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“Atticus lançou mão de todos os meios ao alcance dos homens livres para salvar Tom Robinson, mas no tribunal secreto do coração dos homens, ele não tinha chance. Tom era um homem morto no momento em que Mayella Ewell abriu a boca e gritou.” (Harper Lee, O sol é para todos)
Em 2018 escrevi, nesta Gazeta do Povo, algumas considerações sobre a justiça, inclusive mencionando o caso do atentado sofrido por Jair Bolsonaro, à época candidato à Presidência, dizendo que “toda ordem social é violentada por uma arbitrariedade criminosa”. Um ato de injustiça pode ferir não só o indivíduo que a sofre, mas toda a sociedade, e até a ordem institucional de um país pode se romper diante da violação de um direito fundamental. Repetindo Josef Pieper: “o verdadeiro caráter do mal que um crime representa não está na perda dos haveres, da saúde, da vida, mas na ameaça à ordem da vida comunitária, ameaça que pesa sobre todos por igual; e que, quando a consciência destas coisas se estende a cada um, está realizada a justiça no Estado”.
Em toda a primeira parte dʼA República, Platão nos apresenta uma longa discussão entre Sócrates e vários de seus interlocutores sobre o que é a justiça – aliás, esse é o tema de toda a obra, inescapável para quem deseja estudar o tema a sério. O debate parte, basicamente, de uma definição conhecida, oriunda das imemoriais virtudes cardeais, de que é justiça consiste em “dar a cada um o que é devido”. Para Sócrates, a justiça é “coisa de muito mais valor do que montões de peças de ouro”.
Um ato de injustiça pode ferir não só o indivíduo que a sofre, mas toda a sociedade, e até a ordem institucional de um país pode se romper diante da violação de um direito fundamental
Uma das primeiras objeções ao errôneo conceito de justiça é dizer que ela é “a vantagem do mais forte”. Trasímaco, tentando argumentar, afirma que quem exerce o maior poder numa sociedade é o governo; então: “cada governo promulga leis com vistas à vantagem própria: a democracia, leis democráticas; a tirania, leis tirânicas, e assim com as demais formas de governo. Uma vez promulgadas as leis, declaram ser de justiça fazerem os governados o que é vantajoso para os outros e punem os que as violam, como transgressores da lei e praticantes de ato injusto. Eis a razão, meu caro, de eu afirmar que em todas as cidades o princípio da justiça é sempre o mesmo: o que é vantajoso para o governo constituído”. Mas Sócrates objeta: “E serão infalíveis os governantes em suas respectivas cidades, ou também estão sujeitos a errar?” Em resposta à afirmativa de que eles podem errar, então ele complementa, com outa pergunta: “Sendo assim, quando se põem a legislar, tanto podem promulgar leis boas como ruins?”
E, após longa argumentação sobre a finalidade de diversas atividades (como a medicina e a equitação), cujo destino é aquele a quem faz um bem (no caso, o paciente ou o cavalo) e não o próprio sujeito da ação, Sócrates afirma que “nenhuma ciência procura ou determina o que é de vantagem para o mais forte, mas para o mais fraco e por ele governado”, e que “não há chefe em nenhuma posição de comando, enquanto chefe, que investigue e determine o que é de vantagem para si mesmo, porém para o seu subordinado, em benefício de quem ele exerce sua arte. É em vista desse e considerando apenas o que lhe poderá ser vantajoso ou conveniente que ele diz tudo o que diz e faz o que faz”.
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Nesse momento, fica claro para o leitor que o conceito de justiça que Platão deseja atingir não tem a ver, propriamente, com os bens que se pode atingir, digamos, materialmente nesse mundo, mas a virtude da justiça diz respeito às ações não exteriores, mas interiores do homem, e que:
“[...] lhe refletem o imo ser nos seus elementos constitutivos e o leva, como a homem justo, a não permitir a nenhum deles fazer nada do que lhe for estranho, nem interferir uns nos outros os diferentes princípios da alma em suas respectivas atividades, mas a pôr ordem em sua vida interior, disciplinar-se, tornar-se amigo de si mesmo e harmonizar essas partes à maneira dos três termos da escala musical: o alto, o baixo e o médio, como também faz com todos os intermediários que possam coexistir; e depois de unir todos esses elementos e de múltiplo que era tornar-se uno, temperante e afinado em tudo a que se aplicar, seja no afã de enriquecer, seja no cuidado com o corpo e em assuntos de política ou em negócios particulares, em qualquer situação, considera e denomina justa e bela a ação que mantém e contribui para realizar esse estado de alma, tendo na conta de sabedoria o conhecimento que determina semelhante norma de conduta, de injusta a ação que destrói esse estado de coisas, e de ignorância a opinião responsável por esta última orientação.”
Sócrates ainda conclui que o homem justo e a cidade justa coincidem, e que a injustiça é “a preocupação de querer ocupar-se com tudo e a intromissão nas funções alheias, a insubordinação de uma parte com relação ao todo, para vir a dirigi-lo sem nenhuma justificativa”.
Quarenta anos após o fim da censura institucional, já se fala em censura novamente, ainda que disfarçada de “defesa da democracia”; quarenta anos após a redemocratização, já não é possível sequer falar em democracia
Diante do exposto, pergunto – de modo retórico, mas sincero: quem, em nosso triste país, de governantes a governados, está disposto a buscar a justiça como tratada por Platão? Nossos governantes (e, ainda mais escandalosamente, nosso Judiciário) abdicaram de sua função, não idealista, mas civilizatória, e adotaram o pior maquiavelismo possível, buscando ao máximo a sua vantagem própria e o exercício de poder total. Quarenta anos após o fim da censura institucional, já se fala em censura novamente, ainda que disfarçada de defesa da democracia; quarenta anos após a redemocratização, já não é possível sequer falar em democracia – a não ser, obviamente, em termos platônicos, como um regime que fomenta a tirania. Ou seja, Platão estava certo.
Agora, quando seremos capazes de estabelecer a ordem em nosso país? Ordem real, baseada em virtudes e nos mais altos padrões civilizatórios. Quando a sociedade deixará de tentar resolver tudo por meio do desespero, e fará o trabalho longo e paciente de construir um país para as próximas gerações? Não está evidente para todos que o Brasil precisa ser refundado em outras bases, de acordo com um outro tipo de objetivo que não o de “levar vantagem”? Passou da hora de baixarmos a temperatura e agirmos de modo organizado, focado e paciente, ou seremos tragados para sempre por nossos algozes. Fiat justitia!
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




