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manifestantes em Brasília
Manifestantes diante do QG do Exército em Brasília: “Forças Armadas, salvem o Brasil” é um dos bordões mais usados nos protestos dos quartéis.| Foto: Renan Ramalho/Gazeta do Povo

“[...] E na verdade tempo haverá / Para que ao longo das ruas flua a parda fumaça, / Roçando suas espáduas na vidraça; / Tempo haverá, tempo haverá / Para moldar um rosto com que enfrentar / Os rostos que encontrares; / Tempo para matar e criar, / E tempo para todos os trabalhos e os dias em que mãos / Sobre teu prato erguem, mas depois deixam cair uma questão; / Tempo para ti e tempo para mim, / E tempo ainda para uma centena de indecisões, / E uma centena de visões e revisões, / Antes do chá com torradas.” (T.S. Eliot, A canção de amor de J. Alfred Prufrock)

O trecho acima, retirado de uma das mais brilhantes criações literárias do século 20, retrata um homem ensimesmado, um homem oco – como o próprio Eliot designará em outro de seus excepcionais poemas –, alguém cuja existência se afunda no mais profundo tédio. J. Alfred Prufrock é um eu-lírico que vaga pelas ruas de Londres em busca de sentido e disfarça sua letargia com uma espécie de intelectualismo vazio. Como diz Russel Kirk em seu A era de T.S. Eliot, “The Love Song of J. Alfred Prufrock não é simplesmente a descrição de um cavalheiro indeciso em um chá da tarde, tímido demais para declarar os afetos, nem é uma condenação da sociedade burguesa, nem mesmo uma efusão do tédio do mundo. Na verdade, Prufrock é o flácido homem de todos os dias – embora o homem moderno tenha confortos em abundância e fique sem jeito quando é confrontado pela revelação – e que se recusa a ser testemunha ocular da verdade.”

Tal personagem pode também ser descrita de acordo com outra análise da sociedade moderna, feita não em forma de poesia, mas de ensaio, pelo filósofo romeno Constantin Noica – já abordado por mim nesta Gazeta do Povo. Noica descreve esse indivíduo solipsista como alguém impossibilitado (ou que se recusa) de dar a si mesmo determinações adequadas, de acordo com a realidade. Chama essa doença de horetite – de “horos”, que em grego significa “determinação”, e sua característica principal é “designar o desregramento das determinações que as coisas e o homem se dão; um desregramento que pode levar à sua precipitação, mas também ao seu retardamento e até a sua extinção [...]. Sofrem de horetite, no exercício de sua vontade, tanto os grandes impacientes quanto, ao contrário, os grandes pacientes deste mundo e a multidão dos bodes expiatórios”.

O governo que se encerra não era e não foi um governo de respeito às coisas permanentes, não era e não foi um governo de respeito à iniciativa individual e ao espírito de associação, não foi um governo de preservação e construção de caminhos para as novas gerações

Cito essas duas referências para – quem sabe, pela última vez – falar do clima espiritual em que nosso país se encontra e desejar votos para que isso comece a ser superado no ano que se aproxima. Óbvio que digo tais coisas tentando convencer a mim mesmo de algo que creio muito pouco provável, mas também, dizer e repetir serve-me como farol de minhas intenções e de meu trabalho de sempre. E como diz o ditado: a esperança é a última que morre.

O fim desse ano e, sobretudo, desse governo deixa um gosto amargo na boca de todo aquele que, até quatro anos atrás, se dizia “de direita”, conservador e/ou liberal, e não tenha sido seduzido pelo discurso disruptivo que os pretendentes ao governo adotavam em meio à campanha eleitoral e ainda antes. É chover no molhado repetir quantas vezes, aqui mesmo, nesta coluna, alertei para o perigo daquilo (se tiver dúvida, caro leitor, clique aqui, no link do “eu avisei”). Foram quatro anos da mais pura evidência de que não tínhamos um governo baseado nos princípios há milênios consolidados e cuja observação seria crucial para a conservação da ordem da alma individual e da sociedade; não era e não foi um governo de respeito às coisas permanentes, não era e não foi um governo de respeito à iniciativa individual e ao espírito de associação, uma vez que atrelou essa liberdade à adesão a suas pautas ideológicas. Não foi um governo de preservação e construção de caminhos para as novas gerações – é só olhar para a saúde e para a educação para confirmarmos isso.

Alguns podem objetar, dizendo que o governo foi prejudicado pelo establishment, pela máquina política há muito carcomida pela corrupção. No entanto, o ocupante da cadeira presidencial estava havia 28 anos nas entranhas do Poder, não foi pego de surpresa e certamente sabia que não seria um simples apoio popular que o colocaria na posição vantajosa de governar de forma plebiscitária. Ele e os adolescentes políticos que o cercam calcularam muito mal a sua (in)competência. Daí, minha certeza conservadora me coloca diante de uma encruzilhada: ou havia meios de conciliar a irredutibilidade para com a corrupção e a preservação das instituições e da ordem, alterando aquilo que era possível e preparando uma continuidade pautada na prudência, ou a política nacional, no momento, não é lugar para um conservador. Tendo a ficar com segunda opção, por isso creio que o caminho é a educação e a cultura, deixando a política institucional para um momento mais apropriado. E o mais absurdo é que essa era a opção de toda a natimorta direita até que essa onda de lama nos assolasse. Só nos resta recomeçarmos do zero.

Agora, vendo as pessoas se submeterem a situações tão desconcertantes como essa na porta de quartéis há quase dois meses, pedindo por intervenção militar baseando-se numa interpretação espúria da Constituição Federal, só me faz pensar no que expus no começo desse artigo. Somos um país de pessoas desesperadas e acometidas de horetite. Não sendo capazes de nos darmos determinações adequadas, seguimos afoitos, de arroubos em arroubos, na tentativa irresponsável de resolução abrupta de nossos problemas mais graves, mas caindo, reincidentemente, em situações de fazer corar o Louco de Maurício de Sousa, ao, por exemplo, passarmos mais de um ano dando bom dia e cantando para um político preso, cantarmos o hino nacional para um pneu ou pedirmos intervenção aos céus com a lanterna dos celulares.

Que o novo ano nos traga paz e serenidade para lidarmos com nossas dificuldades, crendo que Deus está no controle de todas as coisas. Amém.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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