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Educadoras pioneiras negras norte-americanas. Na fileira da frente, da esquerda para a direita: Margaret Murray Washington, Mary McLeod Bethune, Lucy Craft Laney e Mary Jackson McCrorey. Na fileira de trás, da esquerda para a direita: Janie Porter Barrett, M.L. Crosthwaite, Charlotte Hawkins Brown e Eugenia Burns Hope.
Educadoras pioneiras negras norte-americanas. Na fileira da frente, da esquerda para a direita: Margaret Murray Washington, Mary McLeod Bethune, Lucy Craft Laney e Mary Jackson McCrorey. Na fileira de trás, da esquerda para a direita: Janie Porter Barrett, M.L. Crosthwaite, Charlotte Hawkins Brown e Eugenia Burns Hope.| Foto: Moorland-Spingarn Research Center/Howard University

“...Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondia-me:
– É pena você ser preta.
Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rústico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. E indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta.”
(Carolina Maria de Jesus)

Eis-me aqui, arriscando-me a entrar na mira das feministas. Por não ser mulher, dizem, eu não saberia o que as mulheres passam e não teria o direito de falar por elas; ou, sendo conceitualmente condescendente, minha abordagem deve, caso queira me aventurar, no mínimo levar em consideração minha condição “privilegiada” de homem. OK. Mas, se querem saber o que penso sobre a tese do lugar de fala, é só clicar aqui. Sou filho de uma mulher negra, casado com uma mulher negra, convivo com mulheres negras desde sempre e também – por que não? – sou um estudioso da mulher negra, como se pode ler em vários artigos meus em que as mulheres são o tema. Falo como homem, mas não como um ignorante.

Recentemente, por causa não só do feminismo, mas, sobretudo, do feminismo negro, uma narrativa tem ganhado corpo no debate público: a de que a mulher negra é a que mais sofre dentro de toda a estrutura socioeconômica da sociedade. A narrativa não é exatamente essa, pois, de fato, estatisticamente, a mulher negra está num patamar inferior ao do homem branco (no topo), da mulher branca e até do homem negro. O problema está na atribuição dessa desvantagem única e exclusivamente ao racismo e ao sexismo, como diz, por exemplo, um relatório do Ipea sobre desigualdades. Qualquer analista sério sabe que não é possível atribuir causas tão específicas e subjetivas a um fenômeno tão complexo. Já falei sobre isso aqui mesmo, nesta Gazeta do Povo.

Em qualquer circunstância que envolva mulheres negras, elas são colocadas numa posição não só de inferioridade, mas de vulnerabilidade quase absoluta

Mas esse nem é o problema de que quero, ainda que brevemente, tratar aqui. Um desdobramento dessa hipótese é que, recentemente, em qualquer circunstância que envolva mulheres negras, elas são colocadas numa posição não só de inferioridade, mas de vulnerabilidade quase absoluta. Eu já havia pensado nisso em outras ocasiões, mas o incidente entre Will Smith e Chris Rock, na última cerimônia do Oscar, suscitou uma enxurrada de comentários em solidariedade a Jada Pinkett Smith – por sua doença, que a fez perder cabelos – que me causaram certo espanto.

O notório advogado Thiago Amparo, numa rede social, iniciou um de seus comentários dizendo: “Quantas vezes mulheres negras foram relegadas ao lugar de ridicularização, da violência e da solidão, ao passo que a sororidade restou inexistente?” Poético. A professora Carla Akotirene disse que a alopecia, doença que fez Jada perder os cabelos, é uma “marca estética que aumenta o desprestígio da mulher negra no tocante à beleza e inelegibilidade pra ter um companheiro ou companheira”. Trágico. Será que Akotirene não conhece a gloriosa Pinah? Nem a inigualável Grace Jones? E vejam, não estou dizendo que essas mulheres não sofram preconceito ou não tenham sido ridicularizadas em suas vidas; mas que foram e são autônomas e senhoras de si o suficiente para ditarem o seu próprio destino e se destacarem num mundo que tende a vê-las como, para dizer o mínimo, exóticas.

E fora o posicionamento dos famosos, recebi eu mesmo, em meus comentários, respostas que exalam aquele sentimentalismo contemporâneo que procura transferir a própria fraqueza para terceiros. Coisa como “Queria ver se fosse com alguém que vocês amam e estivessem acompanhando um processo dolorido”; ou: “O que ficou exposto é mazela do desrespeito às mulheres negras e essa pataquada que o Oscar permite todo ano de esculhambar com as pessoas ao preço do riso da plateia”. E muitos outros, muito preocupados com a fragilidade de Jada Pinkett e projetando sobre ela e todas as mulheres negras um histórico de inferioridade e rejeição que exigiria do mundo condescendência.

Mas o fato é que mulheres negras nunca foram frágeis. Mulheres e homens negros carregaram por séculos o Ocidente nos ombros, sofreram violência real, mortes reais e suportaram tudo não por serem fracos e subservientes, mas por serem, enquanto seres humanos, capazes de suportar o mal – e até transformá-lo em bem. A grandeza de alma contra a pequenez da violência que sofre o corpo – no sentido dos motivos torpes que a provocaram. Ainda que tenham sido e sejam ainda o grupo social que mais sofre preconceito e violência simbólica, mulheres negras são exemplo de retidão e altivez, e jamais deveriam ser vistas como frágeis e dignas de piedade encenada.

Que o caríssimo leitor me entenda: não estou dizendo que as pessoas não são dignas de compaixão ou que não devam ser protegidas e terem sua dignidade sempre assegurada. Devem, é óbvio. Mulheres e homens. Falo aqui da postura, repito, sentimentalista que evidencia algo que nos diz, com muita precisão, o psiquiatra Theodore Dalrymple em seu Podres de Mimados: a expressão pública de sentimentos como prova de que você é uma pessoa boa e consciente. “Nesse mundo”, diz ele, “aquilo que é feito ou que acontece em privado não é feito ou não aconteceu absolutamente, ao menos não no sentido mais pleno possível. Não é real no sentido de que um reality show é real”. E complementa:

“A expressão pública do sentimentalismo tem consequências importantes. Em primeiro lugar, ela demanda uma resposta daqueles que a testemunham. Essa resposta deve, de maneira geral, ser simpática e afirmativa, a menos que a testemunha esteja preparada para correr o risco de um confronto com a pessoa sentimental e ser acusada de dureza de coração ou de pura e simples crueldade. Há, portanto, algo coercivo ou intimidador em exibições públicas de sentimentalismo. Tome parte ou, no mínimo, evite criticar”.

Mulheres negras nunca foram frágeis. Mulheres e homens negros carregaram por séculos o Ocidente nos ombros, sofreram violência real, mortes reais e suportaram tudo não por serem fracos e subservientes, mas por serem, enquanto seres humanos, capazes de suportar o mal – e até transformá-lo em bem

Se isso já é comum de maneira geral, quando algo ocorre com mulheres negras, o racismo e a rejeição dele proveniente entram como um adendo que aumenta a condescendência teatral das redes sociais. Como consequência, diminui as mulheres negras colocando-as numa posição de incapacidade de lidarem com seus problemas. Isso após quase de 350 anos de escravidão nos ombros.

Lembro-me de minha mãe contando, eu ainda criança, das várias vezes em que respondeu ao racismo com uma altivez que é característica de mulheres forjadas no sofrimento. O que Carolina Maria de Jesus diz, na epígrafe deste artigo – e em todo o seu maravilhoso Quarto de Despejo –,  é uma aula de consciência de seu próprio valor e dignidade, mesmo que tudo pareça o contrário disso. Se Jada Pinkett sofre com sua alopecia, ela sofre, não as mulheres negras, genericamente. Se Will Smith agiu como agiu porque, como disse Akotirene, “gênero construiu a masculinidade a partir da violência”, e “os homens são socializados para darem murro, as músicas fazem menção a bater, a botar com força”, isso não justifica sua ação. Ele errou – e assumiu.

E esse caso também me fez lembrar da vida da extraordinária Mary McLeod Bethune e das demais mulheres negras pioneiras da educação nos Estados Unidos. Mulheres que educaram um país. A história dessas mulheres ainda está por ser descoberta no Brasil. Figuras como Margaret Murray Washington (esposa de Booker T. Washington), Lucy Craft Laney, Mary Jackson McCrorey, Janie Porter Barrett, M.L. Crosthwaite, Charlotte Hawkins Brown e Eugenia Burns Hope foram fundamentais para a educação de crianças negras num período de extrema perseguição e sofrimento que sucedeu à Guerra de Secessão, a abolição e o surgimento das famigeradas leis Jim Crow. E triunfaram. Quero finalizar esse pequeno comentário com uma citação de um discurso impactante de Lucy Craft Laney, proferido em julho de 1899, na Hampton Negro Conference, em que ela reflete sobre o “fardo da mulher negra educada”:

“As mulheres são, por natureza, aptas para ensinar crianças pequenas; seu instinto maternal as torna pacientes e solidárias com seus protegidos. Mulheres negras de cultura, como professoras do jardim de infância primárias, têm uma rara oportunidade de ajudar a aliviar esses fardos, pois aqui podem incutir lições de limpeza, veracidade, bondade amorosa, amor pela natureza e amor pelo Deus da Natureza. Aqui elas podem instruir, diariamente, centenas de nossos filhos; aqui, também, elas podem economizar anos de tempo na educação das crianças; e podem salvar muitas vidas da vergonha e do crime, aplicando a lei da prevenção. No jardim de infância e na escola primária está a salvação de nossa raça. Para crianças de ambos os sexos, de 6 a 15 anos de idade, as mulheres são mais bem-sucedidas como professoras do que os homens. Este fato é comprovado pelo seu emprego. Dois terços dos professores das escolas públicas dos Estados Unidos são mulheres. É a glória dos Estados Unidos que a boa ordem e a paz sejam mantidas não por um exército grande e permanente de soldados bem treinados, mas pelo sentimento de seus cidadãos, sentimentos implantados e nutridos por seu exército bem treinado de 400 mil professores, dois terços dos quais são mulheres. A mulher negra educada, a mulher de caráter e cultura, é necessária na sala de aula não apenas no jardim de infância, e na escola primária e secundária; mas ela é necessária no ensino médio, na academia e na universidade. Somente aqueles de caráter e cultura podem produzir uma ascensão bem-sucedida, pois aquele que molda o caráter deve possuí-lo. Não somente na sala de aula a mulher inteligente pode ajudar, mas como palestrante pública ela pode dar conselhos, sugestões úteis e conhecimentos importantes que mudarão toda uma comunidade e iniciarão seu povo no caminho ascendente.”

Espero que isso nos inspire a todos a ver as mulheres negras não como frágeis, mas como rochas que ajudam a sustentar o mundo.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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