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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Musical

“Hamilton”: 10 anos de uma revolução

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Cena de "Hamilton", a versão filmada do musical da Broaday. Lin-Manuel Miranda (de braço erguido) interpreta Alexander Hamilton. (Foto: Divulgação/Disney+)

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“A primeira tarefa de um governo sábio é formar uma aristocracia natural, composta dos homens mais capazes e virtuosos, que sejam verdadeiramente os guardiões do povo.” (Alexander Hamilton)

“Deixe-me dizer o que eu gostaria de ter sabido / Quando eu era jovem e sonhava com a glória / Você não tem controle / Quem vive, quem morre / Quem conta sua história / Eu sei que podemos vencer / Eu sei que a grandeza está em você / Mas lembre-se, de agora em diante / A história tem seus / Olhos em você.” (Hamilton)

Em 6 de agosto de 2015, o Richard Rodgers Theatre, na Broadway, testemunhou uma revolução semelhante àquela produzida em 4 de julho de 1776, quando da assinatura de Declaração de Independência dos Estados Unidos da América. Óbvio que exagero, mas não muito. O que os espectadores presenciaram naquela noite foi uma verdadeira explosão em forma de arte, que uniu o tradicional e o inovador de forma nunca antes vista e renovou o interesse não só pela vida de um dos principais Founding Fathers, mas pelo valor da determinação, do patrotismo e da arte como forma de manter viva a alma de um país.

Hamilton é um musical composto pelo ator, cantor, dramaturgo e produtor nova-iorquino Lin-Manuel Miranda. Sua ideia inicial, de montar um musical contando a história de Alexander Hamilton – herói da Guerra da Independência, primeiro secretário do Tesouro dos EUA, autor da maioria dos artigos de O Federalista etc. – se consolidou enquanto lia a biografia escrita pelo vencedor do Pulitzer Ron Chernow, numa viagem de férias ao México. O jornalista Jeremy McCarter, coautor do livro Hamilton: The Revolution – que conta a trajetória de sucesso do musical, traz o libretto com anotações de Miranda e muitas fotos, evidenciando a revolução cultural produzida pela obra –, corrige um erro cronológico sobre o insight de Miranda, dizendo que “nossa conversa, tarde da noite, sobre uma versão hip hop da vida de Hamilton aconteceu uma semana antes de ele começar aquela viagem”, contrariando a história de que ele teve a ideia enquanto estava no México.

Lin-Manuel Miranda conseguiu contar uma história tão arraigada no imaginário sobre a fundação da EUA, ocorrida há quase três séculos, por meio de um elemento cultural originário dos negros: o hip hop

A grande inovação de Hamilton é exatamente o modo como o talentosíssimo Lin-Manuel Miranda conseguiu contar uma história tão arraigada no imaginário sobre a fundação da EUA, ocorrida há quase três séculos, carregada de simbolismos de uma América escravista, na qual pessoas negras não tinham qualquer relevância, por meio de um elemento cultural originário dos negros: o hip hop. Escalando atrizes e atores negros para representar personagens historicamente brancos e misturando gêneros de modo genial.

Mas o criador não fez isso por identitarismo fútil ou retaliação militante. Ele disse ao New York Times: “Nosso elenco se parece com a América de hoje, e isso certamente é intencional [...]. É uma maneira de te puxar para dentro da história e permitir que você deixe qualquer bagagem cultural que tenha sobre os Pais Fundadores do lado de fora [...]. Esta é a história da América de então, contada pela América de hoje”. E, ao Hollywood Reporter, ele detalha:

“Eu sempre tive em mente o palco para a história da vida de Hamilton, mas comecei com a ideia de um álbum conceitual, do mesmo modo que Evita e Jesus Cristo Superstar, de Andrew Lloyd Webber, foram álbuns antes de se tornarem musicais. E construí esta partitura fazendo um elenco dos meus artistas favoritos em sonho. Sempre imaginei George Washington como uma mistura entre Common e John Legend (uma descrição bastante boa de Christopher Jackson, na verdade, que interpreta nosso primeiro presidente); Hercules Mulligan era Busta Rhymes; e Hamilton foi modelado a partir dos meus heróis favoritos da rima polissilábica: Rakim, Big Pun e Eminem. Em Hamilton, estamos contando as histórias de homens brancos, antigos e mortos, mas estamos usando atores de cor, e isso torna a história mais imediata e mais acessível a um público contemporâneo. Você não afasta o público colocando um ator de cor em um papel que você normalmente pensaria como caucasiano por padrão. Não – você empolga as pessoas e as atrai para dentro da história.”

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No musical não há qualquer de tentativa de contar a história de Alexander Hamilton, George Washington ou qualquer outro personagem da época com as lentes da história crítica. Nem mesmo sobre o fato de Hamilton ou a família Schuyler (de sua esposa Elizabeth), terem sido senhores de escravos. Não que uma crítica não possa ser feita a esse respeito, mas, quando feita, quase nunca é contextualizada; sempre vem revestida da perspectiva da vitimização pós-moderna.

Hamilton é visto pelo que foi – e assim dizem os versos iniciais do musical: “Como um bastardo, órfão, filho / de uma prostituta e um / escocês, jogado no meio de um lugar esquecido / no Caribe pela providência, empobrecido, / na miséria, / cresce para se tornar um herói e um estudioso? / O Pai Fundador de dez dólares, sem um pai / chegou muito mais longe trabalhando muito mais, / Sendo um pouco mais inteligente / Sendo um autodidata”. Ron Chernow, em sua biografia, diz:

Poucas figuras na história americana despertaram tanto amor ou antipatia viscerais como Alexander Hamilton. Ainda hoje, ele parece preso em um tosco cartum histórico que contrapõe a ʻdemocracia jeffersonianaʼ à ʻaristocracia hamiltonianaʼ. Para Jefferson e seus seguidores, encantados com a visão de um Éden agrário, Hamilton era o Mefistófeles americano, o defensor de inventos diabólicos como bancos, fábricas e bolsas de valores. Eles o demonizaram como um peão submisso à Coroa britânica, um monarquista disfarçado, um criador de intrigas maquiavélico, um pretenso César. Noah Webster declarou que ʻa ambição, o orgulho e a prepotência insuportável de Hamiltonʼ o haviam destinado ʻa ser o gênio do mal deste paísʼ […] Entretanto, vários comentaristas eminentes fizeram eco à queixa de Eliza Hamilton: não se fez justiça a seu Hamilton. Ele não foi objeto de biografias deslumbrantes em vários volumes, como as que contribuíram para a fama de outros pais fundadores. Lorde Bryce, o estadista britânico, apontou Hamilton como o único fundador a não receber da posteridade o devido louvor. Em The American Commonwealth , Bryce escreveu: ʻNão há como registrar o desaparecimento dessa figura brilhante, para os europeus a mais interessante na história inicial da república, sem observar que seus compatriotas parecem não ter nunca, quer em sua vida, quer mais tarde, reconhecido devidamente seus esplêndidos donsʼ.”

O que Lin-Manuel Miranda nos conta é uma história de superação, de inteligência, garra, estratégia; cheia de acertos e de erros, que, mais uma vez, é transbordante do famoso espírito do American Dream. Como disse Jeremy McCarter, refletindo sobre a primeira apresentação da primeira música do musical, realizada por Lin-Manuel Miranda na Casa Branca, em 2009:

“Naquela noite, Lin reapresentou às pessoas o garoto pobre do Caribe que tornou o país rico e forte, um imigrante que veio para cá para construir uma vida e acabou ajudando a construir a nação. Ele é o protótipo para milhões de homens e mulheres que o seguiram e continuam a chegar até hoje. Você pode pesquisar fatos e números que demonstram a vasta e crescente importância dos imigrantes para a nossa vida nacional: que 13% da população é estrangeira, o que está perto de um recorde histórico; que um dia, em breve, não haverá mais raças majoritárias e minoritárias, apenas uma vibrante mistura de cores.”

Um parênteses para mencionar que aqui mesmo, no Brasil, tivemos figuras tão importantes, geniais e dignas de biografias, musicais e cinebiografias que nos infundiriam o orgulho e o amor por nossa história. José Bonifácio, Antônio Pereira Rebouças (e seu filho André), Rui Barbosa, Theodoro Sampaio e tantos outros. Mas o empedernido espírito progressista dos magnatas de nosso audiovisual não consegue se livrar do monotema “ditadura-e-crítica-social”.

No musical não há qualquer de tentativa de contar a história de Alexander Hamilton, George Washington ou qualquer outro personagem da época com as lentes da história crítica

Não sou capaz de colocar em palavras o que senti na primeira vez que assisti a Hamilton – não na Broadway, infelizmente, mas no streaming Disney+, onde está disponível. Foi um susto, porque eu não sabia exatamente o que me aguardava. Eu sabia que era bom, pois alguém havia me dito, mas sem detalhar que era um musical todo baseado em hip hop, com os cantores – com exceção de Jonathan Groff, da excelente série Mindhunter, que faz um rei Jorge III, da Inglaterra, à la Elton John –, rimando lindamente os versos compostos por Lin-Manuel Miranda e contando aquela história fascinante daquele homem fascinante, a trajetória de sua vida e de sua trágica morte, assassinado por seu rival político, Aaron Burr, num duelo.

Ainda hoje, mesmo após ver e ouvir tantas vezes esse musical, quando assisto a Renée Elise Goldsberry, como Angelica Schuyler, fazendo um emocionante speed rap na canção Satisfied, fico atônito. A qualidade do texto, a entrega das atrizes, dos atores, dos músicos, do balé/coro, é tudo muito impressionante. Como disse McCarter, Lin-Manuel Miranda, através de Hamilton, “conta a história de duas revoluções. Há a Revolução Americana do século 18, que ganha vida no libreto de Lin [...]; E há também a revolução do próprio espetáculo: um musical que muda o modo como a Broadway soa, que altera quem tem o direito de contar a história da nossa fundação, que nos permite vislumbrar a nova América, mais diversa, que se aproxima de nós”.

Recomendo, a quem não conhece a história, que a pesquise antes para conseguir acompanhar melhor o espetáculo, sem perder nenhum aspecto dessa obra de arte moderna e original, que me lembrou a famosa frase de John Ruskin: “Grandes nações escrevem suas autobiografias em três manuscritos: o livro de seus feitos, o livro de suas palavras e o livro de sua arte. Nenhum desses livros pode ser compreendido a menos que leiamos os outros dois, mas, dos três, o único confiável é o último”.

Em comemoração aos dez anos da estreia, a Disney decidiu levar Hamilton para as telonas, e o musical será exibido nos cinemas em setembro. Infelizmente ainda não temos data para o Brasil, mas espero que olhem para nós, aqui, pobres sancionados e reféns de uma máquina política e judiciária insana. Pelo menos seria uma oportunidade, àqueles que não podem ir à Broadway, de terem uma experiência diferenciada de imagem e som da obra-prima de Lin-Manuel Miranda.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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