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Câmara Conselho Ética
Com o tempo, manter-se no cargo vira um fim em si mesmo, substituindo qualquer pretensão de servir aos cidadãos.| Foto: Bigstock

“Perante uma sociedade sob pressão, e deslocando o diálogo para os seus próprios termos, os membros do governo criam armadilhas para justificar as próprias decisões políticas, aparentemente benéficas para o povo, mas que, na verdade, os favorecem. Não será surpresa, portanto, o mau resultado produzido pela aplicação de ideias maléficas.” (Bruno Garschagen, Pare de acreditar no governo)

Imagine a seguinte situação, caro leitor: você é um brasileiro indignado, muito indignado, cuja atividade profissional, que tanto faz por sua comunidade, sofre com investidas incessantes daqueles que lhe julgam possuir as chaves dos cofres celestiais. Sua indignação é tão grande que você é levado a mobilizar-se contra as injustiças que lhe circundam, e em prol daquilo que acredita. Deus lhe abençoara com o dom da oratória, de modo que cada vez que você se manifesta, em audiências públicas, reuniões de condomínio, no espaço para ouvintes das rádios etc., sua voz é reconhecida como a de alguém capacitado para liderar, para ser a personificação das demandas mais urgentes de seu entorno.

Não demora muito para que seu nome apareça nos círculos da política institucional, nos partidos, entre os manda-chuvas que controlam o jogo de interesses privados que fazem da administração pública o seu feudo mais seguro e rentável. Então você é convidado para uma fatídica reunião e sai de lá com a promessa de uma eleição e uma vida de regalias disponíveis a uma seletíssima classe de afortunados. A partir desse momento, a profecia do eminente Thomas Sowell começa a se cumprir em sua vida: “Ninguém realmente compreenderá a política até entender que os políticos não estão tentando resolver nossos problemas. Eles estão tentando resolver seus próprios problemas – dos quais ser eleito e reeleito é o número um e o número dois. O que quer que seja o número três está muito atrás”.

Com dois meses de mandato, a pergunta “o que preciso fazer para me manter aqui por toda a eternidade?” – e, obviamente, manter o padrão de vida que lhe foi concedido – passará a ser a mais importante a ser respondida

Caso não tenha sido contemplado com as virtudes da hereditariedade, mas, ainda assim, por razões inescrutáveis, sua inata eloquência caia nas graças daqueles que podem inseri-lo no círculo íntimo dos poderosos, em algum momento dormirá um pequeno comerciante abnegado, que se esforça por manter suas obrigações em dia, e acordará um político profissional, cujo árduo trabalho receberá um suporte absolutamente necessário à função, a saber – se deputado estadual: “salário (em torno de R$ 33 mil/mês); duas ajudas de custo, uma no início e outra no final do mandato, no mesmo valor do salário; auxílio-moradia ou uso de apartamento funcional; e atendimento médico e odontológico. Para despesas relativas ao exercício das atividades do mandato, os deputados também têm direito a uma ʻCota Parlamentarʼ e podem utilizar o serviço gráfico da Câmara. Com os recursos da ʻVerba de Gabineteʼ, podem contratar funcionários para trabalhar em seu gabinete, em Brasília ou no estado”. Tudo isso custará àqueles que lhe confiaram o voto algo em torno de R$ 179 mil por mês, ou R$ 2,14 milhões por ano.

Percebe, atento leitor, em que situação complicadíssima lhe envolveremos? Seus quatro anos de serviços prestados à sociedade custarão a esta a bagatela de R$ 8,56 milhões aproximadamente, e caso se não se envolva em nenhuma, digamos, atividade que lhe possibilite gratificações extras. Só de salário será R$ 1,5 milhão. Por fim, ao término de quatro anos, poderá voltar à sua vida de pequeno comerciante, feliz por ter feito sua parte e, é forçoso admitir, acumulado um pequeno patrimônio que lhe permitirá uma considerável – e a muitos quimérica – ascensão social.

Durante os quatro anos de trabalho árduo, seus objetivos e expectativas, vez por outra, serão abalados pelos humores da própria sociedade que o elegeu e, obviamente, pelos interesses daqueles que lhe permitiram adentrar no Olimpo. Tudo bem. Dois meses depois de não precisar pagar um caríssimo plano de saúde para sua família ou ver a luz do combustível acender no carro usado que praticamente conhece o caminho do mecânico, a profecia de Sowell se completa. A pergunta “o que preciso fazer para me manter aqui por toda a eternidade?” – e, obviamente, manter o padrão de vida que lhe foi concedido – passará a ser a mais importante a ser respondida, e aquela indignação inicial e aquele idealismo serão substituídos por um senso de urgência de outra ordem, mais imediato e muito menos nobre.

É a partir desse momento, caro leitor, que se tornará meu algoz, pois passará a viver em função da manutenção do poder que lhe fora concedido, nem que, para isso, seja obrigado a me causar prejuízo – fingindo estar preocupado comigo, claro. Todo esforço de sua legislatura será direcionado a si próprio, a assegurar o seu privilégio agora indispensável – já tratei disso aqui, nesta Gazeta do Povo. Seus projetos de lei, de emendas constitucionais, suas votações em plenário, seus discursos, tudo, absolutamente tudo será motivo para firmar sua posição na oligarquia reinante, usando da boa-fé daqueles que, aqui fora, abandonados à própria sorte, vivem sob sua “proteção”.

Por fim, dentro desse contexto, imagine ainda, amigo leitor, que nessa disputa interna pela manutenção do poder uma importantíssima instância da opinião pública saia de seu controle; que haja um ambiente rebelde, intransigente e anárquico que – ainda que, às vezes, perverso – não só está livre de sua influência, mas consegue expor a sua vulnerabilidade e, mais do que isso, foi há muito dominado por seu antípoda, que aprendeu a manejar tal instância a seu favor, da maneira mais sórdida possível, e, assim, passou a pautar o debate político e eleger figuras que personificam a maior ameaça à sua segurança.

Entendo perfeitamente que sua reação natural seja a de tentar tomar o controle de tal instância, ainda que, para isso, se aproveite de um problema grave e real, apele para o autoritarismo, para a censura e – o horror! – para um discurso canalha de “proteção de nossas crianças” (enquanto tenta, aliás, sorrateiramente, legalizar o aborto). Mas, vá lá, por R$ 8 milhões em quatro anos quem não faria?

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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