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– Adeus – disse a raposa. – Eis o meu segredo. É muito simples: a gente só vê bem quando vê com o coração. O essencial é invisível aos olhos.– O essencial é invisível aos olhos – repetiu o pequeno príncipe, para não se esquecer. (Antoine de Saint-Exupéry, O Pequeno Príncipe)
Antoine Marie Jean-Baptiste Roger, mais conhecido como Antoine de Saint-Exupéry, célebre autor do clássico O Pequeno Príncipe, já foi tema desta coluna no passado. À época, sob o alvorecer de um novo governo comandado por Jair Bolsonaro, dizia eu, comparando o principezinho de Saint-Exupéry ao Príncipe de Maquiavel, que era preciso escolher entre esses dois modelos de governança: o dos príncipes maquiavélicos, que dão “pouca importância à palavra empenhada e souberam envolver com astúcia as mentes dos homens, superando por fim aqueles que se alicerçaram na sinceridade”, ou o do principezinho do planeta B612, que, entendendo as “pessoas grandes” como “muito esquisitas [decididamente bizarras e extraordinárias]”, lida com elas de forma analítica, amorosa, compreensiva e prudente. Mas esse não é o nosso assunto de hoje.
Recentemente, em meu Clube do Livro, lemos outra obra de Saint-Exupéry, Terra dos Homens, considerada por muitos seu melhor livro depois de O Pequeno Príncipe. Publicado em 1939, o livro é uma mistura de memórias de voo, relatos de aventuras e reflexões filosóficas, escritos numa prosa poética, profunda e marcante, já conhecida pelos leitores de O Pequeno Príncipe.
Pioneiro da aviação
Saint-Exupéry nasceu em 29 de junho de 1900, em Lyon, no centro-leste francês. Oriundo de uma família aristocrática, foi apaixonado por aviões desde criança, passando longos períodos, após a morte de seu pai, quando tinha apenas quatro anos, nos castelos de familiares em La Mole e Saint-Maurice-de-Rémens. Este último ficava próximo a um campo experimental de aviação, que ele visitava com frequência, mesmo sob os protestos de sua mãe.
Aos doze anos, teve sua primeira e decisiva experiência de voo, sendo levado, após insistir muito, para um passeio num avião pilotado por Gabriel Wroblewski. Anos depois, viria a se tornar um pioneiro da aviação, pela Força Aérea Francesa e também na lendária companhia Aéropostale, fazendo a rota Toulouse-Dacar transportando correspondências e assumindo, ainda, o posto de gerente de escala no aeródromo de Cabo Juby, na zona espanhola do sul de Marrocos, no Saara, onde tinha de negociar a libertação de aviadores abatidos e feitos reféns por tribos do deserto. Também esteve por um período na Argentina e em várias localidades do Brasil, onde se envolveu com a comunidade de pescadores da Ilha do Campeche, em Florianópolis, recebendo o apelido de “Zé Perri”.
Terra dos Homens narra, dentre outras coisas, as aventuras daqueles destemidos pilotos das primeiras décadas de aviação, refletindo sobre seu espírito aventureiro, camaradagem, solidariedade e perseverança em meio aos grandes perigos de sua atividade, realizada em aeronaves precárias, em voos quase sem instrumentos, dependendo quase exclusivamente do feeling do piloto. Em um trecho curioso sobre os “mapas de voo”, Saint-Exupéry nos conta, cheio de sensibilidade:
“Mas que estranha lição de geografia recebi! Guillaumet não me ensinava a Espanha: ele fazia da Espanha uma amiga para mim. Não me falava nem de hidrografia, nem de populações, nem de pecuária. Não me falava de Guadix, mas de três laranjeiras que existem em um campo, próximo a Guadix: ʻDesconfie delas; é bom assinalá-las aí no mapa...ʼ. E as três laranjeiras tomavam mais espaço na carta que a serra Nevada. Não me falava de Lorca, mas de uma simples fazenda perto de Lorca. Uma fazenda viva. E falava do fazendeiro. E da fazendeira. E aquele casal perdido no espaço, a quinhentos quilômetros de nós, assumia uma importância desmesurada. Bem instalados na vertente de sua montanha, como guardas de um farol, sob as estrelas, aquele homem e aquela mulher estavam sempre prontos a socorrer homens. Tirávamos assim do esquecimento, de sua inconcebível obscuridade, detalhes ignorados de todos os geógrafos do mundo.”
Sua relação com os colegas de profissão, que não raro desapareciam em acidentes nos confins do mundo, com pouquíssimas chances de serem encontrados, ocorria em uma terra que “é ao mesmo tempo deserta e rica”, e que guarda a surpresa de, vez por outra, “pouco a pouco descobrirmos que não ouviremos nunca mais o riso claro daquele companheiro; descobrimos que aquele jardim está fechado para sempre. Então começa nosso verdadeiro luto, que não é desesperado, mas um pouco amargo”. E ele reflete:
“Assim vai a vida. A princípio, enriquecemos; plantamos durante anos, mas os anos chegam em que o tempo destrói esse trabalho, arranca essas árvores. Um a um, os companheiros nos retiram sua sombra. E aos nossos lutos mistura-se então a mágoa secreta de envelhecer. Esta é a moral que Mermoz e tantos outros me ensinaram. A grandeza de uma profissão é talvez, antes de tudo, unir os homens; só há um luxo verdadeiro, o das relações humanas. Trabalhando só pelos bens materiais, construímos nós mesmos nossa prisão. Encerramo-nos lá dentro, solitários, com nossa moeda de cinza que não pode ser trocada por coisa alguma que valha a pena viver.”
Saint-Exupéry é hábil em nos descrever sua paixão por aviões e por voar, bem como sua paixão pelo ser humano; suas descrições dos voos, das dificuldades no ar e da habilidade destemida daqueles pilotos são tão vívidas que nos sentimos parte daquelas aventuras. Em um capítulo em que fala da relação entre a máquina e o homem e das fronteiras da técnica, seu humanismo aflora, e ele começa a dialogar conosco no presente:
“Como é estreito o cenário em que se representa a peça dos ódios, das amizades, das alegrias humanas! De onde foram tirar os homens esse gosto de eternidade, vivendo ao acaso, como vivem, sobre uma lava ainda morna, já ameaçados pelas neves ou pelas areias do futuro? Suas civilizações são enfeites bem frágeis: um vulcão as apaga, ou um mar novo, ou um vento de areia.”
Liberdade e sobrevivência
Dois momentos centrais foram, para mim, os mais impactantes, pois explodem em um sentido de liberdade que, para nós atualmente, é apenas uma metáfora triste – ou, quando muito, uma ideologia pueril. O primeiro é a libertação de um escravo dos mouros. Ele inicia:
“Às vezes o escravo negro, acocorado diante da porta, goza o vento da noite. Naquele corpo pesado de cativo, as lembranças não se agitam mais. Talvez mal se lembre da hora do rapto, das pancadas, dos gritos, dos braços dos homens que o trouxeram para a noite presente. Mergulha, depois disso, num sono estranho, privado, como um cego, de seus rios lentos do Senegal ou de suas cidades brancas do sul de Marrocos, privado, como um surdo, das vozes familiares. Não é desgraçado, esse negro: é doente.”
Ele descreve várias situações que enredam e mutilam a alma de um escravo, até que encontra Bark, “o primeiro que conheci a resistir”.
“Cheio dessas velhas ternuras misteriosamente ressuscitadas”, ele diz, “Bark vinha a mim. Queria me dizer que tudo estava preparado, que todas as suas ternuras estavam preparadas e que apenas lhe faltava, para distribuí-las, voltar para casa. E bastaria um sinal meu. E Bark sorria, me indicando o truque em que com certeza eu não havia pensado ainda: – É amanhã que segue o correio. Me esconde num avião para Agadir...”. Após libertar aquele homem, comprando sua alforria, ele descreve sua emocionante micro-epopeia, ainda ali, diante deles, por alguns dias, antes de retornar para seu povo:
“Bark, na opulência daquela libertação súbita, não sentia ainda bem sua própria ressurreição. Parecia, na verdade, gozar de uma felicidade surda, mas, além dessa liberdade, quase não havia diferença entre o Bark de ontem e o Bark de hoje. Entretanto, dali em diante ele partilhava, em igualdade de condições com os outros homens, o direito ao sol e o direito de se sentar ali, sob o caramanchel de um café árabe. Sentou-se. Mandou vir chá para Abdallah e para si. Era seu primeiro gesto de senhor: seu poder devia transfigurá-lo. Mas o garçom lhe serviu o chá sem surpresa, como se o gesto fosse banal. Não sentia, servindo aquele chá, que estava glorificando um homem livre. […] Bark arrastou ainda Abdallah para a cidade. Errou diante das lojinhas dos judeus, olhou o mar, imaginou que poderia andar à vontade em qualquer direção, que era livre... Mas essa liberdade lhe pareceu amarga: revelava sobretudo como ele estava sem ligação com o mundo.”
Ao receber o sorriso de uma criança, o ex-cativo entrou numa loja, comprou um monte de brinquedos com o dinheiro que lhe deram para a viagem e os distribuiu alegremente:
“Era livre, mas infinitamente livre a ponto de não sentir seu peso sobre a terra. Faltava-lhe o peso das relações humanas que entra na marcha do homem, e as lágrimas, e os adeuses, e as lamentações, e as alegrias, tudo o que um homem acaricia ou ofende sempre que esboça um gesto: esses mil laços que o prendem aos outros, que lhe dão gravidade. Mas sobre Bark já pesavam mil esperanças... E o reino de Bark começou na glória do sol poente sobre Agadir, na frescura da tarde que durante tanto tempo havia sido para ele a única doçura a esperar, a única doçura de todo dia.”
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A outra cena é a reconstituição de seu acidente no deserto da Líbia, entre Bengazi e o Cairo, em companhia de seu mecânico, André Prévot, em 1935. Errando pelo deserto, sem água e vendo miragens, quase morreram de sede. O relato da queda é chocante:
“É inexplicável que estejamos vivos”, ele diz. Uma longa e profunda série de reflexões sobre a condição humana nos lembra de nossa fragilidade, bem como do valor de coisas que, em situações corriqueiras, não damos valor:
“Remexendo os destroços, Prévot achou uma laranja. Nós a repartimos. Isso é para mim um grande acontecimento. Entretanto, é bem pouco, quando precisaríamos de vinte litros de água... Deitado junto ao nosso fogo noturno, contemplo a fruta luminosa e digo para mim mesmo: ʻOs homens não sabem o que é uma laranja...ʼ Digo também: ʻEstamos condenados, mas agora também esta certeza não me estraga o prazer. Esta metade de laranja que tenho na mão é uma das maiores alegrias de minha vida...ʼ.”
Foram resgatados por beduínos quatro dias depois, desidratados e beirando a inconsciência. Não sem antes desesperar, num niilismo assustador:
“Quando me encontrarem, os olhos queimados, imaginarão que gritei muito e sofri muito. Mas os arroubos, as queixas, a ternura do sofrimento – tudo isso ainda são riquezas. E não tenho mais riquezas. As suaves adolescentes, na noite de seu primeiro amor, sentem uma espécie de tristeza e choram. A tristeza está ligada aos frêmitos da vida. E eu não tenho mais tristeza... O deserto sou eu. Já não mais formo saliva; já não mais formo também as doces imagens pelas quais poderia chorar. O sol secou em mim a fonte das lágrimas.”
O valor das vocações
Por fim, duas citações nos colocam no centro dessa percepção de liberdade que somente alguém forjado nos limites humanos, no sofrimento e na glória humanas, e que, por isso mesmo, morreu, como previu, em seu avião, servindo o país na Segunda Guerra Mundial, pode nos ensinar. Ele afirma, no último e apoteótico capítulo:
“Que nos importam as doutrinas políticas que pretendem elevar o homem se, para começar, não sabemos que tipo de homem elas elevarão na terra? Quem vai nascer? Não somos um rebanho na engorda. E a aparição de um Pascal pobre pesa mais que o nascimento de alguns anônimos prósperos. Não sabemos prever o essencial. Cada um de nós conheceu as alegrias mais ardentes onde nada as prometia: elas deixaram em nós uma tal nostalgia, que temos saudades até de nossas misérias, se foram nossas misérias que as permitiram [...]. É preciso, para tentar distinguir o essencial, esquecer por um momento as divisões que, uma vez admitidas, arrastam todo um Alcorão de verdades intocáveis e o fanatismo consequente. Podem-se classificar os homens em homens da direita e homens da esquerda, em corcundas e não-corcundas, em fascistas e democratas, e essas distinções são inatacáveis. Mas a verdade, vós o sabeis, é o que simplifica o mundo, e não o que gera o caos. A verdade é a linguagem que exprime o universal [...]. De nada vale discutir ideologias. Se todas se demonstram, todas também se opõem, e tais discussões fazem desesperar da salvação do homem. Isso quando o homem, em toda parte, ao redor de nós, expõe as mesmas necessidades.”
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O que nos salva, mesmo, é a descoberta e o exercício de nossas vocações:
“Sem dúvida as vocações têm um papel. Uns se encerram em suas lojas. Outros abrem seu caminho, imperiosamente, em uma direção necessária: nós acharemos em germe, em sua infância, os impulsos que explicarão seu destino. Mas a História, escrita depois, engana. Aqueles impulsos nós os encontraríamos em quase todos os homens. Todos conhecemos lojistas que, durante uma noite de naufrágio ou de incêndio, se revelaram maiores que eles próprios. E eles não desprezam essa plenitude que experimentaram: aquele incêndio ficará sendo a noite de suas vidas por excelência. Mas, por falta de novas oportunidades, por falta de terreno favorável, de religião exigente, voltaram a dormir sem ter acreditado na própria grandeza. Certamente as vocações ajudam o homem a se libertar, mas é igualmente necessário libertar as vocações.”
Que a vida e o exemplo de Antoine de Saint-Exupéry, o pai do nosso tão amado principezinho, possa nos inspirar a deixarmos a mediocridade estúpida daqueles que nos tentam encerrar em seus jogos de poder e possamos, em plena liberdade – não essa exterior e instrumental, mas aquela que fez nosso autor afirmar, categórico: “O império do homem é interior” – mudar os rumos de nossa vida e de nosso país.




