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Silvio Almeida etarismo
Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos e defensor da tese do “racismo estrutural”.| Foto: Reprodução/ Twitter

“Os símbolos de dogmatismo ideológico que dominam o pensamento contemporâneo nas sociedades ocidentais expressam não a realidade do conhecimento, mas uma revolta contra ele. Não tentam levar os homens à participação pela persuasão; ao contrário, são desenvolvidos na forma de uma linguagem obsessiva desenhada para prevenir o contato com a realidade pelos homens que se fecharam contra o fundamento.” (Eric Voegelin, Anamnese)

Uma das mais importantes disciplinas para o exercício do pensamento filosófico, e sua propedêutica mais necessária, é a lógica, que trata da validade argumentativa através do encadeamento correto de premissas – já tratei disso aqui, nesta Gazeta do Povo. Ou seja, como diz Irving M. Copy, em seu clássico Introdução à lógica, “ao lógico só interessa a correção do processo, uma vez completado. Sua interrogação é sempre esta: a conclusão a que se chegou deriva das premissas usadas ou pressupostas? Se as premissas fornecem bases ou boas provas para a conclusão, se a afirmação da verdade das premissas garante a afirmação de que a conclusão também é verdadeira, então o raciocínio é correto. No caso contrário, é incorreto. A distinção entre o raciocínio correto e o incorreto é o problema central que incumbe à lógica tratar”. Não se trata, portanto, de buscar a verdade de uma proposição, mas sua validade.

À noção de validade dos argumentos em lógica segue-se o estudo de suas deturpações, chamadas de falácias. Como diz Irmã Miriam Joseph, em seu estudo do Trivium, “uma falácia é uma violação de princípio lógico disfarçada sob uma aparência de validade; é um erro em andamento. A falsidade é um erro de fato. A falácia surge de uma relação de proposições errônea; a falsidade, de uma relação de termos errônea. Uma premissa pode ser falsa; um raciocínio pode ser falacioso”.

Sílvio Almeida, no livro que se tornou uma espécie de Santo Graal na (in)compreensão do racismo brasileiro, parte de uma falácia lógica das mais corriqueiras, a petitio principii

Pois bem, a primeira vez em que tratei do termo racismo estrutural aqui nesta coluna foi em 2018, e minha tentativa, naquele momento, era somente tentar compreender o conceito a partir de uma análise de suas premissas. Um conceito composto pode exigir um nível de definições não desprezível para ser válido. Ou seja, definir o que é racismo e o que é estrutura é o mínimo que se espera de qualquer um que pretenda defender esse conceito.

Como não havia, à época – ainda não tinha o livro do agora ministro Sílvio Almeida em mãos –, encontrado um conceito de estrutura que viesse da própria teoria, utilizei o que encontrei no Dicionário de Filosofia de José Ferrater; e disse, a partir de uma série de afirmações feitas por Almeida num vídeo sobre o tema: “se o racismo estrutural constitui – ou seja, integra essencialmente as relações sociais no Brasil –, então deve ser encarado, na definição de Ferrater Mora, como um sistema. E se é um sistema, ou seja – também segundo Ferrater Mora –, ʻum conjunto de elementos relacionados entre si funcionalmenteʼ, suas partes são indissociáveis e seu todo é organizado de modo que funcione sem erros. Qualquer elemento que saia do sistema prejudica o seu funcionamento”.

Bem, de posse do livro de Almeida, a dificuldade inicial tampouco se desfez, pois, para meu completo espanto, não há qualquer definição de estrutura social. Ou seja, ou o autor parte do princípio que sabemos do que ele está falando ou quer nos enredar numa falácia conceitual. E aqui valer-me-ei da crítica a esse problema feita por um autor de esquerda, Jessé Souza, em seu livro Como o racismo criou o Brasil: “Precisamente por ser uma categoria que promete muito – ou seja, o desvelamento profundo da essência do racismo na sociedade –, mas entrega pouco mais que um nome mágico e uma alusão ao que fica escondido, é inevitável despertar um sentimento de impotência e frustração em quem busca entendê-la”. E conclui que o que Almeida nos entrega é “uma petição de princípio: a mera referência a uma ʻestruturaʼ indeterminada e vazia de conteúdo” (grifo meu).

Ou seja, Sílvio Almeida, no livro que se tornou uma espécie de Santo Graal na (in)compreensão do racismo brasileiro, parte de uma falácia lógica das mais corriqueiras, a petitio principii, assim definida pela Irmã Miriam Joseph no Trivium:

“A falácia de presumir que já está nas premissas a proposição por provar, isto é, a conclusão – ou uma proposição ampla o suficiente para incluir aquela por provar. Em outras palavras, o argumento é falacioso porque uma tese não pode servir de fundamento à veracidade dessa mesma tese. A conclusão presumida nas premissas usualmente está oculta sob sinônimos, de modo que as identidades das proposições são menos óbvias.”

Ele sugere um argumento circular em que o racismo é estrutural porque as estruturas sociais condicionam as relações sociais. E, segundo ele, como as estruturas sociais condicionam as relações sociais? Pelo modo como as relações foram estruturadas historicamente: “o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ʻnormalʼ com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural”. E acrescenta: “O racismo é parte de um processo social que ocorre ʻpelas costas dos indivíduos e lhes parece legado pela tradiçãoʼ”.

Só é possível aceitar a teoria social de Sílvio Almeida caso aceitemos previamente os conceitos que ele se recusa a definir, mas trata como verdades apodíticas

Entretanto, para escapar da ideia de estrutura como um sistema que deve funcionar independentemente dos indivíduos e de modo irreversível, ele se vale de uma única frase do sociólogo Anthony Giddens – que deve ser oriunda de um conceito de estrutura que ele, novamente, não se dá o trabalho de definir –, que afirma ser a estrutura “ʻviabilizadora, não apenas restritoraʼ, o que torna possível que as ações repetidas de muitos indivíduos transformem as estruturas sociais”. Ou seja, podemos alterar as estruturas sociais por meio da “tomada de posturas e da adoção de práticas antirracistas”. E a argumentação central do livro, que se dá praticamente toda no primeiro capítulo – de onde tirei todas as citações até aqui –, termina com outra petição de princípio, ao afirmar que o racismo é um processo político: “O racismo é processo político. Político porque, como processo sistêmico de discriminação que influencia a organização da sociedade, depende de poder político; caso contrário seria inviável a discriminação sistemática de grupos sociais inteiros”.

Daí, atento leitor, é forçoso admitir que só é possível aceitar a teoria social de Sílvio Almeida caso aceitemos previamente os conceitos que ele se recusa a definir, mas trata como verdades apodíticas.

E, ao que tudo indica, toda a aceitação – da mídia, de parte considerável da academia, de artistas, influenciadores e toda a militância barulhenta atual – se dá única e exclusivamente por um argumento de autoridade: a teoria é correta porque foi o Sílvio Almeida, o brilhante “advogado, filósofo e professor universitário brasileiro, atual ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil. Reconhecido como um dos grandes especialistas brasileiros acerca da questão racial, [e que] preside o Instituto Luiz Gama” (Wikipedia) quem a desenvolveu. Não é necessário ler o livro; mas, se ler, não é necessário compreender, basta dizer que entendeu. Funciona como uma religião secular, na qual a doutrina do pecado original é flagrantemente emulada, “mas”, como eu disse em artigo de 2021, “com um detalhe devastador: não há redenção”. Racismo estrutural se tornou uma doutrina para qual as pessoas dizem “amém” sem qualquer perspectiva de serem redimidas.

Por isso, quando vi, no último fim de semana, mais um intelectual de esquerda – dessa vez, o sociólogo Muniz Sodré – dizer, em entrevista, que falta base científica para a teoria do racismo estrutural, vejo que, pelo menos nesse ponto, não estou sozinho. Sodré diz: “Se dissermos que o racismo é uma estrutura, temos que mostrar qual é a interdependência dos elementos. Aí você diria que, quando se vai selecionar alguém para um emprego, só brancos são selecionados. Mas a estrutura é formal, tem uma forma escrita ou uma forma de costumes que é reconhecida por todos. A discriminação racial no Brasil não é reconhecida por ninguém. Nenhum Estado ou governante se diz racista. Às vezes, os racistas mais atrozes diziam que não eram racistas”. E, apesar de dizer que não tem “nada contra falar em racismo estrutural, porque acho que, do ponto de vista político, é bom, é fácil” e crer que o racismo no Brasil é institucional, sua constatação de que falta profundidade à teoria se irmana à minha.

Porém, no senso comum da internet já se cristalizou a teoria não por sua precisão conceitual, mas pela facilidade (superficialidade) de explicar as desigualdades brasileiras. Por exemplo: não há negros nas diretorias das grandes empresas por causa do racismo estrutural; jovens negros morrem mais que jovens brancos por causa do racismo estrutural; negros ganham menos que brancos por causa do racismo estrutural. E por aí vai. Todas essas afirmações são baseadas em estatísticas – aquela famigerada arte de torturar os números para que eles confessem – produzidas por institutos que creem nos resultados antes mesmo de analisar os dados. Não preciso dizer o quão falacioso é esse argumento. Aliás, eu já disse, aqui. Os resultados de pesquisas estatísticas não podem ser assumidos sem a interpretação correta dos dados. Negros podem ganhar menos que brancos por uma série de fatores para além da discriminação: “Uma coisa quase nunca abordada nessas pesquisas é a liberdade individual e as circunstâncias que envolvem as escolhas pessoais. Como se as pessoas escolhessem suas faculdades e profissões preocupadas em corresponder às estatísticas de equidade racial/social; como se a causa de, por exemplo, termos menos negros nos cursos de Medicina fosse somente o racismo”. E o pulo do gato da teoria é dizer que as coisas são assim sem precisar provar, pois negá-la é, para todos os efeitos, afirmar sua existência factual.

Mas há ainda a questão da visão de mundo empregada na avaliação da teoria – e é nesse ponto em que minha perspectiva se separa de Muniz Sodré e de Jessé Souza. Ambos, como intelectuais de esquerda, pensam a partir das categorias foucaultianas – e marxistas – de dominação. Assim como Almeida, esses pensadores creem que o racismo é um processo político de dominação. Nesse sentido, as estruturas sociais, políticas, jurídicas e econômicas têm como fundamento o racismo, ele é o “modo normal” como se constituem tais relações. Portanto, se essas estruturas são inerentemente racistas, a proposta de solução – não explicitada no livro de Almeida – torna-se um sério problema para mim. Por exemplo, Almeida diz, não no livro, mas numa entrevista, que “o racismo funciona, como já nos ensinou Foucault, como tecnologia de poder que permite a ʻmetabolizaçãoʼ da desigualdade inerente ao capitalismo e como forma de naturalização da morte daqueles que não forem passíveis de incorporação a essa lógica”. Ou seja, para ele o capitalismo é intrinsecamente racista. E, se não é difícil uma pessoa de esquerda concordar com isso, quem não é de esquerda, como eu, jamais concordará. E não se trata de estar certo ou errado, mas de compreender que esse antagonismo, nesse nível, é intransponível. São perspectivas que estão em disputa há séculos, sem possibilidade de conciliação.

No senso comum da internet já se cristalizou a teoria do racismo estrutural não por sua precisão conceitual, mas pela facilidade (superficialidade) de explicar as desigualdades brasileiras

Por isso, num nível interpretativo é possível concordar ou discordar; é do jogo. O problema é quando se torna a regra geral e absoluta a que as pessoas recorrem para interpretar o racismo no Brasil. Porque se todos aceitarmos a teoria, seremos obrigados a aceitar a solução, como proposta pelo mentor de Sílvio Almeida, o jurista marxista Alysson Mascaro: “a solução para o racismo estrutural é a revolução”.

Será que todas as pessoas que endossam a teoria de Almeida endossam essa proposta de solução? Porque, nesse sentido, se a teoria de Almeida está correta, concordo com Mascaro: não me parece possível solucionar um problema que está entranhado nas estruturas sociais apenas com a “implementação de práticas antirracistas”. É necessário uma ruptura com a ordem institucional vigente, uma vez que a mera adoção de políticas públicas (ações afirmativas) para combater o racismo não será capaz de modificar nem as estruturas, tampouco as atitudes individuais. Por exemplo: a implementação de vagas destinadas a pessoas negras não impedirá que uma chefia racista prejudique de alguma maneira – não facilmente identificável – os que preencherem essas vagas.

Portanto, não se trata somente de uma rusga semântica, nem de dar um nome diferente ao mesmo fenômeno, mas de um modo de compreensão da realidade. Para  mim, o racismo que se processa no Brasil é o mais complexo do mundo não por ser estrutural, mas porque a ele soma-se toda uma cultura de subalternização do negro – que atinge a todos –, oriunda da escravidão, e o completo abandono da população pobre do país diante de sua formação oligárquica – sobretudo a partir da proclamação da República, do coronelismo e das teorias eugênicas de branqueamento como política de Estado –, que tem como modelo perpétuo principalmente a burocratização, a manutenção de privilégios, o bovarismo (tratado de maneira exemplar no conto A teoria do Medalhão, de Machado de Assis, e no ensaio Nosso maior mal, de Sílvio Romero) e – o  mais grave, para mim – a falta de liberdade para o que André Rebouças chamou de iniciativa individual e espírito de associação. Os motivos pelos quais a elite econômica brasileira mantém seus privilégios não estão fundamentados diretamente no racismo, uma vez que o branco pobre também sofre as mesmas privações – não negando que a questão racial seja uma agravante –, mas numa lógica alimentada pelo capitalismo de compadrio e pelo patrimonialismo.

Ou seja, para mim, a solução – se é possível usar esse termo – para o problema do racismo no Brasil é, para além das mudanças que o Estado pode produzir (como a mudança do modelo de tributação), uma educação para a liberdade e a conscientização dessa cultura de subalternização que ainda faz com que pessoas negras sejam discriminadas, mesmo por pessoas que não são racistas, por puro preconceito. É mais demorado? Certamente. Mas é mais efetivo, pois ataca um problema real e não uma abstração teórica. A mudança se dará pela educação, não pela ruptura; mudando a cultura, não as estruturas.

E por que eu separo isso do racismo? Porque para mim o racismo de fato é um processo sempre consciente e individual – exercido, inclusive, por pessoas que ocupam importantes lugares nas mais variadas instituições. Já tratei dessa diferenciação aqui. Com isso, não estou obrigando ninguém a concordar comigo, apenas pontuando por que não concordo com a teoria de Sílvio Almeida e apresentando meus modestos argumentos. E acho realmente uma pena que as pessoas estejam adotando bovinamente uma teoria revolucionária sem ao menos se darem conta disso. A consequência não será a solução, mas a intensificação do problema ao nível do conflito aberto – o que, inclusive, já está ocorrendo. Mas essa sempre foi a proposta da esquerda, não?

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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