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Os escritores Lima Barreto (à esquerda) e Monteiro Lobato (à direita).
Os escritores Lima Barreto (à esquerda) e Monteiro Lobato (à direita).| Foto: Domínio público

“Um dia se fará justiça ao Ku Klux Klan; tivéssemos aqui uma defesa desta ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca – mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva.” (Monteiro Lobato a Arthur Neiva, em 18 de junho de 1921)

“Joaquim Maria Machado de Assis. Um ʻpardinhoʼ. Era com este nome que as orgulhosas marionetes de tez branca denominavam pejorativamente os filhotes das marionetes de pele pigmentada. [...] Joaquim Maria veio ao mundo misturado. E pobre, paupérrimo, humílimo. Um zero. O mais absoluto dos zeros. Perfeito nada social. Mas recebera a marca divina. Iria subir sempre.” (Monteiro Lobato sobre Machado de Assis, em 1939)

Monteiro Lobato é o último grande odiado do panteão artístico brasileiro. A acusação nada infundada de racismo – do mais pérfido racismo, diga-se –, de ser um dos entusiastas da eugenia no Brasil, amigo de Renato Kehl (fundador da Sociedade Eugênica de São Paulo e considerado o “pai da eugenia brasileira”), tornaram-se a lente pela qual toda a obra do escritor passou a ser avaliada. Não há mais escapatória: as humilhações de Dona Benta, o racismo de Narizinho e Pedrinho, a infâmia do Presidente Negro, nada mais escapa ao olhar perscrutador de seus críticos. Nem mesmo quem amava, quem passou a infância lendo O sítio do Picapau Amarelo, que foi ludicamente influenciado pela prosa apaixonante do literato de Taubaté (cidade natal de Lobato, no interior de São Paulo), atualmente consegue passar incólume por essa verdade.

Como tudo no Brasil tende à esculhambação, nem mesmo o racismo e a eugenia por aqui permaneceram intactos em sua obra devastadora

Entretanto, como tudo no Brasil tende à esculhambação, nem mesmo o racismo e a eugenia por aqui permaneceram intactos em sua obra devastadora – e graças a Deus por isso. Exemplos abundam. A começar por termos o excepcional psiquiatra negro Juliano Moreira como associado da infame Sociedade Eugênica de São Paulo, embora discordasse do princípio eugênico racialista. Ou mesmo Henrique Dias, negro livre e herói de guerra, em pleno século 17, na Batalha dos Guararapes. Ou a devoção de Sílvio Romero, filósofo e detrator da miscigenação, ao filósofo mestiço Tobias Barreto. Ou, ainda, o que nos interessa nesse breve artigo, a amizade entre aquele eugenista Monteiro Lobato e ninguém menos que Lima Barreto, gênio das letras massacrado pelo racismo brasileiro.

Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu em 13 de maio de 1881 e, assim como Machado de Assis – descrito numa das epígrafes por Lobato –, “misturado. E pobre, paupérrimo, humílimo. Um zero. O mais absoluto dos zeros”. Mas com uma vantagem em relação ao Bruxo do Cosme Velho: tinha um pai literato e muito culto, bem como uma mãe professora. Vantagens, entretanto, passageiras, pois em 1887, quando o menino tinha apenas 8 anos, sua amada mãe morre de tuberculose e, como diz Francisco de Assis Barbosa, seu mais excelente biógrafo, “a morte de Amália há de descer como uma sombra no coração do filho mais velho”.

Mas esse não é o único revés na amarga vida de Lima Barreto. Seu fidelíssimo pai, um tipógrafo e tradutor experiente, com trânsito entre a gente liberal e importante de seu tempo, em 1902 simplesmente enlouquece e passa a viver seus dias num estado de delírio quase ininterrupto, gritando e alarmando a família, que, dali em diante, dependerá única e exclusivamente do irmão mais velho, o aspirante a escritor com apenas 21 anos. Lima Barreto larga os estudos e passa num concurso para escriturário na Secretaria da Guerra, função que detestaria por toda a vida, mas que lhe permitiria o investimento na carreira de escritor.

Suas incursões pelo universo literário começam com a colaboração em jornais acadêmicos e, depois, em algumas revistas de grande circulação, como a Fon-fon. No entanto, seus primeiros romances, enviados às grandes editoras – que, à época, só publicavam os medalhões ou quem estes indicavam –, são sempre rejeitados. Diante do sentimento de recusa ao seu indiscutível talento literário – do qual, diante das circunstâncias, passa a duvidar –, somado à situação familiar extremamente delicada e extenuante, Lima Barreto busca conforto no álcool que sempre rejeitara. Como diz no Diário Íntimo: “Vai me faltando a energia. Já não consigo ler um livro inteiro, já tenho náuseas de tudo, já escrevo com esforço. Só o Álcool me dá prazer e me tenta... Oh! meu Deus! Onde irei parar?”

Consegue a publicação de seu primeiro romance, Recordações do escrivão Isaías Caminha, obra-prima da literatura brasileira, em 1909, apelando a um editor português recomendado por um de seus poucos e fiéis amigos, Antônio Noronha Santos. Mas a publicação deste livro, recheado de menções veladas aos figurões do jornalismo e da crítica literária de seu tempo, em vez de lhe abrir as portas do mundo literário, irá fechá-las para sempre. O livro sofrerá duras críticas, salvo raríssimas e honrosas exceções, como a do grande José Veríssimo, que dele dirá: “Há nele o elemento principal para os fazer superiores, talento. Tem muitas imperfeições de composição, de linguagem, de estilo, e outras que o senhor mesmo, estou certo, será o primeiro a reconhecer-lhe, mas com todos os seus senões é um livro distinto, revelador, sem engano possível, de talento real”.

É em meio a esse turbilhão de decepções, já completamente tomado pelo alcoolismo e pela incapacidade de manter-se sóbrio e com a alma em ordem – já havia sido internado uma vez, em 1914, seguindo os trôpegos passos do pai na insanidade –, que conhece o paulista Monteiro Lobato, em 1918, à época um editor iniciante, cujo livro de estreia, Urupês, havia sido publicado recentemente. Lobato envia uma carta a Lima Barreto dizendo o seguinte:

“A Revista do Brasil deseja ardentemente vê-lo entre os seus colaboradores. Ninho de medalhões e perobas, ela clama por gente interessante, que dê coisas que caiam no goto do público. E Lima Barreto, mais do que nenhum outro, possui o segredo de bem ver e melhor dizer, sem nenhuma dessas preocupaçõezinhas de toilette gramatical que inutiliza metade dos nossos autores. Queremos contos, romances, o diabo, mas à moda do Policarpo Quaresma, da Bruzundanga, etc. A confraria é pobre, mas paga, por isso não há razão para Lima Barreto deixar de acudir ao nosso apelo.
Aguardamos, pois, ansiosos a reposta, uma resposta favorável.
Do confrade (a.) Monteiro Lobato.”

O eugenista Monteiro Lobato, aquele que desejava uma Ku Klux Klan no Brasil, convidou o escritor “mulato com nome do rei de Portugal”, para ser seu autor, e ainda diz que só ele “possui o segredo de bem ver e melhor dizer”

Ou seja, o eugenista Monteiro Lobato, aquele que desejava uma Ku Klux Klan no Brasil, que considerava a miscigenação destruidora da capacidade produtiva, convidava o escritor maldito, o “mulato com nome do rei de Portugal”, desprezado por toda a classe artística relevante de seu tempo, para ser seu autor, e ainda diz que só ele “possui o segredo de bem ver e melhor dizer”. Ofereceu um contrato de pagamento justíssimo a Lima Barreto – algo que ele jamais recebera – pela publicação de Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá, ao que Barreto respondeu estar “plenamente satisfeito”. À época, vale dizer, Lima Barreto passa por uma segunda internação.

A correspondência entre os dois, publicada em livro, dura quase quatro anos e é recheada de observações sobre a vida literária de seu tempo. Desancam os críticos, criticam a Academia Brasileira de Letras – “a Academia de Letras deve despir-se da imortalidade que se outorga para vir pegar da enxó, e os carapinas de Norte a Sul que apanhem a pena”, dirá o paulista –, a hipocrisia da classe letrada, mas, sobretudo, se mostram cúmplices no compromisso de fazer boa literatura.

Em maio de 1920, Lobato vai ao Rio e tenta encontrar Lima Barreto, sem sucesso. Em carta do dia 31, dirá: “Estive uns dias aí e procurei-te onde havia possibilidade de encontrar-te; freges, botequins e... casas de garapa. Cheguei a espiar debaixo de certas mesas... Mas nada do Lima. Todos informaram-me que é difícil agarrar-te à unha, que és ubíquo, e moras em Todos os Santos pro forma, etc., etc. És horrivelmente caluniado! Em agosto volto, a ver o rei e você”. Voltará ao Rio outras vezes, não conseguindo encontrar o amigo. Enviará um bilhete, que só chegará quando já havia retornado a São Paulo. Lima Barreto, ao saber que o amigo o procurava, respondeu, num bilhete: “sei que andaste à minha procura Não sou quilombola. Resido e moro à Rua Major Mascarenhas 26, Todos os Santos”. Mas esse encontro não se concretizará – pelo menos não no Rio de Janeiro. Fato é que, numa dessas vezes Lobato o vê, mas Lima Barreto estava num estado tão lastimável, bêbado, sujo e cambaleante, que o amigo preferiu não se apresentar, evitando constrangê-lo ainda mais. O encontro entre os dois ocorrerá em 1921, em São Paulo, por ocasião da passagem do escritor carioca pela cidade a caminho de Mirassol, pequena cidade do interior, onde iria se tratar do alcoolismo por recomendação de um amigo médico.

A correspondência, menos frequente após o encontro, durará até 1922, meses antes da morte do autor de Triste fim de Policarpo Quaresma, ocorrida em 1.º de novembro. É um registro importantíssimo não só do encontro de dois espíritos artísticos da mais alta qualidade de nosso país, mas também um exemplo da imensa complexidade do racismo brasileiro, que não deve, jamais, ser visto de modo maniqueísta ou livre de antagonismos.

Como registrado na segunda epígrafe, Monteiro Lobato também louvou Machado de Assis, o “pardinho”. Num artigo comemorativo pelos 100 anos do autor de Dom Casmurro, disse ele: “Machado de Assis é o grande nome do Brasil, tão grande que ficou em situação de absoluto destaque, acima até da meteórica rutilância de Rui Barbosa. Imenso gênio que este era, faltou-lhe o dom da criatividade artística para ascender ao degrau supremo da escada, lá onde Machado de Assis se assentou sozinho”. No entanto, numa das primeiras cartas a Lima Barreto, de 28 de dezembro de 1918, dirá algo surpreendente, com o qual encerro esse artigo:

“Que obra preciosa estás a fazer! Mais tarde será nos teus livros e nalguns de Machado de Assis, mas sobretudo nos seus, que os pósteros poderão ‘sentir’ o Rio atual com todas as suas mazelas de salão por cima e Sapucaia por baixo. Paisagens e almas, todas, estão tudo ali.”

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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