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Gasto público do governo tem, em geral, três fontes de financiamento: arrecadação, endividamento e emissão monetária.
Gasto público do governo tem, em geral, três fontes de financiamento: arrecadação, endividamento e emissão monetária.| Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

Até o início da pandemia, dizia-se que o governo brasileiro estava quebrado. O Estado não tinha dinheiro para estimular a economia, nem para implementar programas sociais ambiciosos. Após a pandemia, o que vimos foi o programa social mais ambicioso do século. O déficit primário do governo central foi de R$ 95 bilhões em 2019 e deve ultrapassar os R$ 800 bilhões em 2020. Como isso aconteceu? Como é que o dinheiro do governo acabou e depois apareceu de novo?

Muita gente viu, neste jogo de palavras, uma evidência definitiva sobre a vileza da agenda de ajuste fiscal. Como o auxílio emergencial foi possível, deduz-se que, antes da pandemia, o dinheiro não tinha acabado. Consequentemente, seguindo estas premissas, o discurso fiscalista sempre foi uma grande mentira. Discordo das premissas e da conclusão.

Na coluna de hoje, além de responder este argumento, pretendo abordar uma questão fundamental que raramente é respondida em linguagem simples, sem economês, para não-economistas: qual o limite para os gastos públicos?

Quanto o governo tem para gastar?

O limite dos gastos públicos é determinado pelas suas fontes de financiamento.

Toda despesa pública deve necessariamente ter uma fonte de financiamento. Os economistas costumam dividir em três: arrecadação, endividamento e emissão monetária. As três fontes estão associadas a seus custos. Aumentar a arrecadação através de novos impostos geralmente desestimula a atividade econômica. A dívida pública precisa ser paga, e pode sair bem cara quando associada a uma alta taxa de juros – na prática, é uma transferência intertemporal: a dívida sacrifica a arrecadação de amanhã para financiar gastos hoje. Por fim, há o caso da emissão monetária, usualmente associada à inflação.

Cada fonte de financiamento limita o gasto público de uma forma. Não pretendo me aprofundar na emissão monetária porque, por lei, o Banco Central não pode simplesmente emitir moeda para financiar o governo federal.

Consequentemente, temos uma resposta preliminar para o caso brasileiro: o governo só pode gastar o que consegue financiar através do aumento da arrecadação ou do déficit/dívida. Para construir uma resposta mais adequada à complexidade da pergunta, é preciso analisar o que limita essas duas fontes de financiamento. A história recente do Brasil nos fornece os exemplos necessários.

Os limites do financiamento pela arrecadação

A atual série histórica do Resultado do Tesouro Nacional começa em 1997 e, a partir daí, os números são confiáveis e comparáveis com os atuais.

De 1997 a 2007, a despesa primária do governo federal saiu de 14% para 16,9% do PIB. Já a receita cresceu mais ainda, saindo de 14,2% para 19% do PIB. Como resultado da arrecadação crescendo mais que o gasto, o superávit aumentou de 0,2% para 2,1% do PIB. É importante observar que crescer como porcentagem do PIB é mais do que crescer: o governo federal ficou mais pesado, pois cresceu mais que a economia, mais que a renda dos contribuintes.

Ou seja, entre 1997 e 2007, a arrecadação foi a principal fonte de financiamento do governo. O crescimento da receita foi tão grande que conseguiu, simultaneamente, financiar a expansão dos gastos públicos e do superávit primário, o que permitiu reduzir a dívida e o déficit público. Para alcançar este objetivo, a carga tributária teve que subir. O aumento de impostos ajudou a desgastar a imagem de FHC durante o segundo mandato e de Lula durante o início do primeiro mandato.

Na política nacional, o ano de 2007 também ficou marcado pelo que muitos consideram como a maior derrota de Lula no Congresso: o fim da CPMF. Apesar da enorme popularidade do então presidente, e de sua ampla maioria parlamentar, a sociedade se mobilizou para barrar a prorrogação da CPMF. O baque nas receitas foi relevante. A CPMF representava 7% da arrecadação líquida, ou 1,3% do PIB.

O modo como a sociedade brasileira reagiu a esse aumento de carga tributária me permite começar a responder à pergunta do título. Um dos fatores que limita os gastos públicos é político: nem sempre a sociedade está disposta a pagar mais impostos. Há tempos, venho ressaltando a importância de 2007 no processo que levou as contas públicas para o vermelho a partir de 2014. Uma marca histórica daquele ano foi o pico da arrecadação administrada pela Receita Federal, que inclui a maioria dos tributos.

Aumentar impostos não é a única forma de aumentar a arrecadação. Vendas de ativos públicos ou dividendos de estatais podem financiar gastos, e foi precisamente esta ferramenta que o governo Lula usou para empurrar o desequilíbrio fiscal com a barriga entre 2007 e 2010. O aumento da arrecadação associado à formalização da economia, com trabalhadores antes informais passando a contribuir para o INSS, também ajudou.

A arrecadação estatal basicamente consiste em agentes privados transferindo dinheiro para o Estado. Essa fonte de financiamento é limitada, de diversas formas, pela disposição dos agentes privados em transferir esses recursos. Esses agentes podem resistir politicamente contra aumentos de impostos ou não participar dos leilões de ativos públicos que o governo tenta vender.

Os limites do financiamento por endividamento

Assim como o financiamento por arrecadação exige agentes privados dispostos a repassar dinheiro para o governo, o mesmo acontece com a via do endividamento. É preciso que existam pessoas dispostas a comprar títulos da dívida pública e, assim, financiar o governo. Quando pouca gente está disposta a comprar esses títulos, o jeito é oferecer uma taxa de juros maior para compensar esse risco.

Os governos FHC e Lula seguiram algumas linhas mestras em comum: ambos aceitaram um crescimento da despesa, mas elevaram ainda mais a arrecadação, com o objetivo de conciliar o aumento do Estado com a estabilização da economia. Os limites desta solução ficaram evidentes com o tempo. Um deles é que, por não resolver o crescimento estrutural da despesa, o Brasil continuou com problemas de credibilidade fiscal. O superávit primário permitiu que os juros caíssem, mas continuassem extremamente altos na comparação com outros países.

No governo Dilma, o superávit primário saiu de 2,1% do PIB em 2011 para -2,6% do PIB em 2016. Essa variação negativa de 4,7 pontos percentuais expressa tanto um crescimento das despesas quanto uma queda das receitas como porcentagem do PIB. Com a queda do superávit, veio o aumento da dívida pública. De 2014 a 2017, a dívida bruta, segundo a metodologia do FMI, saiu de 62,3% para 83,7% do PIB.

Os limites do financiamento por endividamento ficam evidentes ainda no primeiro mandato de Dilma. Com o superávit primário caindo vertiginosamente aumentam as preocupações sobre a credibilidade fiscal e, consequentemente, vem a pressão pelo aumento da taxa de juros.

Quando o governo resiste a alinhar os juros com o risco associado aos títulos públicos, diversos desequilíbrios começam a aparecer. Sob Dilma, um dentre muitos desequilíbrios foi na inflação. Inicialmente, a inflação começou a descarrilhar, ficando persistentemente bem acima da meta entre 2010 e 2016.

Por isso, a taxa Selic começou a subir ainda em 2013 e disparou a partir da eleição de 2014, chegando a 14,25% em 2015, permanecendo nesse patamar por mais de um ano. Com o aumento da taxa de juros, o custo de continuar financiando os gastos com endividamento ficaram altos demais. Foi por isso que, junto com o aumento da Selic, o ajuste fiscal apareceu subitamente na agenda de Dilma Rousseff.

Algumas discussões acadêmicas recentes têm questionado a dívida pública como indicador de sustentabilidade das contas de um governo. Mesmo abstraindo as polêmicas mais divisivas, não existe um número máximo para a dívida pública. O que realmente limita o financiamento de gastos via endividamento é a taxa de juros. Neste caso, a taxa esperada a longo prazo é especialmente relevante.

A Selic, taxa de juros determinada pelo Banco Central, refere-se somente ao curtíssimo prazo, e geralmente reflete a situação do mercado de trabalho e da inflação. Os chamados “juros longos” são determinados pelo mercado e refletem a expectativa sobre a taxa de juros daqui a alguns anos.

O que aconteceu na pandemia?

Com as ferramentas e conceitos acima, já é possível responder à questão do primeiro parágrafo.

Não, o dinheiro não tinha “acabado” antes da pandemia. O que aconteceu foi outra coisa: o custo de financiamento é que estava alto demais. A população não aceitava aumentos de impostos. E era preciso garantir a queda da taxa de juros, pois o desemprego está alto e o governo teria muita dificuldade para estimular a economia de outras formas.

Durante a pandemia, dois fenômenos aconteceram: 1) O endividamento conjunto de praticamente todo o planeta. Governos de todo o mundo precisaram gastar com a pandemia. Como consequência, o custo de financiamento dos novos gastos ficou menor do que seria num cenário sem pandemia. Se um investidor pensar em desistir de comprar títulos brasileiros, vai ser difícil encontrar um país que não elevou seu gasto e dívida em 2020. Se não houvesse pandemia e o Brasil, isoladamente, decidisse implementar um programa como o auxílio emergencial, a reação dos mercados financeiros seria muito mais violenta, com mais inflação e juros maiores a longo prazo.

2) O Brasil decidiu que valia a pena aguentar algumas porradas para gastar mais. Quando se observa o cenário econômico, os custos do financiamento por endividamento são evidentes. Os juros longos subiram, apesar da queda da Selic, movimento oposto ao observado em vários emergentes com situação fiscal melhor que a brasileira. O risco-país também subiu em relação ao ano passado. O dólar subiu muito e o real é uma das moedas mais voláteis do mundo emergente em 2020. Os custos estão aí, para todo mundo ver. A questão é que, para enfrentar uma pandemia, gastos pontuais podem trazer benefícios imensos.

E, depois da pandemia, o dinheiro vai acabar de novo? Não, mas voltaremos a um cenário mais parecido com 2019. Os juros reais esperados daqui a 10 anos estão acima de 3%, mesmo com o teto de gastos. Se o teto cair sem que se aprove um substituto igualmente responsável, é provável que os juros altos voltem a compor a realidade brasileira. Se o governo quiser a via do aumento de impostos, é provável que enfrente a mesma resistência vista em 2007, quando a CPMF foi reprovada. Não há solução fácil.

Com a política conturbada, e uma economia dominada pela incerteza fiscal, é muito difícil encontrar espaço para uma expansão fiscal. Isto não significa que os grupos de interesse vão desistir de capturar o orçamento. Esta batalha nós acompanharemos nos próximos meses.

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