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Cena da cinebiografia “I Wanna Dance With Somebody – A história de Whitney Houston”.
Cena da cinebiografia “I Wanna Dance With Somebody – A história de Whitney Houston”.| Foto: Divulgação

“Há homens verdadeiramente privilegiados. Embora muitas vezes no seu nascer os cerquem os horrores da pobreza e de uma condição triste e desprotegida, eles elevam-se como águias que não nasceram para pairar nas planícies e só procuram as regiões altas. Frederico Douglass é uma dessas organizações heroicas e grandes.” (José do Patrocínio sobre Frederick Douglass, em 1883, na Gazeta da Tarde)

A cultura ocidental foi construída sobre referências bastante sólidas: Homero (e seus heróis Aquiles e Ulisses), Abraão, Moisés, Cleópatra, Sócrates, Sêneca, Jesus Cristo, Maria Madalena, Joana DʼArc são algumas dessas grandes figuras que representam o horizonte moral que nutriu o Ocidente por milênios. Impolutas, grandiloquentes, algo misteriosas; e, até que começassem a surgir as narrativas que complexificam suas vidas e ações, esses homens e mulheres serviram para alimentar virtudes, direcionar caminhos, definir personalidades, e são nossos modelos exemplares até hoje.

Todas essas importantíssimas referências ocidentais são vistas – e assim foram retratadas por muito tempo – como brancas. E se, moralmente, isso não faz qualquer diferença, imaginativamente conta muito; sobretudo num país como o nosso, cuja colonização teve como sustentáculo a escravidão negra e, em muitos aspectos, a demonização de tudo o que proviesse da África a fim de sustentar a desumanização que o tráfico e a própria escravização provocavam. Negro, no Brasil, era sinônimo de escravo ou primitivo; não à toa, indígenas eram chamados, pelos primeiros jesuítas a chegarem no Brasil, de negros da terra, e os africanos, de negros da Guiné. Ou mesmo a depreciação propriamente religiosa – já tratada por mim aqui, aqui e aqui –, que via a religiosidade e a mitologia africanas como demoníacas.

Todas as importantíssimas referências ocidentais são vistas – e assim foram retratadas por muito tempo – como brancas. E se, moralmente, isso não faz qualquer diferença, imaginativamente conta muito; sobretudo num país como o nosso

Até pouquíssimo tempo – até os anos 1990, para ser mais exato –, era praticamente impossível ver negros em comerciais de qualquer produto que fosse, ainda que os consumissem à exaustão. Lembro-me da alegria de ver o surgimento de revistas como a Raça Brasil, cuja primeira publicação foi em setembro de 1996, mostrando pessoas negras comuns (não artistas já conhecidos) com roupas de grife – coisa que só era possível ver em revistas americanas como a Ebony. Nas novelas era a mesma coisa: sobravam os papéis subalternos ou de escravos nos dramas de época. Ou seja, a construção da identidade do negro brasileiro – para negros e não negros – fora reduzida não só à periferia geográfica, mas também imaginativa. Mesmo o movimento abolicionista, cujos expoentes negros não me canso de exaltar nesta coluna, ficou circunscrito à assinatura da Lei Áurea pela Princesa Imperial e, quando muito, à notável figura de Joaquim Nabuco, um homem branco da aristocracia.

A reconstrução dessa identidade é um dos trabalhos a que tenho me dedicado, dando destaque a médicos como Juliano Moreira, engenheiros como Theodoro Sampaio, políticos como Antônio Pereira Rebouças, filósofos como Tobias Barreto, artistas geniais como Moacir Santos e Benjamim de Oliveira, escritoras como Carolina Maria de Jesus, e tantos outros luminares negros que foram relegados ao esquecimento por uma cultura que subalterniza implacavelmente os negros.

Tudo isso me veio à memória ao assistir à mais recente cinebiografia da inigualável Whitney Houston, dirigida por Kasi Lemmons. A tragédia de Houston todos conhecemos: a maior cantora de sua geração e uma das maiores de todos os tempos sucumbiu à drogadicção e morreu afogada em uma banheira em consequência de uma overdose. Seu casamento conturbado com o cantor Bobby Brown e, mais recentemente, a revelação de seu relacionamento amoroso com a amiga de infância e diretora criativa Robyn Crawford; tudo isso é mais que notório. Sua vida já foi virada do avesso por programas sensacionalistas, por outras cinebiografias, e o filme de Lemmons, apesar de, em certa medida, respeitar o legado de Whitney – por exemplo, não mostrando a cantora usando drogas ou mesmo no estado deplorável em que sabemos que ela ficou no pico do vício –, parece ter sido feito com um único propósito: dar destaque à figura de Clive Davis – que é um dos produtores do longa – e, sobretudo, a Robyn Crawford.

Terminei o filme com uma boa impressão – creio que levado pela excepcional e muito emocionante apresentação que o encerra –, mas, ao refletir por alguns minutos, pensei: “ora, qual o propósito desse filme? Não trouxe nenhuma informação relevante, tampouco exaltou adequadamente a estupenda carreira de Houston e sua voz divinal. Na verdade parece mais um filme sobre Robyn Crawford”. O relacionamento entre as duas, a resistência da família, bem como sua influência na carreira da cantora são colocados em evidência de modo que tudo o mais fica em segundo plano. Não que Robyn não mereça o seu lugar na história, que lhe fora negado por tanto tempo. Mas todos já conhecemos a história e creio que, inclusive pelos livros que publicou contando a sua versão dos fatos, a justiça já lhe tenha sido feita. Mas o filme colocou isso em relevo como nenhum outro fizera.

Entretanto, o que me levou a esse artigo não foi o filme em si, que é só mediano – exceção honrosa seja feita à interpretação de Naomi Ackie e à reconstituição vocal das apresentações originais de Whitney Houston, que podemos ouvir nas performances da atriz –, mas o comentário do crítico de música (e treteiro profissional) Régis Tadeu em seu canal no YouTube. A preocupação do crítico era, mais do que tudo, era com a verdade. Ele se diz sempre desconfiado de cinebiografias, pois costumam edulcorar a vida dos biografados, escondendo do público os podres dos artistas. Segundo ele, “eles atiram, em termos de objetivo, naquilo que pode causar a celebração, a comoção com os fãs, e quase nunca acertam na verdade”. São filmes, como ele diz, “chapa-branca”.

Agora, a pergunta é: por que evidenciar os defeitos de um grande artista se o mais importante é o seu legado, sua arte? O que, para efeitos de alimentar a cultura e a imaginação moral de uma sociedade, o drama de Whitney Houston com as drogas ajuda? Qual a relevância disso para as gerações mais jovens, por exemplo, que não conheceram Whitney Houston e não têm ideia de sua absurda capacidade vocal? Nenhuma. A iconoclastia, nesse caso, serve a quem? Quem se alimenta disso?

Se ao Ocidente foi permitida a fundamentação de sua imaginação moral baseada em expoentes racializados ao longo da história, por que não permitir que se reconstrua a imagem de figuras negras importantes sem que, a cada instante, surja algum iconoclasta para colocá-las em suspeita?

Hans Christian Andersen tem um conto maravilhoso – Uma questão de imaginação –, sobre um rapaz que tinha um sonho de ser escritor; ou melhor: não propriamente de ser escritor, mas de “ganhar a vida servindo as musas”. Foi visitar uma velha sábia a fim de obter alguma orientação. Ela lhe empresta os óculos e o aparelho de surdez mágicos, que lhe permitem ouvir histórias contadas por batatas e abrunheiros, e depois lhe diz para andar no meio de alguns viajantes que passavam pela estrada. Mas lhe adverte: “não o trouxe aqui para escutar a história de cada um desses viajantes. Quero que entre no meio deles, escute o que estão dizendo e tente compreendê-los com o seu coração. Verá, então, que eles têm uma porção de ideias interessantes, sobre as quais valeria a pena escrever”. No entanto, ele diz que não está conseguindo ver ou enxergar mais nada, e pergunta o que fazer. Ela lhe responde: “Não sei. Imaginação é uma coisa que ou se tem, ou não se tem. Não há como ensiná-la”. E, à sua confissão de que deseja “ganhar a vida” escrevendo, ela lhe diz: “Ah, então esse é seu sonho? […] Então, pode se arranjar […]. Compre algumas máscaras e vá assustar os poetas, fazendo-lhes caretas. Mesmo quando compreender o que eles dizem, não se impressione: critique seus escritos, arrase com eles. Isso haverá de render-lhe polpudos honorários, e você logo estará em condições de sustentar família”. Ou seja, se não tem talento, torne-se um crítico e ganhe dinheiro com isso.

E, para terminar, voltando ao argumento inicial, em se tratando de referências negras, já tão vilipendiadas pela história, a quem interessa a desmistificação? A quem interessa alardear, por exemplo, mesmo sem informação fidedigna alguma, que Zumbi tinha escravos (tratei disso aqui)? A quem interessa dizer que Aleijadinho nunca existiu de fato? Ou que Martin Luther King Jr. era adúltero? Não quero dizer com isso que as pessoas não têm o direito de saber sobre as falhas de seus ídolos, ou que a iconoclastia é sempre errada. Ou, ainda, que as biografias de expoentes negros devem ser intocadas, e suas idiossincrasias suprimidas, a fim de satisfazer à militância identitária. A questão é: se ao Ocidente foi permitida a fundamentação de sua imaginação moral baseada em expoentes que foram racializados ao longo da história – quem não lembra do Jesus loirinho? –, à custa, inclusive, da demonização de tudo o que era negro por séculos, por que não permitir que se reconstrua a imagem de figuras negras importantes sem que, a cada instante, surja algum iconoclasta para colocá-las em suspeita?

Pois é, é isso. Se o prazer do iconoclasta é, esfregando as mãos como um vilão de cinema, mostrar que os grandes ícones da humanidade foram apenas seres humanos, cheios de falhas – às vezes graves –, cabe aos defensores de uma cultura baseada em referências excepcionais, exaltar a sua excepcionalidade; afinal de contas, ao tentar destruir a reputação de alguém cujo talento lhe é inalcançável, o iconoclasta só nos oferece em troca o seu ego. Dito isso, que a arte de Whitney Houston possa nos inspirar sempre.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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