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André Rebouças, engenheiro, professor e abolicionista.
André Rebouças, engenheiro, professor e abolicionista.| Foto: Wikimedia Commons

“Por que o Negro Africano ri, canta e dança sempre?!... Trajado de luto perpetuo e eterno: coberto de preto incrustado na  própria pele!!... Por que o Negro Africano ri, canta e dança sempre?! Carregando pedra áspera (...) dura, (...) ferro pesado e frio, ou carvão de pedra sujo e sufocante!!!... Por que o negro Africano ri, canta e dança sempre?!!” (André Rebouças)

Nosso breve biografado de hoje é, para mim, o maior brasileiro de todos os tempos. Ponto. E tenho orgulho de, finalmente, poder trazê-lo a esta coluna. Simbolicamente, é aquele que representa tudo o que o Brasil deveria ser e o modelo de cidadão em quem deveríamos nos espelhar. Sua vida foi uma verdadeira saga de amor pelo Brasil; seu martírio, a morte da possibilidade de sermos um país.

André Pinto Rebouças nasceu em 13 de janeiro de 1838, em Cachoeira, na Bahia, filho do advogado e político Antônio Pereira Rebouças – cuja trajetória extraordinária já foi relatada aqui, nesta Gazeta do Povo – e de Carolina Pinto Rebouças. Nasceu muito doente “de bexigas” (varíola), e seus pais acharam que o bebê não resistiria. Junto com seu irmão Antônio, foram os primeiros engenheiros negros do Brasil.

Foi um empresário incansável e dedicado ao progresso do país, e, certamente, a figura mais importante do movimento abolicionista brasileiro. Nada é falso em Rebouças, tudo exala uma sinceridade e um devotamento impressionantes – coisas que certamente herdou de seu pai. Nunca desperdiçou uma oportunidade; e, quando não as encontrava, construía ele mesmo – como um bom engenheiro também do pensamento –, abrindo espaços e oportunidades onde não havia. Jamais se portava como uma vítima diante das muitas adversidades; seu olhar altivo, de quem não compreendia como as pessoas poderiam ser tão mesquinhas, lhe faziam suplantar tudo e continuar.

André Rebouças é o maior brasileiro de todos os tempos. Ponto. Simbolicamente, é aquele que representa tudo o que o Brasil deveria ser e o modelo de cidadão em quem deveríamos nos espelhar

A título de curiosidade, a importância dos irmãos Rebouças pode ser vista nas homenagens que receberam ao longo do tempo. Alguns exemplos nos bastam: há, em São Paulo, uma importante avenida que homenageia André Rebouças (a Avenida Rebouças, na zona sul da capital); no Rio há um túnel que homenageia os irmãos; no Paraná há uma cidade com o nome Rebouças, em homenagem a Antônio. Em Curitiba, um bairro e uma rua também os homenageiam. Antônio, particularmente, teve uma atividade importantíssima na cidade, no projeto e construção da ferrovia Curitiba-Paranaguá.

Sua vida acadêmica foi assaz interessante, e se inicia em 1842, quando a família se muda para o Rio e eles são matriculados no Colégio Valdetaro. Em 1849, vão para o Colégio Kopke, onde, curiosamente, o imperador dom Pedro II examina André em Aritmética, em 1850 – fato relembrado pelo próprio imperador a André e registrado em seu Diário. Aos 10 anos, já traduz as Elegias, de Ovídio, diretamente do latim. Em 1852 termina, no Colégio Marinho, os estudos de Latim, Grego, Geografia e Inglês. Aos 16 anos, em 1854, passa em quinto lugar (entre 114 alunos) para o curso de Engenharia da Escola Militar (atual Academia Militar das Agulhas Negras, Aman). No ano seguinte, sem deixar de estudar, serve ao Exército. Suas disciplinas preferidas eram Matemática, Astronomia, Botânica e Zoologia, das quais, futuramente, se tornaria professor destacado.

Formam-se, ele e Antônio, em Engenharia, em 1860, com excelentes notas, e pedem subsídio (como mandava o regulamento) para estudar na Europa. Têm o pedido negado. Em carta ao amigo Visconde de Taunay, escrita em 7 de abril de 1895, atribui a negação ao “preconceito de cor”. Seu pai disse, à época: “venderei meus livros, mas os meninos vão terminar a educação na Europa”.

Vão à Europa, custeados pelo pai, que passa a viver modestissimamente. O destino: Itália; depois, Inglaterra. Estudam vigorosamente as edificações europeias, na viagem que dura um ano e sete meses. Pelo mérito de sua inteligência e alguns contatos brasileiros do pai na Europa, conseguem excelentes oportunidades de estudo. Retornam em 1862 e, em 1863, são designados para a primeira tarefa como engenheiros: inspecionar fortalezas militares no Sul do país. É também em 1863 que os irmãos se separam pela primeira vez (André relembra esse fato com tristeza em seu diário).

No fim de 1864, inicia a Guerra do Paraguai e André se apresenta como voluntário da pátria. Vai à guerra e, dentre outras coisas, inventa um torpedo (que funcionou, mas nunca foi utilizado), constrói pontes e interfere, direta e curiosamente, nas estratégias do alto comando. A Guerra do Paraguai é um capítulo à parte na vida de André Rebouças. Suas críticas duríssimas à desorganização da campanha de guerra são bem conhecidas.

De volta da guerra, em 1866, tenta emplacar sua atividade de engenheiro. Seus trabalhos mais notáveis foram o plano para abastecimento de água no Rio, as docas da Alfândega e Pedro II. Mas suas batalhas são imensas, pois sofre todo tipo de boicote e perseguições. Suas vitórias ocorrem pela associação com o Barão de Mauá, que, financeiramente, sustenta seus projetos. Fora Mauá, só a família imperial o apoiava – e seu devotamento a ela não é sem razão. As obras das Docas da Alfândega se iniciam em 1867. Dom Pedro II visita as obras e André lhe pede para dar o seu nome ao seu novo projeto; ele aceita. Mas André é confrontado (por ciúmes) pelo presidente do conselho de ministros, Zacarias de Góis, que lhe diz que só poderá nomear a obra com a homenagem ao imperador caso passe em votação pelo Congresso. O Barão de Cotegipe também lhe faz dura oposição.

Em 1868, André tenta a vaga para professor titular do Colégio Central. Um amigo o aconselha para aguardar ser nomeado pelo Ministério da Guerra, uma vez que esteve no front; mas ele responde que quer passar por todos os exames – ou seja, rejeita as cotas. Mas é preterido porque lhe dizem que ele fizera a inscrição após a data (mesmo sabendo que, à época, ele estava justamente na guerra). Depois consegue uma vaga para professor eventual de Ciências Físicas e Naturais, Botânica e Zoologia, e, pelos próximos dez anos, do curso de Engenharia. Só em 1880 ele passará em primeiro lugar para o cargo de efetivo.

Uma curiosa nota, de 24 de junho de 1870, em seu diário nos serve de interlúdio: “Libertei, com meu pai, os três últimos escravos que possuíamos: Roque, Júlio e Emília”.

As batalhas de André são imensas, pois sofre todo tipo de boicote e perseguições. Suas vitórias ocorrem pela associação com o Barão de Mauá, que, financeiramente, sustentou seus projetos. Fora Mauá, só a família imperial o apoiava

Em 1871, durante seu projeto de abastecimento de água, sofre mais uma batalha por puro preconceito: foi confrontado pelo ministro da Agricultura, por causa da dificuldade de realização e algumas falhas que ocorreram nos testes. Requereu um teste público e demonstrou o pleno funcionamento de seu empreendimento. Sua coragem e expertise diante dos poderosos é notável. No entanto, no mesmo ano é demitido sumariamente, por pura pressão política de seus desafetos, do cargo de diretor do projeto das Docas de Pedro II. No ano seguinte, também foi demitido do projeto das Docas da Alfândega. Frustrado com tamanha perseguição, ruma para a Europa e para os EUA.

Nos EUA sofre intenso racismo. Não consegue se hospedar em hotéis e nem mesmo comer em restaurantes. As notas dessa época são desconcertantes: “Fui com outros companheiros de viagem em carro da mesma companhia para o hotel; aí disseram não mais ter aposentos e indicaram-me outro hotel. Depois de algumas tentativas, compreendi que era dificuldade da cor a causa das recusas de aposentos”. Ou: “O prejuízo da cor impediu-me de assistir ao espetáculo no ʻGrand Opera Houseʼ”. Ou ainda: “Às 12h30 chegamos à Parker’s. Demorou-se o trem 20 minutos para a refeição; ainda o prejuízo de cor no restaurante, obrigando-me a passar o dia de hoje, como o de ontem, sem alimentos!” Alguns dizem que foram esses eventos que o fizeram se reconhecer como negro, descobrir o racismo e tornar-se abolicionista. Mas, como vimos e veremos, isso não é correto; ele não só compreendia perfeita e anteriormente a discriminação que sofria aqui mesmo, no Brasil, como sua atividade abolicionista se iniciou antes da fatídica viagem à América.

A morte rondou a vida de André Rebouças e, num curto período de tempo, levou as três pessoas mais importantes para ele, causando-lhe profundo impacto. Em 18 de junho de 1865, no front da Guerra do Paraguai, recebe a notícia da morte de sua amada mãe. Em seu diário, a nota – que transparece seu compromisso e devoção – é comovente: “Que tristíssima noite! Minha pobre mãe. Meu bom Pai, meu Deus, dai-me resignação. Ai de mim e ainda doente na horrível dúvida se terei força para fazer ao meu país e à minha família todo o bem que lhes desejo”. Em 17 de maio de 1874, morre seu irmão Antônio, seu companheiro. Ele diz: “Um dos mais tristes dias de minha vida. Alteração profunda em todo o plano de vida; sofro a maior dor”. E, em 19 de junho de 1880, morre seu venerado pai, que já estava cego e doente.

Em 9 de julho de 1870, escreve: “Alio-me ao deputado Joaquim Nabuco para a propaganda abolicionista. Escrevo para o Jornal do Commercio o primeiro artigo: Carlos Gomes e a emancipação”. No entanto, sua atividade abolicionista se inicia – contrariando aqueles que dizem que Rebouças teve uma participação discreta no processo – em 1867! Nesse ano, ele formula uma Lei de Impostos Sobre a Escravatura. Em 1868, escreve em seu Diário:

“Li os evangelhos de S. João e S. Lucas; escrevi à noite algumas ideias que me ocorreram para a solução do instante problema da emancipação dos escravos. Assim Deus me conceda resolver o mais importante problema de minha pátria.”

No mesmo ano, numa reunião sobre a Escola de Arar, relata:

“Pedi a palavra ao sr. Presidente, principalmente para responder a uma de muitas arguições que foram feitas à comissão especial, arguição que causou-me muita dor. Refiro-me à pecha de esclavagista que me lançou o sr. Comendador Azevedo: ʻsou abolicionista de coração e aproveito esta solene ocasião para declará-lo. Não me acusa a consciência de ter deixado uma só ocasião de, lavrando pareceres para esta sociedade, fazer propaganda para a abolição dos escravos. E espero em Deus não morrer sem ter dado ao meu país as mais exuberantes provas de minha dedicação à Santa Causa da Emancipaçãoʼ.”

Em 1870, juntamente com o Visconde de Lage, integra uma sessão preparatória para criar um projeto de emancipação via seguros de vida. Também tem participação direta, mas discreta, na formulação da Lei do Ventre Livre. Em 1879, se associa a José do Patrocínio e passa a escrever na Gazeta da Tarde; fundam a Associação Central Emancipadora. Em 1880, Joaquim Nabuco junta-se a eles e formam a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão, e depois a Confederação Abolicionista (CA), junção das duas.

André não só compreendia perfeita e anteriormente a discriminação que sofria aqui mesmo, no Brasil, como sua atividade abolicionista se iniciou antes da fatídica viagem à América

Apesar de atividade discreta, Rebouças foi a figura mais importante do abolicionismo brasileiro. E não sou eu que digo, é ninguém menos que um de seus amigos mais próximos, Joaquim Nabuco. Sobre ele, Nabuco diz em Minha Formação – e a longa citação e fundamental (e, a mim, particularmente emocionante):

“De todos, aquele com quem mais intimamente vivi, com quem estabeleci uma verdadeira comunhão de sentimento, foi André Rebouças... Nossa amizade foi por muito tempo a fusão de duas vidas em um só pensamento: a emancipação. Rebouças encarnou, como nenhum outro de nós, o espírito antiescravagista: o espírito inteiro, sistemático, absoluto, sacrificando tudo, sem exceção, que lhe fosse contrário ou suspeito, não se contentando de tomar a questão por um só lado, olhando-a por todos, triangulando-a, por assim dizer – era uma de suas expressões favoritas – socialmente, moralmente, economicamente. Ele não tinha, para o público, nem a palavra, nem o estilo, nem a ação; dir-se-ia assim que em um movimento dirigido por oradores, jornalistas, agitadores populares, não lhe podia caber papel algum saliente, no entanto ele teve o mais belo de todos, e calculado por medidas estritamente interiores, psicológicas, o maior, o papel primário, ainda que oculto, do motor, da inspiração que se repartia por todos... não se o via quase, de fora, mas cada um dos que eram vistos estava olhando para ele, sentia-o consigo, em si, regulava-se pelo seu gesto invisível à multidão... sabia que a consciência capaz de resolver todos os problemas da causa só ele a tinha, que só ele entrava na sarça ardente e via o Eterno face a face... É-me tão impossível resumi-lo a ele em um traço como me seria impossível figurar uma trajetória infinita... Depois da Abolição ele sempre teve o pressentimento de que a escravidão causaria uma grande desgraça à dinastia, como assassinara a Lincoln. Seu maior amor talvez tenha sido pelos seus alunos da Politécnica, mas como todas as suas recordações da ʻEscolaʼ se transformaram em outros tantos tormentos, quando os viu glorificando o 15 de Novembro, que para ele era a desforra de 13 de maio!... Do seu quarto no Hotel Bragança, em Petrópolis, onde durante anos notara no seu diário a nossa pulsação comum, até o despenhadeiro do Funchal, que linha a que descreveu André Rebouças! Ele foi o cortesão do Alagoas... Um republicano, a quem veio a tocar na hora de amargura o papel de discípulo amado do velho Imperador banido... Foi um industrial, um engenheiro ousado e triunfante, que acabou praticando o tolstoísmo... Foi um gênio matemático, um sábio, que reduziu sua ciência a uma serpentina em que de tudo destilava a Abolição... Seu centro de gravidade foi verdadeiramente o sublime... […] Matemático e astrônomo, botânico e geólogo, industrial e moralista, higienista e filantropo, poeta e filósofo, Rebouças foi talvez dos homens nascidos no Brasil o único universal pelo espírito e pelo coração... Pelo espírito teremos tido alguns, pelo coração outros; mas somente ele foi capaz de refletir em si ao mesmo tempo a universalidade dos conhecimentos e a dos sentimentos humanos. Quem sabe se não foi a imagem que partiu o espelho! [...] Da Abolição ele foi o maior, não pela ação exterior, ou influência direta sobre o movimento, mas pela força e altura da projeção cerebral, pela rotação vertiginosa de ideias e sensações em torno do eixo consumidor e candente, que era para ele o sofrimento do escravo. Era uma fornalha cósmica a que ardia nele. Se Rebouças ainda é visto no seu tempo como uma estrela de segunda grandeza, é porque estava mais longe do que todas... Dos Evangelistas da nossa boa-nova ele é que teria por atributo a águia... Há no seu estilo e nos seus moldes muita coisa que lembra São João... Idealista todo ele, é quase só por símbolos que escreve... A Ilha da Madeira foi a Patmos de um apocalipse infelizmente perdido, porque suas últimas páginas, voltado para o Sul, ele as escrevia, tomando por letras as estrelas e as constelações. Sua lenda, porém, está feita, não há perigo para ele de esquecimento: a lenda do seu desterro e de sua amizade a Dom Pedro II.

Durante o período mais intenso do Abolicionismo, escreve mais de 120 artigos; ocupa o cargo de tesoureiro da CA, e gasta uma grande quantidade de seu dinheiro na causa; redige os estatutos da Associação Central Emancipadora (ACE); produz, também, praticamente sozinho, o Manifesto da CA, que pedia abolição total e sem indenização aos senhores, e sim do latifúndio.

Apesar de atividade discreta, Rebouças foi provavelmente a figura mais importante do abolicionismo brasileiro. E não sou eu que digo, é ninguém menos que um de seus amigos mais próximos, Joaquim Nabuco

Participa ativamente na organização das Conferências-Concerto, que foi o método encontrado por ele e José do Patrocínio para mobilização popular à causa da abolição. Shows teatrais, concertos musicais (com artistas do calibre de Carlos Gomes e Chiquinha Gonzaga), recitação de poesia com Castro Alves, e as famosas distribuições de cartas de alforria no palco, promovidas por Patrocínio – o espírito vulcânico da abolição, já retratado aqui –, em momentos de verdadeira catarse. Rebouças também é responsável por apaziguar Patrocínio e Nabuco, que eram espíritos contrários.

Logo após a abolição, produz um documento chamado Programa de evolução após o 13 de maio, que é um primor de liberalismo. Confira alguns itens, atento leitor:

1. Cumprir escrupulosamente o sacrossanto legado da Confederação Abolicionista, impedindo a reescravização da raça africana, assegurando a sua libertação pela independência e pelo bem-estar; promovendo a educação e a instrução dos libertos; facilitando a aquisição da propriedade da terra em que trabalham, constituindo lavradores proprietários;

2. Promover a descentralização governamental, reduzindo o governo imperial aos indispensáveis serviços públicos de justiça, segurança interna e externa, dívida nacional e relações internacionais;

3. Propagar a democratização dos impostos: abolição progressiva dos impostos diretos sobre a venda e sobre a superfície da terra ocupada;

4. Propagar a liberdade de comércio e a abolição de todos os direitos protecionistas à liberdade de indústria, à liberdade bancária, à liberdade de trabalho mental.

Por essa pequena citação, fica mais que evidente por que André Rebouças é solenemente ignorado pelos próceres dos movimentos negros atuais, cujo pensamento é predominantemente à esquerda.

Mas há mais: seu projeto liberal para o Brasil, sobretudo com a sua obra Propaganda abolicionista – Democracia Rural, propõe uma verdadeira guinada do país ao liberalismo clássico tão caro a André Rebouças, ávido leitor de Adam Smith, Frédéric Bastiat e Jean-Baptiste Say. Como adiantado no Programa, seu projeto aprofundava os conceitos de nacionalização do solo, de liberdade individual e espírito de associação e mínima intervenção estatal. A ideia era dividir as grandes propriedades dos senhores de engenho em pequenos lotes de 20 hectares (os Engenhos Centrais), que seriam arrendados a seus ex-escravos e aos imigrantes, concentrando a produção inicial nesses pequenos proprietários – que seriam responsáveis, inclusive, pelo maquinário necessário à produção. Os produtos seriam enviados às Fazendas Centrais, que tratariam dos trâmites de finalização e distribuição. Era de um projeto capitalista antilatifúndio, não de socialismo ou comunismo – acusações das quais teve de se defender muitas vezes.

O liberalismo de André Rebouças explica por que ele é solenemente ignorado pelos próceres dos movimentos negros atuais, cujo pensamento é predominantemente à esquerda

E, para arrematar, mais duas referências de seu apreço pela liberdade individual e pelo espírito de associação, que fazem dele um dos grandes pensadores do liberalismo brasileiro. Primeiro, um artigo de 1877, para o jornal Novo Mundo, dos EUA, no qual diz, de modo categórico:

“A iniciativa individual [...] é a faculdade ou a capacidade, própria de cada pessoa, para encetar ideias ou ações novas. A iniciativa individual pressupõe vários elementos intelectuais e morais; enumeremos dentre eles os mais notáveis: consciência de si, a fé nos recursos intelectuais dados pelo Criador e aperfeiçoados por esforço próprio; a independência de caráter; a inata aversão a qualquer tutela; a sublime aspiração de ser o que os yankes denominam a self-made man, um homem feito por si mesmo, sem padrinho nem protetores; o espírito ou talento inventivo; o saber tirar recursos ainda dos casos extremos; – o tato da ocasião [...]; força de vontade; o self-help; o saber lutar, jamais desesperar; a coragem contra o ridículo – arma predileta da rotina contra a iniciativa individual, principalmente nos países latinos e neolatinos; enfim, principalmente e acima de tudo, a fé em Deus e na imortalidade da alma. É indispensável que, nos dias de agonia extrema, quando o próprio céu oculta seu azul e elimina suas estrelas, se possa dizer: ‘Acima dessa abóbada de chumbo está o Deus de Colombo, de Franklin e de [Robert] Fulton’.”

Segundo, de sua fundamental obra Democracia Rural, de 1872:

“Dentro do círculo dos seus direitos, cada cidadão é, deve ser, tem perfeitamente o direito de ser, pela nossa constituição e pelas nossas leis, um Estado; uma companhia,  uma associação soma os círculos dos direitos dos cidadãos que a compõem; o seu círculo de direito é o círculo máximo, que circunscreve os círculos de todos os seus associados; esse círculo é naturalmente maior e mais forte; e é por isso mesmo que causa assombro, que causa medo, que causa terror aos oligarcas, que querem um povo fraco e subdividido: um povo de carneiros, tosquiável ao seu livre arbítrio, incapaz da menor resistência! [...] Possa bem […] a nossa cara Pátria cumprir a grandiosa missão que lhe destinou o Criador, pela iniciativa individual e pelo espírito de associação, filhos sublimes da Liberdade. E assim teremos Progresso – porque o Progresso, já outros o disseram antes de nós, é pura e simplesmente a Liberdade em ação!”

Rebouças também era um homem de temperamento conservador. Numa carta de 7 de abril de 1895 a seu amigo Joaquim Nabuco, diz, sobre a Revolução Francesa:

“Certamente não se aperfeiçoa uma nacionalidade, permitindo, sob pretexto de necessidade da guerra, todos os horrores e todos os crimes. Dificílimo é aperfeiçoar a espécie humana. Tenho disso a experiência íntima e pública em toda minha longa vida de mestre e educador de meninos e moços. Se alguma coisa pode ser conseguida, é pela propaganda quotidiana, como fizeram Wilberforce e Cobden, e como imitamos, de 1880 a 1888, na Propaganda Abolicionista […]. Nosso juvenil entusiasmo pela Revolução Francesa está hoje muito moderado. Quando consideramos o quanto há sofrido a França e o quão longe ainda ela está do ideal de Liberdade, de Igualdade e de Fraternidade, somos obrigados a concluir que foi um mal, tanto para a França quanto para a Humanidade, esse amálgama de reformas filantrópicas no sangue e na alma do terror e do militarismo de Napoleão. Ainda mais: feito o cálculo dos abusos atuais da 3.ª República em militarismo, em protecionismo, em burocracia, em exploração do povo por toda sorte de monopólios, fica-se em dúvida se eram maiores os horrores e as misérias do ʻantigo regimeʼ”.

Mas, com o golpe de 15 de novembro de 1889, que instaurou a malfadada República, tudo vai por água abaixo. Rebouças, recusando-se a ficar e presenciar a traição e destruição do país, parte com a família imperial, expulsa pelos golpistas para a Europa. Embarca no paquete Alagoas e, com seu amigo dom Pedro II, relembra os muitos acontecimentos que viveram juntos. A princesa imperial também confere-lhe a tutoria para a educação de seu primogênito durante a viagem.

A vida e obra de Rebouças ainda precisam ser retratadas por uma série televisiva destinada ao grande público, para que todos saibam que sobre a Terra de Santa Cruz também andaram homens excepcionais

Rebouças fica um tempo em Portugal, depois vai para a França reencontrar o imperador. Em seguida, vai para Cannes e ali fica até a morte do imperador. Decide ir para a África, pois, como ele diz, “sou, em corpo e alma, meio brasileiro, meio africano. Não podendo voltar ao Brasil, parece-me melhor viver e morrer n’África”. Vale lembrar que Rebouças recusa vários convites para voltar ao Brasil, inclusive com emprego garantido. Após ver que em solo africano havia ainda escravização em grande escala e nada conseguir fazer para mudar aquela realidade, vai para Funchal, na Ilha da Madeira, onde sua saúde se deteriora acentuada e rapidamente. Viveu cada vez mais triste, mais introspectivo, e sem esperança para o Brasil, que chamava de “nação do passado”.

Suas cartas desse período são de cortar o coração. Passa os dias a escrever seus idílios Por que o Negro Africano ri, canta e dança sempre?! e cartas aos amigos, relatando seus muitos infortúnios financeiros e sua doença. Em 9 de maio de 1898, foi encontrado ao pé de um penhasco, de onde caíra de 60 metros de altura. Aventou-se a ideia de suicídio, que logo foi descartada. Sua sobrinha, filha de Antônio, comenta em carta que “ele porém sofria com tanta resignação, com tal espírito cristão, que não posso convencer-me que tenha se suicidado. Disseram-me que ele costumava passear acima do lugar em que foi encontrado. Enfraquecido pela moléstia, poderia ter uma vertigem ter-lhe causado a morte”. O maior herói brasileiro, o gênio esquecido, morreu só, pobre, doente e cheio de amor ferido pelo Brasil.

Há muito ainda a se dizer sobre André Rebouças, mas este artigo é um mero recorte de um homem imenso e intenso, cuja vida e obra ainda precisam ser retratadas por uma série televisiva destinada ao grande público, para que todos saibam que sobre a Terra de Santa Cruz também andaram homens excepcionais, e as crianças e jovens negros das periferias possam ver a potência que há na inteligência, na iniciativa individual e no espírito de associação.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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