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Zelda Harris no papel de Troy, em Crooklyn, de Spike Lee.
Zelda Harris no papel de Troy, em Crooklyn, de Spike Lee.| Foto: Divulgação

“Não é cor, é cultura. Steven Spielberg fez A Lista de Schindler. Martin Scorsese fez Os Bons Companheiros, certo? Steven Spielberg poderia dirigir Os Bons Companheiros. Martin Scorsese provavelmente poderia ter feito um bom trabalho com A Lista de Schindler. Mas há diferenças culturais. Eu sei, você sabe, todos nós sabemos o que é quando um pente quente bate na sua cabeça numa manhã de domingo, qual é o cheiro. Essa é uma diferença cultural, não apenas diferença de cor.” (Denzel Washington)

A família é um dos temas mais importantes nas discussões sobre negritude. Recentemente escrevi sobre isso, aqui mesmo, nesta Gazeta do Povo, demonstrando que sua função primordial é “reconhecer, proteger e tornar possível e estável a união dos esposos e assegurar a sobrevivência e criação dos filhos”. Que a segurança e o futuro de uma criança dependem, em grande medida, da estabilidade de um lar; como o próprio Mano Brown falou em seu podcast – algo que reproduzi no artigo supracitado – que “o começo é pela família, o começo é com uma disciplina, uma certa ordem na vida que às vezes nos falta”.

O gênio Thomas Sowell sempre traz essa discussão à tona, criticando o fato de a família negra americana ter sido deteriorada pelo welfare state, pelo Estado de Bem-Estar Social implantado, sobretudo, pelo presidente Lyndon B. Johnson, na década de 1969, em sua Guerra contra a Pobreza. Sowell diz, em Fatos e falácias da economia: “Enquanto 31% das crianças negras eram filhas de mulheres solteiras no começo da década de 1930, essa proporção aumentou para 77% no começo da década de 1990. Se tal condição fosse um ʻlegado da escravidãoʼ, então por que isso seria tão menos comum entre os negros de duas gerações mais próximas da época da escravidão?” E arremata:

“(...) enquanto a maioria das crianças negras ainda era criada em famílias formadas por pai e mãe até 1970, esse número tinha passado para apenas um terço em 1995. Além disso, boa parte da patologia social está altamente correlacionada com a ausência de um pai, tanto entre negros quanto entre brancos, mas a magnitude do problema é maior entre os negros porque a ausência paterna é mais frequente em famílias negras.”

A família é um dos temas mais importantes nas discussões sobre negritude. A segurança e o futuro de uma criança dependem, em grande medida, da estabilidade de um lar

O sétimo filme de Spike Lee, Crooklyn, aborda essa questão, mas com uma belíssima inversão do triste paradigma. Em vez de retratar famílias negras deterioradas, ou mesmo pessoas negras envolvidas em gangues e crimes, Lee resolveu investir – após o sucesso estrondoso de Malcolm X – em algo mais intimista e positivo. Ele quis resgatar, de certa forma, um mundo que não existe mais – atualmente, com as redes sociais, essa realidade é ainda mais remota. Ele diz: “Nós tínhamos infância”. E complementa:

“A pior coisa que poderia acontecer com a gente era algum garoto ensanguentar seu nariz voltando da escola. Tínhamos pistolas de água, bazucas do G.I. Joe; você sabe, armas de brinquedo. Hoje em dia as crianças têm armas de verdade. E as crianças [daquele tempo] não foram expostas às drogas. Não dá para dizer que não havia heroína ou maconha, mas as crianças não foram expostas a isso. Nunca tive de me preocupar em entrar em brigas ou pensar: ‘Será que vou ser atingido por uma bala perdida?’.”

O filme, cujo roteiro foi escrito por ele, pela irmã Joie Lee – costumeira colaboradora em seus filmes, como atriz – e seu irmão mais novo, Cinqué Lee, tem traços autobiográficos, mas Lee adverte: “Nunca vi esse filme como um filme sobre minha família. Havia certas coisas que se assemelhavam à nossa família, e que, na verdade, são a nossa família. Mas é muito, muito vagamente baseado em [nossas] lembranças de crescimento. Nós sempre vimos isso como um filme, não a história da família Lee”.

O filme conta a história da família Carmichael, de Woody (Delroy Lindo), um músico profissional, Carolyn (Alfre Woodard), e seus cinco filhos: Clinton (Carlton Williams), Wendell (Sharif Rashed), Nate (Chris Knowings), Joseph (Tse-Mach Washington) e a pequena Troy (maravilhosamente interpretada por Zelda Harris), a única menina e em quem a história é centrada. Troy está na fase de transição entre a infância e adolescência, descobrindo o mundo feminino enquanto ainda é chamada de “Troy the Boy” pelo irmão e pelos amigos da rua. A rua, aliás, lembra muito os bons tempos de infância de minha geração, com crianças brincando de pião, jogando amarelinha, pulando corda e apostando corrida. A sequência de abertura é uma obra-prima em si mesma, com a clássica People Make The World Go Round, do grupo The Stylistics, tocando, enquanto cenas de várias brincadeiras da época vão passando na tela.

Woody, inspirado em Bill Lee, pai de Spike, é um pianista que está lutando por sua música e não quer abrir mão da qualidade em nome da quantidade; o problema é que isso não traz dinheiro para casa, o que gera um conflito com a paciente Carolyn, que sustenta a casa sozinha e acaba o colocando para fora, sob protesto dos filhos. Mas sua expulsão dura pouco, pois Woody não é um homem mau; muito pelo contrário, é o pai amoroso e dedicado que toda criança deseja ter. E isso já nos fornece um contraste poderoso com a situação atual dos EUA e do Brasil, onde, nas periferias, a maioria das crianças está crescendo em lares sem os pais. Nos EUA esse número chega a 75%, o que tem gerado, inclusive, críticas de famosos, como Denzel Washington e o pastor que fez o funeral da diva Aretha Franklin – assunto sobre o qual escrevi nesta Gazeta do Povo. No Brasil, dois em cada três adolescentes que cometem crimes não têm o pai em casa.

Spike Lee sabe disso, e tal quadro já era um problema em 1994, quando o filme foi realizado. Filmes clássicos como New Jack City e Boyz n the Hood, apesar de maravilhosos, já retratavam a criminalidade e o problema das gangues que assolam a comunidade negra americana, tema do qual Lee quis, deliberadamente, escapar com Crooklyn. Ele diz, no livro de Dennis Abrams: “Eu queria mostrar que, apesar do que a América Branca pensa, há pelo menos uma família – uma família em [um] filme de Hollywood, este ano – onde ambos os pais estão lá, onde a mãe não está drogada, andando pelas esquinas, onde a família não recebe assistência social, os filhos não são estupradores e assaltantes, e as filhas não engravidam aos 8 anos. [Os Carmichaels] são uma família normal que luta, discute e ama. Mas eles não são disfuncionais”. As únicas figuras que destoam da atmosfera tranquila da fílmica Bedford–Stuyvesant, no Brooklyn (origem da corruptela que dá nome ao filme), cenário da infância do próprio Lee, são dois cheiradores de cola – um deles, vivido por Spike Lee – que vivem a perturbar a vizinhança, e um vizinho branco cuja falta de higiene faz o mau cheiro de sua casa invadir a casa dos Carmichael.

Woody não é um homem mau; muito pelo contrário, é o pai amoroso e dedicado que toda criança deseja ter. E isso já nos fornece um contraste poderoso com a situação atual dos EUA e do Brasil, onde, nas periferias, a maioria das crianças está crescendo em lares sem os pais

E mais uma vez Spike Lee consegue traduzir todo o universo cultural negro americano como nenhum outro diretor conseguiria fazer – como bem exemplificou Denzel Washington no texto em epígrafe, ao falar sobre seu filme Fences, adaptação da peça de August Wilson, com ele e Viola Davis. Diz Abrams:

“Como todos os filmes de Lee, Crooklyn tem um sabor distinto de preto. A moda e o cabelo do dia são trazidos de volta com força total, e a experiência de escolher um [cabelo] afro e ser forçado a comer feijão fradinho são lembradas em momentos hilários da vida negra. Toda a ação se desenrola contra duas dúzias de clássicos do soul, de artistas como Staple Singers, Aretha Franklin, Jackson 5, Stevie Wonder e Stylistics, que ajudaram a trazer a era de volta à vida.”

Sobre a trilha sonora, perfeita, que faz a música onipresente no filme, devo lembrar o leitor de minha crítica à recente série Them, do Amazon Prime, que tenta usar o mesmo recurso, mas que soa absolutamente artificial. Como diz o genial diretor Robert Bresson: “Generalidade da música, que não corresponde à generalidade de um filme. Exaltação que impede as outras exaltações”. Ou, ainda: “Quantos filmes remendados pela música! Inunda-se um filme de música. Impede-se de ver que não há nada nessas imagens”. Mas, no caso de Crooklyn, isso não ocorre, pois soa natural, como a vida de qualquer pessoa, como eu, que cresceu num ambiente em que a música era uma presença constante dos acontecimentos.

O que Lee faz com Crooklyn é um filme simples, bonito, sensível e carregado de orgulho negro – no melhor sentido do termo

Outra curiosidade é que, num determinado momento – por causa do corte de energia de sua casa, por falta de pagamento –, Troy precisa passar uns dias na casa de uma prima de classe média, filha do irmão de Woody, no Sul. Lee faz as cenas desse núcleo com a imagem distorcida, para mostrar a falta de acomodação de Troy àquela realidade tão diferente da sua, bem como para mostrar a alienação daquela família, que parece viver em outro mundo. À época, o público estranhou tanto essas cenas, pensando se tratar de um problema, que os cinemas, depois de um tempo, tiveram de colocar um aviso na tela dizendo que era intencional.

Por fim, uma tragédia se abate sobre a família, com a súbita morte de Carolyn, o que os leva a uma duríssima reestruturação, com Troy, de certo modo, assumindo o papel da mãe. A sequência final é muito emocionante. O que Lee faz com Crooklyn é prover um momento de paz e tranquilidade para o seu público, um momento de “reagrupar”, como ele disse à época, após a pancada que foi Malcolm X. E conseguiu. Fez um filme simples, bonito, sensível e carregado de orgulho negro – no melhor sentido do termo –, mas, ao mesmo tempo, com pitadas de reflexão importantes para uma população que segue sendo marginalizada e colocada numa posição perene de subalternidade.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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