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Como tornar-se corredor em Curitiba
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[ano do dragão]

Um colega de jornal acertou na mosca. O tempo entre o primeiro dia de um novo ano e o carnaval é uma espécie de hibernação. Come-se demasiado, e então hiberna-se até que o ano engate pra valer de novo, com promessas refeitas, ideias novinhas e planos que, sabe-se de antemão, têm tudo para não dar certo.

Pois então, mesmo nesse período de enclausuramento invisível, coloquei em prática uma resolução: começar a correr. E comecei, de fato. Foram seis voltas em torno de uma pista de 457 metros. Ridículos 2.742 metros no total, segundo a calculadora. Tempo suficiente para ouvir o disco I Ching, do Uakti, por inteiro. O som extremamente orgânico e por vezes tribal combina com o passo ritmado, descobri. Mas o que talvez me faça voltar à Praça Oswaldo Cruz em um final de tarde qualquer não vai ser a busca por mais voltas, por menos quilos ou por uma saúde de ferro. Pois, além de ganhar uma bolha sob o dedão e umas esfoladinhas enjoadas no pé direito, vivi experiências incríveis em pouco mais de uma hora.


Correr em uma pista de cooper relativamente pequena é um potencial truque para se fazer amizades, no mínimo. Isso no resto do mundo, porque em Curitiba é diferente. Lá na Praça, pessoas correm somente em um sentido. Comportados, todos marcham no mesmo rumo. Assim, não há uma fugidia troca de olhares que se cruzam, tampouco um aceno com a sobrancelha suada, sequer um desvio providencial para evitar um encontrão em que as velocidades dos dois corpos se somariam e causariam um impacto tremendo, que não passaria impune nem pela Guarda Municipal. O que há são ultrapassagens. Pela esquerda, como manda o figurino. E um medo inconscientemente curitibano de que, onde já se viu, a pessoa à sua frente mantenha o mesmo passo que você e acabe marchando, cruzes, exatamente do seu lado.

Também são visíveis diferentes tipos de atletas. Os hibernadores, que não correm nunca e que resolveram fazer isso exatamente nesse período, como eu; os frequentadores assíduos – esses têm roupas confortabilíssimas, um esquema todo próprio de manter o fone de ouvido no… ouvido, e tênis que, como mágica, ganham a forma exata de seus pés; e finalmente os casais que se conhecem há pouco tempo e não têm nada melhor para fazer na hibernação de janeiro a não ser correr em dupla e atrapalhar o fluxo. Há inclusive atalhos pela grama, construídos de forma improvisada justamente para esses casos mais radicais.

Já na saída, pisando torto por causa das quase-bolhas e ouvindo The Cooper Temple Cause – combinou com o pôr do sol — leio uma placa que deve fazer diminuir o fluxo tanto de pseudo-corredores, quanto de amantes de maratona e casais inoportunos. Ônibus de turismo, que costumavam bater ponto em frente à Praça, estão proibidos de estacionar ali, na Rua Brigadeiro Franco, desde novembro do ano passado. Todas as vagas, agora, são reservadas ao Shopping Curitiba.

Cristovão Tezza diz que shoppings são verdadeiros vampiros de cidades, porque sugam e anulam tudo o que há em volta. Este é outro exemplo que confirma a teoria. Mas isso é assunto pra outra corrida. Isso se eu comprar um novo par de tênis, voltar à Praça e tiver a coragem de ir na contramão daquele fluxo moto-perpétuo de hibernadores de verão.

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