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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Ópera

“Porgy and Bess” no Municipal de SP: uma ode ao talento negro

porgy and bess municipal de são paulo
Cena de montagem de "Porgy and Bess", de George Gershwin, no Theatro Municipal de São Paulo. (Foto: Rafael Salvador/Theatro Municipal de São Paulo/Facebook)

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“Fui ao teatro disposta a me divertir, mas sem esperar um turbilhão de emoções [...]. No intervalo, eu já estava inteiramente arrebatada. Havia rido e chorado, vibrado e sofrido, e não imaginava que o segundo ato pudesse despertar novas emoções. [...] Permaneci em meu assento após a cortina cair e deixei que as pessoas passassem por cima dos meus joelhos a fim de alcançarem o corredor. Eu estava atônita. Porgy and Bess havia me mostrado a maior reunião de talento negro que eu já tinha visto.” (Maya Angelou)

O ditado “a ignorância é uma bênção” só é verdadeiro, a meu ver, se interpretarmos a ignorância como uma oportunidade de conhecer. Ou seja, é uma bênção para os curiosos e uma maldição para os acomodados. Descobrir algo que até então ignorávamos é uma das maiores dádivas da humanidade. E foi exatamente isso que pensei ao sair do Theatro Municipal de São Paulo, nos dois últimos fins de semana em que estive lá para ver a montagem da ópera Porgy and Bess, de George Gershwin.

Eu já conhecia Gershwin de Rhapsody in Blue, que meu saudoso pai muito apreciava; e, claro, da magnífica ária Summertime, que recebeu milhares de regravações, dentre elas as célebres de Billie Holiday (a primeira a regravá-la), Ella Fitzgerald, Louis Armstrong e até uma versão eletrizante de Janis Joplin. Entretanto, eu nem sequer sabia que ela fazia parte da ópera Porgy and Bess. Descobri pesquisando sobre a ópera dias antes de ir ao Municipal.

Porgy and Bess é, segundo o próprio Gershwin, uma ópera folk, que mistura brilhantemente a sofisticação da música clássica com elementos da musicalidade e da tradição negra americanas, tais como o jazz, o blues e o gospel, bem como das músicas folclóricas das comunidades ancestrais oriundas do período escravista. Gershwin tinha grande admiração pela música negra e, apesar de dizer que o jazz não era uma música essencialmente negra, mas americana (“Os europeus não conseguem compor jazz”, ele dizia), afirmava que o jazz estava “profundamente enraizado no negro spiritual” e que este era uma das bases fundamentais da música erudita americana.

Porgy and Bess é, segundo George Gershwin, uma ópera folk, que mistura brilhantemente a sofisticação da música clássica com elementos da musicalidade e da tradição negra americanas

No início dos anos 1920, Gershwin se mostrou interessado em misturar elementos clássicos com música popular e tinha particular interesse no que chamou de “jazz ópera”. Em 1925, disse ele – citado por seu biógrafo Howard Pollack, em George Gershwin, his life and work:

“Acho que [uma ópera jazz] deveria ser uma ópera negra, quase uma ‘Scheherazade’ negra. Negra, porque não é incongruente para um negro viver o jazz. Não pareceria absurdo no palco. O clima poderia mudar do êxtase ao lirismo de forma plausível, porque o negro tem muito de ambos em sua natureza. O libreto, penso eu, deveria ser algo imaginativo, caprichoso, como uma história de Carl van Vechten; e eu gostaria de vê-lo escrevê-lo. Esse tipo de ópera não poderia, receio, ser feito no Metropolitan [Opera]. É uma empreitada tipicamente de ópera cômica. Gostaria de vê-la estrear como uma ópera cômica na Broadway. Gostaria de vê-la encenada com um elenco negro. Artistas formados na tradição clássica não poderiam cantar esse tipo de música, mas cantores negros poderiam. Seria uma sensação, além de uma inovação.”

E, posteriormente, afirmou ainda: “Vou escrevê-la para os negros. Os negros cantam lindamente. Estão sempre cantando; têm isso no sangue. Também têm o jazz no sangue, e não tenho dúvidas de que serão capazes de fazer jus a uma ópera jazzística. Não creio que haverá dificuldade excessiva em encontrar protagonistas para as partes solo. Provavelmente também haverá uma orquestra negra”. Ou seja, ele estava, de fato, determinado.

Em 1926 chegou às suas mãos um romance, escrito por DuBose Heyward, intitulado Porgy; ao lê-lo, Gershwin teve certeza de que encontrara a base para sua ópera jazz, uma história com “intensidade dramática e pitadas de humor”. Entrou em contato com o autor, convidando-o para uma colaboração na criação da ópera. Heyward era um daqueles que a escritora Zora Neale Hurston denominava “negrotarians” – corruptela de “humanitarians” para descrever pessoas brancas entusiastas e engajadas na cultura negra americana – e seu romance, segundo Pollack, era “escrito em um estilo único, que combinava inglês padrão para a narração e gullah, misturado com outros dialetos afro-americanos, para os diálogos”, o que levou a obra a receber “elogios por seu retrato incomumente simpático e vívido de uma comunidade negra, até mesmo por leitores negros que, melhor do que muitos críticos brancos, conseguiam avaliar suas deficiências”.

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Aliás, sobre tais “deficiências”, vale adiantar que tanto o romance quanto a ópera receberam muitas críticas de escritores, músicos e intelectuais negros, em anos posteriores, por fazer um retrato, segundo eles, caricatural, folclórico, do negro americano, como alguém, de certo modo, ingênuo, xucro e primitivo. E, claro, acusaram Gershwin de apropriação cultural. O escritor James Baldwin, por exemplo, disse que a obra não representava a cultura negra. Entretanto, nomes como o poeta Langston Hughes, bem como os cantores e cantoras que atuaram na ópera (a exemplo de Leontyne Price e Cab Calloway), a viram como uma oportunidade única não só de enaltecer a cultura negra, bem como de dar oportunidade para uma grande quantidade de artistas negros protagonizarem uma obra artística de grande expressão.

Heyward era nascido em Charleston, na Carolina do Sul, e conviveu, desde criança, com a numerosa comunidade negra local, o que facilitou sua abordagem no livro. Gershwin, no início dos anos 1930, viajou para lá, primeiro para ficar alguns poucos dias, depois para mais de um mês convivendo e pesquisando sobre a comunidade local, a fim de coletar o máximo possível de todo aquele universo. Diz Pollack:

“Uma vez em Charleston, ele explorou, sob a orientação de Heyward, a música negra local, ficando encantado especialmente com os pregões dos vendedores ambulantes da cidade (que bem poderiam tê-lo lembrado da vida em Lower East Side). Também ficou ‘particularmente impressionado’ com o ‘primitivismo’ de alguns cultos religiosos, incluindo a experiência que teve na igreja Macedônia, em Charleston, na qual uma mulher cantou um spiritual que começava com ‘Oh, Dr. Jesus’ [que ele usou na ópera]. (Em uma visita a Charleston após a morte de Gershwin, Kay Swift encontrou uma integrante da igreja Macedônia que recordava que o compositor ‘ia com frequência cantar com eles e que sempre conversava com eles quando aparecia’). Gershwin também se impressionou com ‘a arte da [cidade], a vivacidade das cores nas pedras dos prédios antigos... Tudo se combina para dar ao lugar uma beleza que talvez só se encontre em alguma cidade do Velho Mundo, como Paris’.”

Em sua segunda visita, Gershwin contratou empregados, participou de cultos e reuniões, e comprou um piano para continuar trabalhando na ópera, encontrando-se com Heyward todos os dias, no fim da tarde, para acertos na composição. A experiência nas igrejas negras o fez incluir na ópera muitos elementos de cultos pentecostais, como spirituals, orações responsivas e até o chamado shouting – danças e gritos de exaltação e êxtase durante momentos de música e oração. Numa carta a Hayward, também citada por Pollack, ele disse ter “incluído na cena da tempestade da ópera uma seção ʻcom seis orações diferentes cantadas simultaneamente. Isso tem um pouco o efeito que ouvimos em Hendersonville, quando estávamos do lado de fora da Igreja Holy Rollersʼ”.

Porgy and Bess é uma ópera absolutamente centrada na experiência negra americana. Os temas, as canções, as danças e até os diálogos não possuem aquela universalidade passível de compreensão por qualquer público

Outra curiosidade é que Porgy and Bess é uma ópera absolutamente centrada na experiência negra americana. Os temas, as canções, as danças e até os diálogos não possuem aquela universalidade passível de compreensão por qualquer público. É específica; e, se você não tem qualquer contato com essa tradição, sua experiência com a obra pode ser seriamente prejudicada.

Porgy and Bess narra um período na vida da comunidade negra no distrito fictício de Catfish Row, em Charleston (Carolina do Sul), no início do século 20, centrada na história de amor que se desenvolve entre o mendigo e deficiente físico Porgy e a boêmia e viciada em cocaína Bess, que busca redenção de uma vida conturbada por seu relacionamento abusivo com o violento Crown, e pela presença incômoda do traficante Sportinʼ Life. É um drama com pitadas de um humor leve e descontraído. Contém grande participação de um coro suntuoso e árias de arrebatar, como Summertime, canção de ninar cantada por Clara para embalar o seu filho; e My Manʼs Gone Now, cantada por Serena, viúva de Robbins, assassinado por Crown. Bem como a agridoce I Got Plenty oʼ Nuttinʼ, cantada por Porgy. Como diz Pollack: “Toda a ópera é como uma oração ou rito, cada ato concluindo em um estado de súplica ou exaltação comunitária; até mesmo o jogo de dados começa com uma invocação que reflete sobre a transitoriedade do homem”.

Após anos de idas e vindas, encontros e desencontros, e da entrada do irmão e parceiro de George, Ira Gershwin, para compor algumas letras, Porgy and Bess estreou em 30 de setembro de 1935 no Boston’s Colonial Theater, tendo em seu elenco Todd Duncan, como Porgy, e Anne Brown como Bess. Anos depois, em 1952, uma montagem épica, para uma turnê internacional, foi protagonizada por William Warfield como Porgy, Leontyne Price como Bess, Cab Calloway como Sportinʼ Life, e Maya Angelou como Ruby.

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Pois bem, a montagem no Theatro Municipal de São Paulo teve, em minha maneira de ver, acertos extraordinários e erros grosseiros. A orquestra, como sempre, estava ótima. Não só por minha proximidade e admiração pelo maestro Roberto Minczuk, mas ele é, de fato, um condutor consistente e super engajado na orquestração. No esforço de fazer brilhar não só o elenco, mas uma equipe técnica negra, a direção cênica ficou por conta da atriz, roteirista e diretora Grace Passô, que optou por um cenário clean e abrasileirado, com uma espécie de favela representada por um grande tijolo baiano que tinha, em cada furo, um cômodo de casas e estabelecimentos – com exceção do barraco de Porgy. Decisão bastante criativa, bonita, mas um pouco simplória, exigindo que aquele tijolão fosse virado com o esforço dos próprios cantores e bailarinos, à vista de todos. O fundo do palco vazado, com pessoas passando a todo momento atrás do cenário, foi um tanto constrangedor.

O deslocamento para o contexto brasileiro também atrapalhou consideravelmente a compreensão da trama, pois, como disse anteriormente, Porgy and Bess é uma obra profundamente enraizada numa comunidade negra americana do início do século 20, daqueles plantadores de algodão (um deles, por exemplo, aqui foi substituído por um cantor carregando um maço de algodão doce) e pescadores do Sul dos EUA, com seu sotaque, seus trejeitos, sua religiosidade específica. Algo dificilmente transportável para outro local. Os figurinos, descaracterizados, carregados de brasilidade periférica, também não funcionaram. Os cultos pentecostais também foram descaracterizados, com bailarinos simulando “danças afro”, o que também causou confusão na compreensão das cenas.

Os cantores e bailarinos, com algumas exceções, também não pareciam familiarizados com o contexto da obra original; ou, na tentativa de abrasileirá-lo, se perderam. É uma obra que, para ser realizada, exige, como fez Gershwin, um mergulho naquela cultura. Não quero dizer que não tenham realizado tal estudo – até creio que tenham; porém, não me pareciam à vontade na transposição da realidade negro-americana para a brasileira. Uma comunidade negra americana e pobre do início do séc. XX não tem absolutamente nada a ver com uma favela brasileira no séc. XXI. Nada. Nem o tijolo das casas. A distância do original também prejudicou toda a carga dramática da ópera, a tornando, com exceção de alguns poucos momento, flat. A onipresença do balé – nem sempre bonito – também prejudicou a atenção em algumas cenas. Ademais, os assassinatos (de Robbins e Crown) foram esvaziados de sua necessária violência – e de seu sentido trágico.

A montagem do Municipal teve acertos extraordinários e erros grosseiros. A orquestra e o coro estavam ótimos, mas o deslocamento do cenário para o ambiente brasileiro atrapalhou a compreensão da trama

Destaque para Luiz-Ottavio Faria, no papel de Porgy, e para a soprano americana Latonia Moore, como Bess. Na belíssima montagem do Metropolitan Opera, de 2019/20, que vi no YouTube, Moore interpretou Serena lindamente. Destaque absoluto para a arrebatadora Serena da mezzo-soprano Juliana Taino, que me arrancou lágrimas na ária My Manʼs Gone Now, na minha segunda ida ao Municipal para ver a ópera, dessa vez, na primeira fileira. O barítono sul-africano Bongani J. Kubheka, como o violento Crown, estava muito bem, e igualmente Jean William, como Sportin’ Life (apesar de não ter dado ênfase ao cinismo sedutor e maligno do personagem). Ainda tivemos a soprano colombiana Betty Garcés, como Clara, e a mezzo Edineia Oliveira, interpretando Maria. Esse grupo formava o primeiro elenco. Que sorte a minha.

Os cantores estavam microfonados irregularmente, alguns com volume mais baixo que outros; mas temos, claro, de levar em consideração a desigualdade técnica entre eles, uma vez que tínhamos cantores experientes misturados com outros pouquíssimo expressivos. Mas isso é, creio eu, culpa da própria cena do canto lírico brasileiro, que parece dar pouca oportunidade a cantores e cantoras negras. Precisamos melhorar nisso. Quanto mais se apresentarem, melhor ficarão. O coro estava, como sempre, ótimo. Formado pelos excelentes Coro Lírico Municipal e Coral Paulistano (e convidados), deu um show à parte.

Outro ponto de extremo mau gosto foi terem colocado uma DJ para tocar música eletrônica no hall do teatro, no intervalo e no final da ópera. Um reforço de estereótipo absolutamente desnecessário, para não dizer prejudicial. Não é porque a ópera trata de um tema negro, que temos de ter uma “festa de negro” totalmente fora de hora e contexto, algo que eu nunca tinha visto no Municipal. A concentração no que está ocorrendo na obra faz parte da experiência, e o intervalo não é momento de dispersar a atenção com outro tipo de música ou entretenimento. Eu, por exemplo, até quando saio de um concerto ou ópera, sequer ligo a música no carro, pois vou embora ainda meditando sobre o que acabei de ver/ouvir. Me senti mal representado por aquilo, como se tivessem, em nome da diversidade, aberto espaço para o preconceito e o estereótipo grosseiro. E tenho certeza que grande parte dos habitués do teatro também não gostaram.

Entretanto, ao fim e ao cabo, não posso dizer que não gostei. Gostei muito. Sobretudo por ter visto essa grande quantidade de artistas negros em cena, dando o seu melhor. O leitor que não for negro como eu talvez não compreenda a profundidade emocional disso, uma vez que o “padrão” lhe pertence. Para quem cresceu vendo pessoas negras somente em papéis subalternos no audiovisual brasileiro; para quem vê pouquíssimos artistas negros de destaque em artes consideradas elitizadas – como a música clássica –, para mim esse tipo de representatividade importa muito. Parabéns ao Theatro Municipal, pela ousadia de montar – e nos dar a oportunidade de ver – uma obra tão rica e complexa como Porgy and Bess. Foi inesquecível.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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