe ao príncipe maquiavélico. Para o monarca criado pelo filósofo florentino, “é bem mais seguro ser temido que amado”; mas o príncipe de Saint-Exupéry, mesmo diante da serpente e sentindo medo, não se desespera, pois confia que maior é o amor – e através dele podemos contemplar as estrelas e nelas vermos o Príncipe da Paz.

“Eis aí um mistério bem grande. Para vocês, que amam também o principezinho, como para mim, todo o universo muda de sentido, se num lugar, que não sabemos onde, um carneiro, que não conhecemos, comeu ou não uma rosa… Olhem o céu. Perguntem: Terá ou não terá o carneiro comido a flor? E verão como tudo fica diferente… E nenhuma pessoa grande jamais compreenderá que isso tenha tanta importância”.

Que príncipe e que princípios queres para seus modelos em 2019? A escolha é tua.

Feliz Ano Novo!

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