Ouça este conteúdo
Na semana passada, Pete Hegseth, Secretário de Defesa dos Estados Unidos, em entrevista à rede de televisão Fox News, referindo-se às Américas do Sul e Central, disse que os EUA iriam “recuperar o seu quintal”.
O contexto da entrevista era o debate sobre como os norte-americanos deveriam agir para recuperar a influência sobre a região que, segundo ele, foi deixada de lado a partir do governo Obama — o que teria permitido que a China a “tomasse”, passando a exercer uma influência contrária aos interesses do seu país.
A declaração de Hegseth foi dada em uma entrevista na qual ele explicava os novos acordos militares que acabara de celebrar, em nome dos EUA, com o governo do Panamá.
Esses acordos ampliam significativamente a presença militar norte-americana no entorno do Canal do Panamá, via de acesso estratégico e de enorme importância, por onde transitam 40% de todos os contêineres destinados ou enviados a partir dos EUA.
O memorando de entendimento permite que os EUA enviem militares para três antigas bases no país — desocupadas em 1999, quando o Panamá assumiu o controle do canal.
Segundo o Tratado de Neutralidade do Canal, celebrado entre os EUA e o Panamá em 1979, nenhuma potência estrangeira poderia manter forças, bases ou instalações militares no território panamenho.
Para driblar essa disposição, o atual acordo prevê que as tropas norte-americanas sejam enviadas de forma temporária. Pelo texto, poderão utilizar locais, instalações e áreas designadas para conduzir treinamentos, atividades humanitárias, exercícios, visitas, armazenar ou instalar propriedades dos EUA e realizar quaisquer outras atividades conforme mutuamente acordado entre as duas partes.
Um segundo acordo celebrado entre os dois países abre caminho para que os navios da Marinha e da Guarda Costeira dos EUA sejam reembolsados pelas taxas pagas ao canal, bem como recebam preferência de passagem.
Tudo isso ocorre na esteira da prioridade estabelecida pelo presidente Trump, desde o primeiro dia de seu mandato, de “retomar o controle do Canal do Panamá”, que, segundo seu ponto de vista, passou a ser controlado pelos chineses, em detrimento dos interesses norte-americanos: “A China está operando o Canal do Panamá. E nós não o demos à China. Nós o demos ao Panamá, e estamos recuperando-o”, foram as palavras do presidente Trump à época.
A presença chinesa no canal dá-se principalmente por intermédio de uma empresa de Hong Kong, a CK Hutchison Holdings, que opera dois dos cinco portos existentes no entorno da hidrovia: os portos de Balboa, no Oceano Pacífico, e Cristóbal, no Oceano Atlântico.
Poucos dias após a posse do presidente Trump, a empresa anunciou que venderia o controle dos portos à norte-americana BlackRock, como parte de um negócio de US$ 22,8 bilhões, envolvendo a venda de 45 portos em todo o mundo.
A inclusão dos portos panamenhos no pacote foi amplamente interpretada como uma vitória do presidente Trump. Entretanto, às vésperas da formalização da venda, o governo chinês impediu a concretização do negócio.
A Administração Estatal de Regulamentação de Mercado da China divulgou que revisaria o acordo para “proteger a concorrência justa do mercado e o interesse público”.
Em mais uma reviravolta do caso, às vésperas da chegada de Hegseth ao país, o controlador-geral do Panamá, responsável por auditar as finanças públicas, divulgou que a CK Hutchison não havia renovado adequadamente seu contrato para operar os portos em 2021 e devia ao governo do Panamá US$ 300 milhões em taxas.
Dessa forma, o governo panamenho poderá, em última instância, decidir cassar a concessão dos portos à CK Hutchison e abrir novas licitações para os direitos de operação.
A pressão norte-americana sobre o Panamá já havia redundado, em fevereiro, no anúncio feito pelo presidente Mulino de que o país se retiraria da Iniciativa Cinturão e Rota.
Trata-se de um notável revés político para a China, uma vez que o Panamá foi o primeiro país latino-americano a formalizar a entrada no programa chinês de desenvolvimento de projetos de infraestrutura
Essa disputa em torno do Canal do Panamá — que agora ganha contornos militares e está inserida no quadro mais amplo da guerra comercial entre EUA e China — não se restringirá ao Panamá.
Hegseth, em sua entrevista, falou em “recuperar o quintal”, nas Américas Central e do Sul. Talvez, o jovem secretário de Segurança dos EUA não tenha a experiência necessária para compreender o quanto a expressão “recuperar o quintal” repercute mal entre os latino-americanos. A fala, mais do que um tropeço retórico, reativa antigas feridas da política hemisférica.
A ideia de que a América Latina é um “quintal” a ser recuperado remete ao tempo das intervenções e dos protetorados, fazendo tábula rasa da soberania dos países da região.
Em tempos de competição entre grandes potências, o retorno da presença militar norte-americana ao Panamá deve ser cuidadosamente avaliado por seus efeitos geopolíticos e simbólicos.
Para o Brasil e seus vizinhos, o desafio será preservar a autonomia estratégica, sem cair na armadilha de alinhar-se incondicionalmente a qualquer dos lados.
Afinal, nem quintal de Washington, nem instrumento de Pequim em sua disputa com os EUA. A América Latina precisa ser tratada — e, para isso, deve comportar-se — como uma região autônoma em um mundo multipolar.
VEJA TAMBÉM:
Conteúdo editado por: Aline Menezes