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Começou ontem e termina hoje, na cidade de Tianjin, na China, a reunião de cúpula da Organização para Cooperação de Xangai. Um evento realizado a tamanha distância do Brasil, em outras circunstâncias, talvez não merecesse ser tema de um artigo de opinião como este. Mas, no cenário atual de enorme complexidade, este e outros acontecimentos que ocorrerão na China durante esta semana merecem um olhar atento.
A Organização para Cooperação de Xangai, fundada em 2001 com foco em questões de segurança, notadamente o enfrentamento do terrorismo, foi gradualmente se tornando um fórum de discussões mais amplo, abordando temas que vão do comércio a outras preocupações do chamado “Sul Global”.
Atualmente, o bloco é constituído por dez estados-membros: Bielorrússia, Índia, Irã, Cazaquistão, China, Quirguistão, Paquistão, Rússia, Tajiquistão e Uzbequistão. Além disso, conta com dois “estados observadores” – Mongólia e Afeganistão – e catorze “parceiros de diálogo”, dentre eles a Turquia, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos.
A cúpula deste ano, realizada em meio à barafunda econômica global causada pelas tarifas impostas pelos EUA, serve de palco perfeito para a China tentar se apresentar como um contraponto a Washington. Xi Jinping exibe a cidade portuária de Tianjin, local do encontro, como uma espécie de porto seguro aos países que enfrentam o maremoto alfandegário trumpista.
Entre os participantes, a presença da Índia chama especial atenção. Um dos dois países mais atingidos pelas tarifas impostas pelo governo Trump – o outro, como todos sabem, é o Brasil – está representado em Tianjin por seu líder máximo, Narendra Modi.
É a primeira vez, desde 2019, que Modi visita a China, país rival com o qual a Índia mantém um histórico de relações bastante conturbadas
Em 2020, um incidente na região de Galwan, na fronteira sino-indiana, resultou na morte de dezenas de militares de ambos os lados.
Na reunião bilateral ocorrida às margens do evento, em frente às câmeras de televisão, Xi disse a Modi que as questões de fronteira não deveriam ser o fator determinante nas relações entre seus países e que o “dragão” (a China) e o “elefante” (a Índia) “devem caminhar juntos como parceiros e amigos”.
Xi também lembrou que ambos são líderes dos dois países mais populosos do mundo: “os interesses de 2,8 bilhões de pessoas de ambos os países estão vinculados à nossa cooperação. Isso também abrirá caminho para o bem-estar de toda a humanidade”.
A Índia é geopoliticamente fundamental para os EUA em sua estratégia de contenção da China. Isso foi reconhecido por sucessivos governos norte-americanos, que se empenharam, nas últimas décadas, em aprofundar os laços entre os dois países, considerados “as duas maiores democracias do mundo”. Essa estratégia sempre tolerou a postura independente da política externa indiana, que busca múltiplas parcerias em vez de um alinhamento automático com Washington.
Essa equação vinha funcionando bem até aqui, no que era considerado essencial para os EUA: manter China e Índia afastadas. A questão fronteiriça certamente contribuiu para esse distanciamento, e a prova disso foram os longos anos de intervalo desde a última visita do primeiro-ministro indiano ao vizinho chinês.
Trump, entretanto, mudou tudo. Primeiro, irritou profundamente Nova Délhi ao se declarar mediador de um cessar-fogo entre Índia e Paquistão, no conflito ocorrido em maio passado. A Índia negou publicamente a “intermediação”, já que historicamente rejeita interferências externas em suas disputas com Islamabad.
Em seguida, veio o golpe mais duro: o anúncio de que os EUA imporiam tarifas de 50% aos produtos indianos – mais altas até mesmo do que as destinadas à China! A medida foi justificada pelo fato de os indianos estarem comprando muito petróleo russo e, com isso, “financiando a Rússia” em sua guerra contra a Ucrânia.
A tarifação foi a senha para que Modi dobrasse a aposta na política externa independente. Em menos de um mês, enviou seu chanceler a Moscou e recebeu, em Nova Délhi, o principal diplomata chinês. Logo depois, decidiu ele mesmo participar da reunião em Tianjin.
Trump talvez imaginasse que a Índia, duramente tarifada, fosse correr para os EUA em busca de um acordo. Não foi o que aconteceu. Ao contrário: o que se vê é a possibilidade de um importante aliado estar sendo empurrado para os braços do adversário.
Um erro estratégico que pode custar caro a Washington, justamente no momento em que cultivar aliados – e não afastá-los – seria a melhor forma de proteger os interesses norte-americanos.




