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Rosa Passos no SESC com o colunista
Rosa Passos no SESC com o colunista| Foto: Paulo Cruz/Acervo pessoal

“A função específica da arte não é, como comumente se imagina, expor ideias, difundir concepções ou servir de exemplo. O objetivo da arte é preparar uma pessoa para a morte, arar e cultivar sua alma, tornando-a capaz de voltar-se para o bem.” (Andrei Tarkovski)

Foi o contato com o cinema e o pensamento do cineasta Andrei Tarkovski – sobre quem já escrevi nesta Gazeta do Povo – que mudou completamente a minha compreensão sobre o que é Arte. Não como artista, que não sou, mas como um entusiasta e educador, pois vejo a arte como um instrumento fundamental de meu ofício. O livro Esculpir o tempo, em que Tarkovski compartilha suas reflexões a respeito do fazer cinematográfico e da arte em geral, teve sobre mim um impacto avassalador. A sua visão do artista como um servidor, alguém que compreende o seu talento como uma dádiva, fez-me entender e aprender a diferenciar a arte como entretenimento, que é legítima, da arte como vocação e missão espiritual – que a frase em epígrafe evidencia.

E Tarkovski vai além, quando diz que “ao se emocionar com uma obra-prima, uma pessoa começa a ouvir em si própria aquele mesmo chamado da verdade que levou o artista a criá-la. Quando se estabelece uma ligação entre a obra e o seu espectador, este vivencia uma comoção espiritual sublime e purificadora”. O contato com um artista realmente consciente de sua vocação, que estabelece para si o compromisso de comunicar aquela “ânsia eterna e insaciável pelo espiritual, pelo ideal” que só a arte pode proporcionar, é realmente transformador, capaz de mudar nossa vida para sempre e de plantar em nós uma semente da eternidade. Pois foi exatamente esse o efeito que o contato com a música da cantora, compositora e violonista Rosa Passos causou em mim.

Rosa Maria Farias Passos nasceu a 13 de abril de 1952, em Salvador, Bahia, mas mora em Brasília desde o seu casamento com o economista e político Paulo Sérgio Oliveira Passos, na década de 1970. A única de cinco irmãos a enveredar para os caminhos da arte, a caçula da família começou a aprender música ainda criança e aos cinco anos já se destacava ao piano. Mas foi ao ouvir João Gilberto cantando músicas da trilha sonora do filme Orfeu do Carnaval, de Marcel Camus, num compacto duplo apresentado por sua irmã, que sua paixão pelo violão aflorou – e dominou. Ela conta, numa entrevista ao Correio Braziliense, de 2020:

“Estudava piano antes do violão, mas quando minha irmã mais velha levou um disco, compacto duplo, de João Gilberto, que foi trilha sonora do filme Orfeu do carnaval, eu ouvi aquele violão, aquela voz, a divisão sonora que fiquei impactada que, naquele momento, cheguei para meu pai, ainda novinha, com 11 anos de idade, e falei para ele: painho, não quero mais tocar piano, quero violão. A influência de João Gilberto sempre foi muito grande na minha vida. É o meu ídolo, meu mestre. Aprendi com Joãozinho e devo muito a ele, na forma do canto, da dicção, da respiração. Como compositora, admiro Tom Jobim, Ary Barroso, João Bosco, Djavan, Gilberto Gil e Edu Lobo, que são muito importantes.”

Começou a estudar o instrumento de forma autodidata – não sem antes tentarem fazê-la estudar formalmente – e, com isso, criou um estilo próprio de tocar, construindo sua personalidade musical, que é marcante a todos que a ouvem ou veem tocar. Em entrevista à Maria Gabriella Cavalcanti Villar para sua dissertação de mestrado, A performance de Rosa Passos na música popular brasileira, transformada no livro Rosa Passos – uma artista da criação (Appris, 2021), Rosa diz: “Comecei pelo instrumento, tirando de ouvido os discos do João Gilberto, mas ia pelo meu caminho, não eram os mesmos acordes do João”.

Villar complementa: “Intitulando-se autodidata, diz que seu processo de aprendizagem e construção de sua interpretação deu-se de maneira consciente no que tange aos aspectos musicais como levada do violão, aprendizagem de acordes, melodia, ritmo, por ser uma pessoa dedicada, estudiosa, rígida consigo mesma e querer sempre fazer seu melhor, perfeccionista, cuidadosa, e de uma escuta atenta (todos estes adjetivos dados por ela mesma).” Tal postura pareceria ousada a qualquer músico iniciante, mas não para Rosa Passos, que, ao unir talento, dedicação e, sobretudo, compromisso para com a sua vocação, acabou por se tornar uma das maiores – se não a maior – representantes femininas da música brasileira no Brasil e no exterior.

Sua trajetória musical abrange uma carreira internacional consolidada como intérprete, violonista e compositora, iniciada ainda nos anos 1990, primeiro no Japão, depois estendendo-se pela Europa, outros países da Ásia, Estados Unidos e América Latina. Em 2002 recebeu o convite para gravar com o renomado violoncelista Yo-Yo Ma, um álbum em homenagem ao Brasil, saindo em turnê com ele e apresentando-se, em 2003, no lendário Carnegie Hall. Rosa retornaria ao Carnegie em 2005, com Paquito DʼRivera, e, em 2006, para uma apresentação solo, voz e violão, entrando para a seletíssima lista de artistas brasileiros a se apresentar no templo das artes nova-iorquino. Três semanas antes da apresentação, todos os ingressos haviam sido vendidos. Sobre isso, ela diz, em entrevista concedida à Revista Época, em 2006:

“Consegui uma coisa que qualquer artista do mundo gostaria de realizar: subir ao palco do Carnegie Hall e cantar sozinha. Foi o momento mais alto da minha carreira por duas coisas especiais. Primeiro, porque me senti cantando para Deus e, segundo, porque cumpriu-se uma profecia de meu pai, que ele fez quando eu tinha 18 anos. Ele disse: ʻUm dia, com esse talento que você tem, ainda vai cantar no Carnegie Hall. Você vai ver, minha filha, vai chegar láʼ. Tenho a sensação de missão cumprida, de frescor e de realização.”

O papel de Rosa não é centrado em sua popularidade, mas na função de sua arte como fundamento civilizatório; ela encerra todo um tratado de civilização brasileira condensado em sua música

E Yo-Yo Ma, quando estava procurando uma cantora para gravar com ele, ao ouvi-la, disse: “é ela, essa é a minha cantora. A voz dela combina com meu violoncelo. Assim como eu toco para Deus, ela canta para Deus”. Uma comunhão espiritual através da música, que está perfeitamente refletida no álbum e nas apresentações ao vivo. Sua voz angelical, contida e precisa, simbioticamente ligada ao seu violão, é algo realmente divino.

Rosa também se apresentou no Hollywood Bowl (a convite de Wynton Marsalis), no Lincoln Center, no Blue Note e outras casas renomadas pelo mundo. Suas parcerias também contam com artistas do porte de Ron Carter (com quem gravou um álbum belíssimo), Henri Salvador e Kenny Baron. É respeitadíssima não somente como uma cantora de MPB, mas de jazz, comparada a grandes artistas do gênero. Rosa ainda recebeu um título de doutora honoris causa, pela Berklee College of Music, e seus CDs – Entre Amigos, de 2003, Amorosa, de 2004, e Rosa, de 2006 – estão na Biblioteca do Congresso Americano, na categoria Músicas do Mundo. Ou seja, Rosa Passos representa a arte brasileira em seu nível mais elevado, mais sublime, mais perfeito.

Por essas e outras, caro leitor, que a pergunta retórica sobre a importância de Rosa Passos versus sua visibilidade no Brasil – assim como ocorre com outros artistas extraordinários como Moacir Santos –, nos vêm à mente até com certa indignação. Mas a resposta já sabemos. No entanto, penso eu, o papel de Rosa não é centrado em sua popularidade, mas na função de sua arte como fundamento civilizatório; ela encerra todo um tratado de civilização brasileira condensado em sua música. É arte como formação do imaginário de um Brasil que deu certo, que é exemplo para o mundo, que é referência para as próximas gerações; que emociona e educa, que atrai e instrui. É a artistas como ela que recorreremos quando tudo estiver por um fio, quando o estado de barbárie se avizinhar (ainda mais). Não é arte para um grande público, é para todos, mas no momento certo, após o período determinado ao cultivo de algo precioso e redentor.

Nesse sentido, as informações fornecidas por Maria Gabriella Villar são importantíssimas:

“Rosa Passos entende a música como sua missão espiritual. Todas as vezes em que a entrevistei ou em conversas informais, ela ressalta que sua musicalidade está diretamente ligada a Deus. Rosa diz que a música não é sua, foi Deus quem emprestou para ela poder ser canal dos propósitos divinos às pessoas. Por isso, compreende a música como sua missão, na qual se dedica muito para levar ao seu público o melhor de si como intérprete e compositora, fazendo ʻa música do coraçãoʼ, como enfatiza”.

E nisso entendo um propósito que, não obstante o sentido religioso, comunica um fundamento humano que está para além da subjetividade, que fornece à nossa alma um senso de completude, de integridade. Como afirma Tarkovski: “Dentro dessa aura que liga as obras-primas e o público, os melhores aspectos das nossas almas dão-se a conhecer e ansiamos por sua liberação. Nesses momentos, reconhecemos e descobrimos a nós mesmos, chegando às profundidades insondáveis do nosso próprio potencial e às últimas instâncias de nossas emoções.”

E pude sentir isso no último final de semana, em que tive a oportunidade de assistir a uma apresentação de Rosa Passos aqui em São Paulo, cantando e tocando canções de Tom Jobim. Não só sentir, mas refletir a respeito de tudo o que aconteceu ali. A perfeição de absolutamente tudo: iluminação, som, músicos e o carisma – no sentido próprio do tempo, de kharis, graça, favor imerecido –, a voz e o violão de Rosa Passos. O entrosamento e a valorização de seus músicos, com os quais atua há décadas; ter sua própria (e competentíssima) equipe técnica; ter uma ritualística marcante – como o ato de, em todas as apresentações, entregar cinco rosas, de cores diferentes, aleatoriamente, ao público, que Villar nos confirma: “Cada uma tem seu significado. São nas cores: vermelha, que significa o amor, a amarela é para abrir os caminhos, a branca é a paz e a rosa bebê é o amor incondicional. Rosa entra no palco com a rosa vermelha na mão e em seguida oferece para alguém da plateia. Assim o faz com todas as rosas durante o show de forma aleatória. É desta forma que se configura a performance de palco de Rosa Passos, unindo seu estudo musical, sua espiritualidade, sua intuição e sua prática profissional”. Gestos que tornam tudo muito especial.

Rosa faz uma apresentação intimista, de contato direto e íntimo com o público, com seus músicos, com o ambiente; sorri, brinca, usa termos carinhosos para se referir a todos, e, com isso, cria um clima de cumplicidade através de sua arte. Trata-se de uma experiência de participação no melhor sentido do termo. Canta, toca, encanta, abençoa – porque fazer aos pequeninos é fazer a Deus (Mateus 25:40). Ao final, ainda recebe o público e, pacientemente, tira fotos e conversa alegremente por alguns minutos. Fomos embora com a sensação de termos sido arrebatados da mediocridade reinante e partilhado de um banquete espiritual que só a verdadeira arte pode proporcionar.

Vale lembrar que meu contato com a música de Rosa Passos é recente. Sempre ouvi amigos músicos falarem sobre ela, mas foi no Instragram, onde ela, generosamente, compartilha sua arte, que atentei para sua música e fui imediatamente incluído em seu rol de admiradores mais entusiásticos. Por isso sou grato, por isso quis expressar, neste espaço que me é caro, a minha gratidão, e estimular a você, meu atento leitor, caso não conheça a arte de Rosa Passos, que conheça, pois não se arrependerá.

Conteúdo editado por:Bruna Frascolla Bloise
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