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“Na verdade, na verdade vos digo que, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto.” (João 12,24)
Eu me descobri “de direita” creio que na segunda metade dos anos 2000, ao começar a ter contato com autores declaradamente conservadores e liberais. Mas o que é importante dizer é que, antes disso, vários autores que eu lia assiduamente e apreciava muito – tais como G.K. Chesterton, C.S. Lewis, Gustave Thibon, Francis Schaeffer e, mais tarde, Eric Voegelin – não se autointitulavam conservadores ou liberais, mas eu notava neles uma correspondência direta com minha própria visão de mundo – que, posteriormente, descobri ser conservadora. Para esses autores o ser humano é naturalmente falho, imperfeito, e, por isso, a prudência deve ser uma virtude de primeira ordem. O que eu notava e admirava neles não estava ligado a partidarismos ou a moralismos de qualquer natureza. Sim, eu admirava o seu cristianismo, que ajudou a formular o meu, mas, para além disso, o que havia de admirável neles era sua – para, novamente, usar o termo de Michael Oakeshott – disposição conservadora.
Posteriormente descobri essa disposição também nos gregos, sobretudo em Platão e Aristóteles, cuja filosofia moral é totalmente voltada para as virtudes e o controle dos apetites. Não há nada mais conservador do que afirmar, como Aristóteles, que “a excelência moral se relaciona com as emoções e as ações, nas quais o excesso é uma forma de erro, tanto quanto a falta, enquanto o meio termo é louvado como um acerto” (Ética a Nicômaco). Ou seja, tais autores, ainda que não fossem teóricos do conservadorismo (como Russell Kirk) e do liberalismo (como Milton Friedman), demonstravam, em sua cosmovisão e, mais especificamente, em sua antropologia, o ser humano como intrinsecamente falho e potencialmente deletério, cujas paixões devem ser mediadas por um senso de transitoriedade e circunstâncias.
Tal conservadorismo, é fundamental afirmá-lo, não é uma ideologia; ou seja, não se trata de um conjunto de postulados morais que, supostamente, seriam capazes de conduzir o mundo para um melhor caminho. Não se trata, tampouco, de uma mera extensão da moralidade religiosa. Ser conservador, como eu mesmo afirmei, aqui mesmo, nesta Gazeta do Povo, não tem a ver com ser contra o aborto ou o casamento entre pessoas do mesmo sexo; não tem a ver com acreditar na família tradicional, na superioridade da chamada cultura ocidental ou mesmo no capitalismo. Aliás, ser conservador não é a mesma coisa que ser cristão. É possível – e aqui não faço juízo de valor, apenas constato um fato – ser conservador e ateu, ou cristão e progressista. A correlação entre cristianismo e conservadorismo pode ser encontrada, inclusive, em outras religiões.
A política, vista da perspectiva conservadora, jamais deveria se deixar contaminar com soluções simples, fruto do pensamento ideológico
Em política, seguia e continuo seguindo a visão de minha sapientíssima mãe; desde pequeno, ouço-a repetir que “políticos governam para si próprios”. Por isso, via de regra, sempre anulei o meu voto. Jamais confiei em políticos e sempre tive a liberdade individual como uma premissa fundamental, baseada na história de minha família e daqueles que sempre admirei. Política é circunstância e bons políticos são a expressão dessa consciência, mas não mais do que isso. O melhor político, em minha modesta opinião, é aquele que não atrapalha a dinâmica social, mas se esforça por garanti-la, e sabe que as necessidades urgentes não devem ser um capital político perene. Qualquer político que se mostre como a solução para problemas profundos – e, às vezes, insolúveis – merece total desconfiança. Ou seja, esse é o principal motivo que me fez sempre desprezar um partido como o PT (e sua figura máxima, Lula) e a esquerda de maneira geral, que nunca tiveram o meu voto – por mais que alguns queiram me imputar isso de modo absolutamente infundado.
No entanto, quando olho para o que se chama de “direita” ou “conservadorismo” atualmente, enxergo o exato oposto do que formulei acima – e ao longo dos anos nessa coluna. A captura política dessa disposição – que, no Brasil, pela profunda ignorância política da sociedade, é absolutamente difusa e incipiente – foi tão brutal, dado o desespero das últimas décadas, que as pessoas simplesmente se deixaram levar, foram tomadas por uma espécie de encantamento disfarçado de indignação. O antipetismo que floresceu, sobretudo a partir de 2013, fez crescer no seio da sociedade o sentimento de querer mudar tudo o que está aí de modo drástico, e um contraditório espírito revolucionário se infiltrou naquele que deveria ser um movimento baseado na política da prudência. A sagacidade foi substituída pela paixão e a estratégia pela hybris, aquilo que Voegelin chamou de arrogância espiritual. A hybris é um “distúrbio no equilíbrio do espírito”; como ele diz em Hitler e os alemães: “não é um defeito da mente, como nas pessoas simples, mas um defeito do espírito, uma revolta contra o espírito, que dá ensejo a dizer ou fazer coisas contra o espírito”. Por espírito aqui entenda o leitor como o senso de tensão em relação à ordem da alma e da sociedade, algo que Voegelin evoca de Platão.
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Ou seja, a política, vista da perspectiva conservadora, jamais deveria se deixar contaminar com soluções simples, fruto do pensamento ideológico, que pensa ser possível reformar a sociedade de modo definitivo, a fim de conduzi-la ou para um futuro ou um passado supostamente gloriosos. Tanto o igualitarismo estúpido das esquerdas, quanto o liberalismo simplista das classes médias/altas urbanas, ou mesmo o reacionarismo de quem, como diz João Camilo de Oliveira Torres – o maior teórico do conservadorismo no Brasil –, seria “capaz de construir um castelo medieval em Brasília, e andaria de armaduras ou calções de veludo em Copacabana”, são ideias construídas mediante um falseamento da realidade, que não levam em consideração a complexidade humana.
O resultado dessa captura, alertada por mim – não me canso de repetir – em artigos dessa coluna a partir de maio de 2018, estamos vendo hoje: destruição da maior iniciativa anticorrupção da história do país (“eu acabei com a Lava Jato”); domínio político absoluto do chamado Centrão – inclusive com ajuda e anuência daquele que afirmou sempre ter sido do Centrão, mas que muitos insistem em chamar de conservador; o fortalecimento e a volta da esquerda ao poder – aliás, uma enquete realizada por esta Gazeta do Povo, em 2019, constatou que, assim como ele próprio, uma ampla maioria dos leitores (48%) considerou boa para Bolsonaro a saída de Lula da prisão; o avanço antidemocrático do Supremo Tribunal Federal, que se fortaleceu, inclusive, com acordos escusos do ex-presidente; e por último, mas não menos importante, a capitalização, manipulação e instrumentalização de um receio popular, transformado em pavor pelas psicodélicas e ininterruptas teorias conspiratórias construídas ao longo dos últimos anos, fazendo pessoas simplórias, levadas ao desespero, passarem meses acampadas em portas de quartéis clamando por uma intervenção dos militares, para, no fim, serem presas após uma atabalhoada invasão e destruição dos prédios públicos, em Brasília.
Não quero discutir com o leitor se houve ou não uma tentativa de golpe de Estado por essas pessoas, manipuladas por projetos políticos personalíssimos de gente que há décadas já se esgueirava, sorrateiramente, pelas franjas do poder, sem nada propor ao país (pois é, em 27 anos de parlamento, não propôs absolutamente nada de relevante para o país). Não quero entrar no mérito – pois Inês é morta – das arbitrariedades e da absolutamente desproporcional penalização de pessoas que, apesar de terem cometido crimes, não são, de fato, criminosas. Tudo isso é, para dizer o mínimo, lamentável.
Só há um caminho para a direita brasileira: a morte. Essa metástase deve ser extirpada a fim de que algo novo e realmente legítimo surja
Se ainda há gente enganada, com aquele discurso de “ele só não fez mais porque não deixaram”, mesmo diante de todas as evidências do estelionato político contra uma sociedade vulnerável, não posso fazer nada. Se tem gente já à espera de um novo Dom Sebastião que nos livrará do comunismo, pronta a votar no primeiro oportunista que se declarar cristão, patriota e defensor da família, é uma pena. Mas, se você se considera conservador de fato, não tem esse direito a não ser traindo a sua própria consciência e seu discernimento. A não ser que tenha adotado para si uma ideia de conservadorismo que é só mais uma ideologia, fruto de um autoritarismo latente, ser conservador é ser coerente com a chamada “democracia dos mortos”; é adotar uma postura que não é manipulada ao sabor do vento, nem por figuras carismáticas, mas por tradições imemoriais e pela experiência de nossos antepassados – pelos seus acertos e, também, pelos seus erros.
Por isso, para mim só há um caminho para a direita brasileira: a morte. Essa metástase deve ser extirpada a fim de que algo novo e realmente legítimo surja. Entendo a pressa de muitos, o anseio e a vontade de fazer o país dar certo, mas isso não acontecerá se não tivermos nos preparado para enfrentar, com inteligência, o domínio total das forças que nos subjugam. É preciso avançar com cautela, sem meter os pés pelas mãos, atentando para as consequências de longo prazo de nossas decisões no presente, exercitando as virtudes cardeais (e a fé, para os que a têm), sabendo que o Bem, já diziam os antigos, exige um maior esforço, mas não deixa de recompensar os perseverantes. Passou da hora de abandonarmos as ilusões. Como sou crente, digo amém.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




