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"Mercado de escravos de Gorés", de Jacques Grasset de Saint-Sauveur.
“Mercado de escravos de Gorés”, de Jacques Grasset de Saint-Sauveur.| Foto: Reprodução/Wikimedia Commons

Deixe que as crianças brinquem e façam de trampolim a cabeça do poeta
Deixem que as crianças brinquem
enquanto eu medito, penso, poetiso;
enquanto eu extravaso
a minha angústia ou a minha ternura
(Solano Trindade)

Semana passada, por ocasião da Semana da Consciência Negra – porque agora temos não só o dia, mas o mês e a semana dedicados às reflexões sobre nossas mazelas “raciais” – fui, muito generosamente, convidado para participar do programa Pânico, da rádio Jovem Pan. Comigo deveria ter ido um jovem rapper carioca; mas ele declinou, de última hora, por motivos pessoais. Em seu lugar foi outro jovem, um comediante de stand-up – um negro que ganha dinheiro fazendo piada de brancos, ainda que tenha como “maior ídolo da vida” um branco. Enfim, o programa foi ótimo, pois o jovem humorista resolveu representar um personagem de “homem branco” que concordava com tudo o que eu dizia, e assim pude falar tranquilamente, sem ser interrompido. E, ainda que sua representação tenha sido um tanto ambígua, seus fãs adoraram, achando genial ele “não ter entrado no jogo” (segundo alguns de seus seguidores que foram me xingar em meu Instagram) do “programa de brancos que queriam ver negros discutirem”.

De minha parte, a genialidade foi tanta que me passou despercebida praticamente o programa todo – não só de mim, mas de muita gente com quem conversei. Mas foi divertido ver que, nesse clima de opinião sectária das redes sociais, essa ambiguidade – que pode ter sido causada, simplesmente, pela incapacidade de convencer do personagem – tenha sido considerada revolucionária por quem não sabe distinguir Carobinha de Atlanta. Sinal dos tempos. E, se achei o máximo – como professor e falador contumaz – ter podido expor minhas ideias praticamente sem interrupções, numa interação bastante confortável com os integrantes do programa em que estive, pela primeira vez, em março deste ano, lamentei que tenhamos perdido a oportunidade de, enquanto negros, numa data que se presta à reflexão, elevar o nível do debate sobre o racismo no Brasil através de visões diferentes do mesmo problema e de suas possíveis soluções – como foi minha participação com meu amigo Ale Santos, de quem penso um tanto diferente, mas respeito imensamente, no Morning Show, da mesma emissora.

A politização da questão “racial” brasileira gerou interesses alheios à vontade de seus principais interessados

Mas o que mais me espantou mesmo foi a ira de seus seguidores – uma turminha composta, basicamente de jovens negros capitães do mato e brancos racistas do bem – , que, num ato de peregrinação digital, invadiram meus perfis no Instagram e no Twitter não só para exaltarem o seu ídolo juvenil como para destilarem seu ódio colocando palavras na minha boca e me considerando indigno do debate por exercer minha total e irrestrita liberdade de pensamento – o que rendeu até uma nota de solidariedade em O Antagonista. Fico com o grande W.E.B. Du Bois, que disse, em As almas da gente negra (Lacerda Editores): “Por sobre o nosso socialismo moderno e fora do culto das massas, é necessário que persista aquele individualismo mais elevado que os centros de cultura protegem; é preciso que surja um respeito maior pela soberana alma humana que busca conhecer a si mesma e ao mundo à sua volta; que busca a liberdade de expansão e de autoconhecimento; que amará, odiará e trabalhará à sua própria maneira, sem peias, tanto diante do velho quanto do novo. Tais almas, em tempos passados, inspiraram e conduziram mundos e, se não formos completamente enfeitiçados pelo Rhinegold, tornarão a fazê-lo”.

Sim, a liberdade de pensamento é fundamental, uma vez que a politização da questão “racial” brasileira gerou interesses alheios à vontade de seus principais interessados. E quem diz isso não sou eu, mas um dos maiores militantes negros brasileiros, José Correia Leite, fundador da Frente Negra Brasileira e dos jornais O Clarim da Alvorada e A Chibata. Ao ser perguntado, numa entrevista de 1984, “o que acha[va] sobre movimento negro do Brasil de hoje”, ele respondeu: “Eu acho uma correria atrás da política. Infelizmente a influência política é muito grande no espírito dos negros. Isso não é preciso eu dizer. Você mesmo deve estar observando. O negro agora, com essa abertura que está havendo, com o surgimento de novos partidos, está disperso em grupos partidários; quando o sentido de uma luta específica do negro não pode ter isso. Não pode ter negro-PTB, negro-PT... o negro é um. Ele tem de ser indivisível. Ele pode ter, como brasileiro, suas ideias políticas. Mas ideologicamente, no sentido de um levantamento da condição social, econômica e cultural, ele não pode estar dividido em bandeiras políticas. Ele tem de ter uma bandeira, que é a bandeira de luta dele. Isso o negro não está fazendo”.

Podemos até discordar de Correia Leite, mas é uma pena que, atualmente, sua voz não seja mais ouvida, suas ideias não sejam mais lidas e a herança do movimento negro pioneiro no Brasil tenha sido substituída por interesses partidários de caráter autoritário e totalitário, cujo desejo principal é dividir a sociedade em grupos minoritários facilmente manipuláveis a fim de atingir os seus objetivos de poder.

O Brasil não é os Estados Unidos; por isso, analisar a questão racial brasileira exige lidar com as imensas contradições que aqui se instauraram. A colonização foi muito mais, digamos, integrada. A escravidão foi muito mais paternalista que, por exemplo, a escravidão perpetrada pelos mouros por mais de um milênio, cujo caráter vingativo, por conta das Cruzadas, é incontestável. A miscigenação é um fator que não pode ser considerado somente em seus abusos; é sabido que os primeiros portugueses que aqui chegaram encontraram nas índias o prazer recíproco e, não raro, o casamento: Caramuru e Paraguaçu, João Ramalho e Bartira, Jerônimo de Albuquerque e Maria do Espírito Santo Arcoverde – de larga descendência. Todos são exemplos notáveis de uma prática comum no Brasil que não deve ser ignorada. Os casos interessantíssimos de Chica da Silva e do Barão de Guaraciaba. A situação peculiaríssima de escravos que compravam escravos. A profusão de artistas, pensadores, cientistas, políticos e empreendedores que tenho feito questão de tratar aqui, nesta Gazeta do Povo, e também em meu curso O Brasil é um país racista?. Tudo isso não diminui as atrocidades da escravidão colonial, não diminui o sofrimento de dezenas de milhões de africanos que foram empilhados em tumbeiros para construirem o Brasil – quando não morriam antes de chegarem aqui. Como registra Laurentino Gomes em seu Escravidão – vol. 1 (Globo Livros):

“Joseph Miller faz um cálculo assustador a respeito da mortalidade no tráfico de cativos no Atlântico. Ainda na África, entre 40% e 45% dos negros escravizados morriam no trajeto entre as zonas de captura e o litoral. Dos restantes, entre 10% e 15% pereciam durante o mês que, em média, ficavam à espera do embarque nos portos africanos […] As estimativas de Miller sugerem que, de cada grupo de 100 escravos capturados no interior da África, apenas 40 sobreviveriam ao final dessa extensa jornada entre os locais de captura e o destino final da viagem, do outro lado do Atlântico. Em torno de 60% do total perderiam a vida pelo caminho. Traduzindo em números absolutos, ao longo de mais 350 anos, entre 23 milhões e 24 milhões de seres humanos teriam sido arrancados de suas famílias e comunidades em todo o continente africano e lançados nas engrenagens do tráfico negreiro. Quase a metade, entre 11 milhões e 12 milhões de pessoas, teria morrido antes mesmo de sair da África. Hoje estima-se com relativa segurança que aproximadamente 12,5 milhões de cativos foram despachados nos porões dos navios, mas só 10,7 milhões chegaram aos portos do continente americano. O total de mortos na travessia do oceano seria de 1,8 milhão de pessoas (portanto, superior aos 10% citados por Miller para o caso de Angola). Dado o alto índice de mortalidade após o desembarque, apenas 9 milhões de africanos teriam sobrevivido aos tormentos dos três primeiros anos de escravidão no novo ambiente de trabalho”.

Tal “legado”, somado ao racismo, não deve ser menosprezado. No entanto, se quisermos aprender com a passado a fim de construirmos um futuro melhor para todos os brasileiros, é forçoso darmos voz ao número quase infinito de paradoxos que cercam a nossa história, aos males que se transformaram em bens, à herança gloriosa que, apesar dos pesares, ainda podemos herdar assim que tivermos, como diz Sílvio Romero, consciência positiva do que realmente somos, e deixarmos de querer ser o que não somos. Devemos, para isso, deixar a partidarização das causas de nossos problemas sociais, a estupidez do maniqueísmo político e a absolutização dos aspectos econômicos de nossa condição, para nos darmos conta de que um país culturalmente fraco nunca chegou à prosperidade material. É preciso que nos unamos, como brasileiros, a fim de buscarmos uma saída comum que não exclua os mais necessitados, mas que os inclua por um esforço de cada um de nós, independente da preferência ideológica daqueles que nos governam – desde que nos deixem crescer como sociedade civil. Não esquecer, mas superar o passado é fundamental.

Mas, para isso, precisamos saber que brincadeira tem hora. Passou da hora dos negros pararem de alimentar estatísticas de pobreza, criminalidade e exclusão. Todo espaço para discussão deve ser aproveitado. É hora de falar sério, tirem as crianças da sala.

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