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Jeffrey Wright, que interpreta Monk, em cena de Ficção Americana.
Jeffrey Wright, que interpreta Monk, em cena de Ficção Americana.| Foto: Divulgação

“A arte negra pode, razoavelmente, ser uma moda passageira para outros; para nós ela deve ser uma religião. A beleza, porém, é o seu melhor sacerdote e os salmos serão mais eficazes que os sermões.” (Alain Locke, The New Negro Aesthetics)

O leitor deve saber que sou professor de Filosofia e tenho mestrado em Ciências da Religião. Quando decidi trocar a área de tecnologia pelas humanidades, minha intenção era justamente tratar de temas relacionados à educação de maneira geral e, mais especificamente, de filosofia. Por isso minha monografia da graduação em Filosofia foi sobre a Consciência do Fundamento em Platão, Aristóteles e Eric Voegelin, um tema eminentemente filosófico; já em meu mestrado, consegui unir educação, literatura, filosofia e teologia numa dissertação sobre a Trilogia Cósmica de C.S. Lewis. Ou seja, não havia assunto mais distante de meus interesses que o racismo.

O que ocorreu é que, diante de um problema mais urgente – a completa esquizofrenia do debate sobre racismo no Brasil – e da completa ausência de um contraponto sólido sobre o assunto, lembrei-me das palavras do rabino Hilel, imortalizadas por Viktor Frankl: “se não eu, quem? Se não agora, quando?”; e me vi na obrigação de, diante não só de uma intuição que a própria experiência me dera, mas também de algum conhecimento prévio que tinha do assunto – e que ia de encontro à radicalização ideológica atual –, mergulhar na compreensão das contraditórias relações raciais brasileiras, ainda tão marcadas pela memória da escravidão e por um imaginário de subalternização do negro tão arraigado a ponto de, para muitos, ser imperceptível.

Ficção Americana é uma comédia dramática mordaz sobre o quanto as pessoas negras têm o seu talento estigmatizado e são usadas para justificar o que pessoas não negras e aparentemente conscientes pensam sobre elas e seus problemas

O tema, tão candente, acabou por me dar projeção, mas não propriamente como eu desejava. Acabei por me tornar um “negro de direita” (epíteto que, como já disse, rejeito) que fala contra os movimentos negros – que, na atualidade, são fundamental e majoritariamente de esquerda. A partir daí, duas coisas ocorreram: 1. fiquei estigmatizado e quase condenado a falar somente sobre isso (exceto aqui, nessa coluna), e 2. parte da direita passou a usar o que eu dizia para menosprezar (no sentido exato do termo, de prezar menos) o problema, como se ele não existisse, como se falar sobre racismo fosse mimimi ou assunto de esquerdista, e tivessem encontrado um “negro de direita” para confirmar suas posições. Aliás, percebi até que muitos me abraçaram a fim de dar vazão, inclusive, a preconceitos e justificar atrocidades.

Já falei sobre isso em outras ocasiões, e talvez por essa razão tantas pessoas tenham vindo me perguntar se eu havia assistido ao excelente Ficção Americana, de Cord Jefferson (roteirista da ótima série The Good Place, sobre a qual já escrevi nesta Gazeta do Povo), uma comédia dramática mordaz sobre o quanto as pessoas negras têm o seu talento estigmatizado e são usadas para justificar o que pessoas não negras e aparentemente conscientes pensam sobre elas e seus problemas. O progressista branco (white liberal), tão furiosamente criticado por Malcolm X e ridicularizado em séries como a excepcional Atlanta, é o principal alvo de Jefferson e mostra o quanto a tentativa de limpar sua barra pode, ao fim e ao cabo, mais prejudicar do que ajudar.

Thelonious Ellison – interpretado fabulosamente por Jeffrey Whight –, apelidado de “Monk” em referência ao grande pianista de jazz, é um culto professor universitário e talentoso escritor cuja carreira está em baixa porque o público parece mais interessado em consumir lixo ideológico e mal escrito do que obras de qualidade como as de Monk. Não só o público, mas principalmente as editoras estão mais interessadas em publicar obras que sejam voltadas para a militância pura e simples, para as discussões identitárias e toda essa parafernália ideológica que, pela polêmica e pelo potencial de jogar na cara de uma sociedade branca culpada suas mazelas, acaba por fazer sucesso. Inclusive, a antagonista de Monk no filme, Sintara Golden (Issa Rae), é uma espécie de Djamila Ribeiro com um discurso, como dizem, “lacrador” e superficial, cheio de estereótipos, mas que faz o maior sucesso.

Arthur (John Ortiz) é o agente responsável por tentar vender as obras de Monk às editoras, e o fracasso de suas iniciativas se mostra logo no início do filme, num diálogo que resume bem a situação:

Monk: Alguma notícia?
Arthur: Patrick, da Echo, está morrendo. Mas quem se importa? Ele é um velho alcoólatra.
Monk: O que é aquilo? Nove agora?
Arthur: Ele diz: “Este livro é primorosamente elaborado, com personagens totalmente desenvolvidos e linguagem rica, mas fica-se perdido para entender o que é essa reformulação de Os Persas, de Ésquilo, tem a ver com a experiência afro-americana?”
Monk: Aí está, aí está.
Arthur: Eles querem um livro negro.
Monk: Eles têm um livro negro. Eu sou negro e é meu livro.
Arthur: Você sabe o que eu quero dizer.
Monk: Você quer dizer que eles querem que eu escreva sobre um policial matando um adolescente negro, ou uma mãe solteira em Dorchester criando cinco filhos...
Arthur: Dorchester está bem branca agora. Mas sim.
Monk: Jesus Cristo. Você sabe, eu nem acredito realmente em raça.
Arthur: Sim. O problema é que todo mundo faz isso.

A verdade é que Monk se enche disso e resolve, de pirraça, escrever, sob pseudônimo, um livro cheio dos clichês raciais mais óbvios, violência e discurso sentimentalista ideológico; e faz de seu alter ego um fugitivo e procurado pela polícia. Pede ao seu agente que envie o livro a uma editora para esfregar-lhes na cara a sua hipocrisia. O problema é que eles amam o livro e oferecem uma bolada de adiantamento para publicá-lo. Ante a indignação de Monk, Arthur oferece uma metáfora etílica para convencê-lo, coloca três garrafas de uísque Johnnie Walker – uma Red, uma Black e uma Blue – na mesa e diz:

“Você vê a metáfora? Todos são feitos pela mesma empresa. O Vermelho é uma merda, o Preto é menos merda, o Azul é bom. Mas menos pessoas compram o Azul, porque é caro. E no fim das contas, a maioria das pessoas só quer ficar bêbada. Durante a maior parte de sua carreira, seus livros foram ʻazuisʼ; são bons, complexos. Mas não são populares, porque a maioria das pessoas quer algo fácil. Agora, pela primeira vez, você escreveu um Livro Vermelho. É simples, lascivo. Não é boa literatura, mas satisfaz um desejo. E isso é valioso. O que estou tentando ilustrar é que, só porque você faz Red não significa que você também não possa fazer Blue. Você pode fazer tudo. Como Johnnie Walker. Na verdade, você derrotou Johnnie Walker, porque você nem precisa colocar seu nome verdadeiro nele.”

Monk tem de assumir um papel que ele odeia, tosco, criado para fazer troça, mas que a demanda de um mundo estúpido, que deseja reduzir a tudo e a todos à unidimensionalidade da sua própria estupidez, deseja explorar

Daí em diante, em meio a questões pessoais e familiares, Monk tem de assumir um papel que ele odeia, tosco, criado para fazer troça, mas que a demanda de um mundo estúpido, que deseja reduzir a tudo e a todos à unidimensionalidade da sua própria estupidez, deseja explorar e onde deseja escorar a sua miséria moral. Um mundo sem contradições, banal, estereotipado, eivado de determinismos que impedem as pessoas de serem elas próprias, mas são forçadas a serem personagens num grande teatro de vieses de confirmação que se retroalimenta e emburrece. E qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.

Guardadas as devidas proporções, posso dizer que, por analogia, me sinto um pouco como Monk. Não quero parecer apelativo ao leitor que tão generosamente me acompanha e lê nessa coluna artigos dos temas mais variados; mas não posso negar que, na maior parte dos casos, sinto que sou mais levado a sério quando falo sobre racismo do que quando falo sobre qualquer outro assunto; não só porque o tema é polêmico em si mesmo, mas pelos dois motivos que expus acima e dos quais ainda não consegui me livrar por completo. Meu desejo é, um dia, poder voltar a estudar Platão, Eric Voegelin e C.S. Lewis tranquilamente, produzir coisas sobre esses assuntos e ser respeitado como um professor de Filosofia que sou, e não como um mero “negro de direita”.

Por fim, entendi o porquê de as pessoas associarem o filme a mim, lembrarem de mim ao vê-lo; e o caro leitor que me acompanha, se viu o filme, também entenderá. Se não viu, veja, é muito divertido e interessante – e está concorrendo a cinco Oscar: Melhor Filme, Melhor Trilha Sonora Original, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Ator (Jeffrey Wright) e Melhor Ator Coadjuvante (Sterling K. Brown).

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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