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Quadra Cultural: 130 falam mais alto do que 7 mil?
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“Quem assina um abaixo-assinado contra um evento cultural?”, perguntaram no Facebook, ao lerem a notícia do dia: o Ministério do Paraná ajuizou ação civil pública para impedir a realização da Quadra Cultural e eventos similares no bairro São Francisco, em Curitiba. “Só pode mesmo estar fora da casinha”. Quando pensamos que a cidade dá um passo à frente, parece que um pequeno grupo faz questão de amarrar o burro.

Walter Alves/ Gazeta do Povo

A discussão é bastante ampla e não se resume a um simples abaixo-assinado com 130 nomes. O bairro é um dos mais problemáticos da cidade e convive com insegurança e violência — quando não há gente na rua. Por mais que não queiram compartilhar da boemia, moradores da região sabem que, quando o Bar do Torto abre as portas e as calçadas são ocupadas, a chance de algo ruim acontecer diminui. É isso que deveriam levar em conta antes de tentar transferir um evento que acontece com total segurança há cinco anos. Um evento que dura 11 horas, uma vez a cada 365 dias. É ação — ainda mais polêmica como foi, já que há suspeitas de que as pessoas tenham assinado o documento pensando que era algo contra a pichação — é sinal de egoísmo e intolerância. Bom lembrar: durante a campanha, ano passado, Gustavo Fruet esteve no Bar do Torto para prestar seu apoio ao movimento, fez discurso defendendo essa nova Curitiba que teima em sair às ruas. Mas, até agora, a prefeitura não se manifestou sobre a ação dos moradores.

Há algum tempo, Curitiba vê o espaço privado silenciar o público. Aconteceu com o carnaval da cidade, (antigamente na Marechal Deodoro, com todas as sacadas ocupadas, passou pela João Negrão e agora está encostado no Centro Cívico), a Pedreira Paulo Leminski (às moscas desde 2008), quase respingou no pré-carnaval (que foi pressionado a sair do Largo) e agora com o réveillon fora de época, evento que saiu da Praça da Espanha e irá acontecer nesta sexta justamente no Centro Histórico.

Reprodução do site da prefeitura
Magrão e Gustavo Fruet, que fez discurso no Bar do Torto durante a campanha. E agora?

Sobre isso, o embate que vivemos há algum tempo, o Caderno G Ideias tratou há duas semanas, justamente no dia da Quadra Cultural deste ano. Abaixo, um texto que fazia parte do pacote e que serve para esse momento em que 130 pessoas incrivelmente falam mais alto do que 7 mil.

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Curitiba chama, e ignorar é um risco

Sábado à tarde, Curitiba. Gente de toda idade circula pelo São Francisco, pragueja contra a pichação, compra uma bebida, canta “Cadê Você”. Domingo à noite: jovens pulam o pré-carnaval no Largo, seguem o trio elétrico com dedicação. Quarta-feira à noitinha: uma tela de cinema ascende no meio da Praça Generoso Marques, e cria instantaneamente um refúgio em que vigora a troca de experiência, a capacidade de compreensão, o respeito ao próximo e, em suma, a segurança.

Não é novidade que, de uns tempos para cá, Curitiba saiu da toca. E isso atarantou os ânimos dos que preferem pantufas e lareira a havaianas e óculos de sol. “Que vergonha”, me escreveram. “Se essas pessoas tivessem um lar decente não estariam na rua.” O julgamento rápido é um baita equívoco a respeito da pulsação da cidade e um preconceito contra a sua própria evolução natural – aquela realizada por seus habitantes.

Como diz Jane Jacobs em seu livro Morte e Vida de Grandes Cidades, esse pensamento “não faz mais sentido do que comparecer a um jantar comemorativo em um hotel e concluir que, se aquelas pessoas tivessem mulheres que cozinhassem, dariam a festa em casa.”

Contatos
O ponto fundamental da discussão, que requer entendimento e preparo – o pré-carnaval do ano passado não terminou bem, todos lembram –, é o fato de entender esses lugares (a rua, a calçada) como públicos. Porque há algo de mágico, de impressionante: os eventos, apesar de sociais, reúnem pessoas que não se conhecem intimamente. É o zeitgeist do zeitgeist. Se os contatos entre os moradores se limitassem à convivência privada, ditada por ambientes de consumo, como os shopping centers (os vampiros da cidade, diz Cristovão Tezza), a cidade não teria serventia alguma. E os contatos seriam menos interessantes e significativos porque o objetivo motivador é outro.

Um abaixo-assinado corre pelas mãos de moradores do São Francisco, pregando contra a Quadra Cultural, que, aliás, tem nova edição hoje (leia mais na página 8). A discordância é legítima. Mas há dois pontos a esclarecer. O primeiro é o porquê dela, e isso se resume a confiança. A confiança na rua se constrói aos poucos, a partir de pequenos contatos públicos na calçada, na porta de casa. Nasce, sim, de gente que para na banca de revista, que fala sobre o futebol na padaria, que dá bom dia ao vizinho, que vai a pé para o trabalho que está a cinco quadras, e não de carro. São hábitos que acabam por gerar confiança. Através da experiência do outro (a experiência pública) entendemos cada vez mais o nosso próprio espaço.

Outro ponto é um certo egoísmo inexorável, como o verificado pelo lobby que um shopping fez também contra o evento que acontece hoje no São Francisco. Uma das ruas será bloqueada, impedindo assim o acesso a um dos estacionamentos do estabelecimento. Seria uma trégua de 11 horas, em um único dia. O privado não pode superar o público. Não neste caso.

Caso contrário, corremos o risco de nos transformarmos em uma pequena cidade dos Estados Unidos: tanto Newtown, onde um jovem matou 27 pessoas em dezembro de 2012, quanto Aurora, onde aconteceu o massacre dentro do cinema, em julho do ano passado, não têm praças.

Praticamente não há calçadas, o que mina o contato humano, a troca de experiência e acaba criando pessoas mais frias. Pois lá, até para entrar em um supermercado é preciso estar de carro; e os pontos de encontro espontâneos estão ligados ao consumo. São províncias fake, espectros de cidade. Mas, sorte nossa, Curitiba chama, grita. É hora de aceitar o convite.

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