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Rasheeda (mais à esquerda) e Lysistrata (com os braços abertos), personagens de “Chiraq”, de Spike Lee.
Rasheeda (mais à esquerda) e Lysistrata (com os braços abertos), personagens de “Chiraq”, de Spike Lee.| Foto: Divulgação

Por tudo isso, vim aqui trazer a Atenas o meu melhor conselho. Não é um crime ter nascido mulher, e minhas palavras devem ser seguidas se puderem curar os nossos infortúnios. A minha contribuição ao Estado, eu a dou em filhos, que alimento e crio. Mas vocês, velhotes miseráveis, não contribuem com coisa alguma para a comunidade. Pelo contrário, malbarataram todo o tesouro que nossos antepassados conquistaram com suor e prudência. E, como compensação, continuam a arriscar a vida de todos os cidadãos e a segurança do Estado com guerras insensatas.” (Aristófanes, Lisístrata)

“O racismo não é um grande problema neste país […]. Meu pai era zelador. Ele nasceu no sul das leis Jim Crow […]. Meu pai, com quase 40 anos, começou um pequeno negócio, conseguiu prosperar um pouco. Isso é o que acontece na América. Criou três meninos e os educou. Temos uma classe média negra próspera. Se a América negra fosse um país […], seria o 15.º país mais rico do mundo.” (Larry Elder, radialista, escritor e ativista conservador)

O Spike Lee dos anos 1990 ficou lá. Talvez o último filme noventista do diretor – com os mesmos temas, abordados da mesma maneira – seja A hora do show (Bamboozled), de 2000, que deixamos de fora de nossa série, mas que recomendo fortemente. Isso, em si mesmo, não é ruim; afinal de contas, um diretor de cinema não precisa necessariamente ficar preso a um tema, e talvez não seja bom que fique, exceto se for um gênio como Ingmar Bergman. Lee, que é um sujeito bastante prolífico, saiu do gênero étnico que o notabilizara e transitou, dentre outras coisas, pelo drama (com A última noite, de 2002), pelo thriller policial (com Um plano perfeito, de 2006) e pelo documentário, com o premiado Os diques se romperam, de 2006, sobre os desdobramentos da tragédia provocada pelo furacão Katrina.

O Spike Lee dos anos 1990 ficou lá. Talvez o último filme noventista do diretor – com os mesmos temas, abordados da mesma maneira – seja A hora do show (Bamboozled), de 2000

Mas dei um salto proposital para encerrar essa série com um filme mais atual, de 2015, e particularmente interessante de Lee, e fazer dois ou três comentários sobre um filme do qual não gosto. Isso porque sou da mesma opinião de C.S. Lewis, que diz: “É muito perigoso escrever sobre algo que você odeia. O ódio obscurece todas as distinções. Eu não gosto de histórias de detetive, e, portanto, todas as histórias de detetive soam, para mim, muito parecidas – se eu escrevesse sobre elas, iria, infalivelmente, escrever disparates”. Mas vamos, primeiro, àquele que considero um bom filme da safra de Spike Lee, apesar dos problemas de roteiro: Chiraq.

Chiraq é uma sátira baseada na comédia Lisístrata, do grego Aristófanes, escrita no século 4.º a.C., que narra a história de como as mulheres gregas forçaram os homens atenienses e espartanos a assinarem um tratado de paz mediante uma curiosa artimanha: uma greve de sexo. Diz a resoluta ativista, na peça: “Reuniremos todas as mulheres da Grécia, incluindo as beócias e as peloponesas. E acabaremos de vez com as lutas fratricidas que nos deixam à mercê dos bárbaros que descem lá do norte”. E adiante, com todas já reunidas: “Pois bem, vocês terão de se abster daquela pequena parte do homem que mais o classifica como tal. Ué, por que viram as costas? Aonde é que vocês vão? Você aí, por que morde os lábios? E você, por que balança a cabeça desse jeito? Estão todas pálidas! Até há algumas amarelas. Mudaram todas de cor. Estão chorando? Respondam, ao menos! Vão ou não cumprir o que prometeram? Qual é a dificuldade?” E, após essa cômica resistência inicial, todas aderem ao propósito.

Spike Lee e o roteirista Kevin Willmott atualizam a peça grega a fim de tratarem de um assunto extremamente delicado nos EUA, os chamados black-on-black crimes, ou seja, a violência de negros contra os próprios negros, que faz um contraponto à narrativa sobre a brutalidade policial. De acordo com a Pesquisa Nacional de Vitimização de Crimes, de 2018, 70,3% dos incidentes violentos sofridos por vítimas negras foram cometidos por criminosos negros. O próprio Lee, que concentra a história em Chicago, decidiu fazer o filme após saber de um assassinato, na cidade, envolvendo uma criança de 9 anos, Tyshawn Lee. Seu pai era membro de uma gangue e o menino foi morto em retaliação. Lee disse: “Não foi um policial que matou Tyshawn Lee [...]. Não podemos ignorar que estamos matando uns aos outros também”. Na narração inicial do filme, ouvimos, atônitos:

“2001 até hoje: 2.349 americanos foram mortos na guerra do Afeganistão. 2003 a 2011: 4.424 americanos foram mortos na guerra do Iraque. 2001 a 2015: 7.356 assassinatos em Chicago. Os homicídios em Chicago, Illinois, superam o número de mortos das forças especiais americanas no Iraque. Mais de 400 crianças em idade escolar foram mortas esse ano. Na semana do 4 de Julho de 2015, dia da Independência americana, 55 pessoas foram alvejadas e feridas; 10 morreram, incluindo um garoto de 7 anos. Onde estava a liberdade deles? Onde estava seu direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade?”

Lee, que é de Nova York, sofreu duras críticas por fazer um filme sobre Chicago; mas se defendeu, dizendo numa entrevista à Chicago Magazine: “A cidade de Nova York tem três vezes a população de Chicago; Chicago tem mais homicídios que Nova York. Na semana passada, [o site] The Daily Beast publicou uma reportagem de primeira página dizendo que Chicago é a cidade número um na América em assassinatos em massa [na verdade, para tiroteios em massa, definidos como três ou mais pessoas baleadas em um único incidente]. Chicago é a garota-propaganda [da violência]. Eu não estou inventando essas coisas”.

“Não foi um policial que matou Tyshawn Lee [...]. Não podemos ignorar que estamos matando uns aos outros também.”

Spike Lee, sobre a morte de um garoto de 9 anos morto em retaliação porque seu pai era membro de uma gangue de Chicago.

Até o genial Chance The Rapper, que nasceu e vive em Chicago, criticou (muito!) Lee, dizendo que “a ideia de que as mulheres se abstendo de sexo impediriam assassinatos é ofensiva e um tapa na cara de qualquer mãe que perdeu um filho aqui”, e chamou o filme de patético, explorador e problemático. Mas Lee se defendeu – provocando, como sempre: “Se você fizer uma pesquisa sobre Chicago, veja se encontra alguma crítica dele ao prefeito. Você se surpreenderá, pois ele não critica o prefeito. Por quê? Porque o pai dele trabalha para o prefeito!” – o pai de Chance, Ken Williams-Bennett, foi chefe de gabinete do ex-prefeito Rahm Emmanuel (de 2011 a 2019). Lee ainda disse que o nome “Chi-Raq” [corruptela de Chicago + Iraque] não foi inventado por ele, mas por rappers de Chicago; e o conhecido padre e ativista social Michael Pfleger, que conduz uma paróquia na periferia de Chicago há mais de 40 anos – no filme, ele é representado por John Cusack, sob o nome de Mike Corridan –, defendeu Lee, dizendo que Deus estava do lado deles. E a todos que reclamaram que o nome “Chi-Raq” é pejorativo e poderia afastar o turismo, Pfleger disse: “Para aqueles preocupados com o turismo... se estão preocupados, ajudem a resolver o problema. Dê-nos empregos, oportunidades, desenvolvimento econômico. Parem um governador que está acabando com programas para jovens”.

No filme, Lysistrata (Teyona Parris) se reúne com Rasheeda (Anya Engel-Adams) – na peça, ela se chama Cleonice –, a fim de solucionarem o problema das gangues de Chicago com a mesma estratégia da comédia grega. Há a mesma resistência e relutância das mulheres convocadas; mas, em nome da paz, decidem levar o plano adiante. Os chefões rivais são Demetrius Dupree (Nick Cannon), apelidado de “Chi-Raq”, e Ciclope (Wesley Snipes), que se desesperam, assim como todos os homens da cidade, com tal resolução. Samuel L. Jackson faz a função de coro, como Dolmedes, e há ainda a sábia conselheira Miss Helen (Angela Bassett) e a jovem Irene (Jennifer Hudson), que perde a filha assassinada pelo membro de uma gangue – o que move a protagonista ao plano de abstinência.

As falas são versificadas, o que aumenta a teatralidade do filme, mas o elemento cômico, que na peça funciona muitíssimo bem, no filme soa patético além do ponto, mas diverte. A proposta de uma competição sexual entre Lysistrata e Chi-Raq, que o filme propõe, é uma liberdade do roteiro que também não funciona muito bem. Mas, no geral, o filme é interessante, com a crítica às instituições na medida certa, e também critica com veemência as gangues. Numa cena, Dolmedes, ladeado por um policial e por um membro de gangue, diz: “Vamos ser sinceros. Policiais e gangsters, negros e pardos presos no meio disso. Está tudo em chamas, pessoal. Posso ouvir a rabeca do Nero. Não se pode confiar na polícia nem nas gangues. Isso tudo é insano!” – e os dois soltam uma rajada de balas.

Curiosamente, Lee também baseia sua história em Leymah Gbowee, uma ativista da Libéria que utilizou a mesma tática – e mais uma série de protestos – para pôr fim a uma longa guerra étnica em seu país, em 2003. Apesar de dizer que a abstenção sexual teve pouco efeito prático, gerou uma consciência nas mulheres, que se envolveram na luta pela paz. Em 2011, Gbowee foi galardoada com um Prêmio Nobel da Paz por seu trabalho, e sua história está registrada no livro autobiográfico Guerreiras da Paz.

Lisístrata, a peça, termina com um grande festejo entre as mulheres e seus maridos. Chiraq termina reflexivo, com Demetrius, que reluta muito em assinar o acordo, mas, no fim, se arrepende pelo mal que causara à sua comunidade. Com direito até a uma tirada em Benjamin Carson – o médico herói americano, odiado por “progressistas” por ser conservador, cuja espetacular cinebiografia, Mãos Talentosas, está disponível no Netflix –, Spike Lee reconta a comédia grega à maneira do gueto, com relativo sucesso. A crítica no site de Roger Ebert é bastante favorável, dizendo:

Chiraq, de Spike Lee, ganhou mais do que seu quinhão de controvérsias de pessoas que nem viram o filme. Quando o fizerem, a narrativa mudará. Deixaremos de reclamar do título e não teremos de ler mais nenhuma bobagem que explique a sátira a um cineasta essencial. O trabalho fala por si, e o que diz é alto, raivoso, apaixonado e emocional. Com Chiraq, Spike Lee fez seu filme mais necessário em anos, canalizando questões tão antigas quanto Lisístrata, de Aristófanes, no qual o filme é vagamente baseado, através das vozes de homens e mulheres jovens na capital do assassinato dos Estados Unidos.”

Concordo com Ebert, pois, na minha avaliação, o que aconteceu com Spike Lee é que, se ele começou como um cineasta que também era militante, atualmente ele é mais militante que cineasta, e seus filmes não mais comunicam a complexidade das relações raciais nos EUA; antes, se concentram em encontrar culpados para o mal que atinge a comunidade negra americana. Com isso, o panfleto, a militância, vem antes da arte, não depois ou mesmo junto. Chiraq foi como que um respiro após uma sucessão de filmes bem medianos.

Se Spike Lee começou como um cineasta militante, atualmente ele é mais militante que cineasta, e seus filmes não mais comunicam a complexidade das relações raciais nos EUA

Mas seus dois últimos longas são um exemplo dessa, digamos, perda de capacidade narrativa. Infiltrado na Klan e Destacamento Blood são extremamente panfletários e, com isso, a história simplesmente não anda. Infiltrado é um filme adorado por toda a militância negra atual que, muito provavelmente, desconhece a filmografia essencial do diretor – tratada nessa série. Não há comparação entre a verossimilhança de Faça a coisa certa e Infiltrado na Klan. Aquele traz a ficção à realidade com todas as suas idiossincrasias. Este pega uma história verídica e a torna hospedeira de uma crítica que se quer fazer na atualidade, no contexto atual (tendência de filmes que tratam da temática negra na atualidade, cuja crítica já apresentei aqui, nesta Gazeta do Povo), o que, em minha visão, configura anacronismo. Lee termina o filme, que é de 2018, com uma crítica, escancarada mas totalmente desconectada da história, a Donald Trump.

Óbvio que a militância dirá que as coisas não mudaram desde que os eventos de Infiltrado na Klan aconteceram, em 1978. Pode até ser, mas há sérias controvérsias de que a culpa é única e exclusivamente da polícia ou dos políticos republicanos. Aliás, Chiraq, ficção que, de novo, desnuda a realidade, mostra que não. O abandono dos pais também é um sério problema, levantado por Lee indiretamente na sátira.

Por isso, julgo que Spike Lee não só é um cineasta irregular, mas alguém que, mais recentemente, decidiu operar mais frontalmente de acordo com a militância de movimentos radicais como o Black Lives Matter, e isso faz dele um cineasta menor, mas não menos importante, o que, obviamente, justificou essa série que se encerra.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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