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Vinho, música e história: um mergulho seminal na Floresta
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No dia 22 de fevereiro rolou no Wonka uma festança para celebrar os oito anos do Defenestrando, blog raçudo que fala sobre música com um texto cuidadoso capaz de afastar os mais preguiçosos e atrair os exigentes. Nessa onda, o blog virou papel em parceria com o bravo Jornal Relevo, que lançou, na mesma noite, uma edição especial Defenestrando 8 Anos. Para o projeto, fui intimado a escrever sobre as vinhadas, festas lendárias que aconteciam no campus de Comunicação Social da UFPR, e que serviram como palco inicial para bandas que você ouve por aí hoje em dia, como Gentileza e Sabonetes e outras que você já ouviu, como Poléxia. Muitos que não tiveram acesso ao jornal e viveram parte dessa saudosa bagunça me pediram o texto, então aí está. Agradecimentos ao Felipe Gollnick, patrão do Defenestrando; ao Daniel Zanella, senhor do Relevo; e ao Osvalter Urbinati, dono da baita ilustração ali embaixo.

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DJ Baco tinha um plano
Um mergulho seminal e dionisíaco na lendária Floresta musical

Cristiano Castilho

Sexta-feira, 23 horas. Você veste uma calça jeans larguíssima. Ao andar como um Jack Sparrow alucinado, derruba vinho barato na camiseta listrada. Alguém te surpreende e oferece ajuda. Boca roxa, dentes roxos, esse alguém ri escandalosamente. Pega no seu ombro, coberto por cabelos escalafobéticos, e fala algo sobre a banda que está tocando no palco há meia hora (alguma coisa como “que porra de música é essa?” ou “o guitarrista é da faculdade ou é estrangeiro?” ou ainda “aquela ali é caloura?”) antes de recarregar o copinho de plástico com vinho Campo Largo, acender um cigarro ou um baseado, e finalmente desembuchar, compenetrado: “E esse novo disco dos Los Hermanos, hein?” É 2003.

Não tinha lá muita escolha. Os noventa calouros que entravam anualmente na Floresta (o campus de Comunicação da UFPR é chamado assim porque até 2001 ele foi sede do curso de Engenharia Florestal) e eram corajosos o bastante para colocar os pés no Centro Acadêmico (o conhecido Cacos, porque publicitários não perdem um bom trocadilho, e jornalistas não perdem um ruim), aprendiam muito. Por exemplo, a sentar em um sofá de couro puído, depositar a mochila de lona em um caixote de madeira que servia como mesa de centro. E depois ler e transcender, com uma frase do mitológico Pedro Lauro gritando na parede. Já os veteranos jogavam Copas com um baralho amarelado e olhavam de soslaio quando um calouro se atrevia a colocar um CD no resistente, pichado, empoeirado, adesivado, maltratado aparelho de som. Era o ritual final. O Bar Mitzvah dos novatos. A Labyrinth Zone de Sonic. Você, puro de tudo, seria julgado pelo seu gosto musical. Quase sempre isso era divertido e, se o aparelho pré-histórico não cuspisse o disco antes, ele tocava mesmo. A consequência viria nos anos seguintes.

Osvalter Urbinati

Os recém-chegados que começavam a frequentar o Cacos eram submetidos a intensas conversas sobre música, fotografia, os mistérios da vida, as comunidades do Orkut e as lendas do campus. Funcionava como a aula de Comunicação, Sociedade e Cultura, só que na prática. Em suma, era um grande sinal da convergência entre pessoas que viviam a mesma época e compartilhavam, em partes, os mesmos gostos — e até sonhos. Por isso, algo surgiu. Em 1947, aprendemos, Adorno disse que certamente era algo a ver com a cultura de massas; trinta anos depois, Caê chamou o troço de Força Estranha; e finalmente, naquele 2003, Marcelo D2 provou que estávamos todos em busca da batida perfeita. No caso do pessoal do Cacos, a procura coletiva acabou graças um combo de fatores, que envolve módicos aparelhos de MP3, grandes festivais de música e uma Wap – aquelas lavadoras de calçadas que têm um jato tão forte que é capaz de fazer um buraco no seu pé mas que, incrivelmente, não risca o seu carro.

Ninho
Entre 2001 e 2006, o Cacos serviu como bastidor, camarim e palco inicial para algumas bandas curitibanas que alcançaram relativo “sucesso.” Enquanto umas desviaram do caminho e guardam boa reputação, outras estão na ativa, comemorando seus discos lançados, shows abarrotados, clipes bem produzidos e a fama, circunstância mais efêmera do mundo.

Divulgação UFPR

O grande evento onde tudo acontecia, conhecido e copiado, era (ainda é?) a vinhada. Simples: montava-se um palco rústico no meio do Cacos. Nada de burocracia. Era só avisar alguns dias antes, chegar, tocar e beber. Sem se desculpar pelo auê. “Era tudo muito precário, mas mesmo assim ninguém ligava. A qualidade do som era uma bosta, o equipamento muito ruim, mas o que importava era a boa vontade e toda a união que aquilo proporcionava,” lembra Túlio Pires Bragança, publicitário que formou as bandas Buttertoffs (fazia covers honestos de Pavement, Oasis, The Verve, Screaming Trees e Radiohead) e Johnz, que contava com as desabilidades deste jornalista e lançou um EP em 2005 — o Johnz também era formado por Diogo Fernandes (bateria), Diego Perin (baixo) e João Paulo Borgonhoni (guitarra). Na sequência, com Heitor Humberto, dariam origem à Banda Gentileza.

E aos que praguejam contra o saudosismo em relembrar isso tudo, bons argumentos. A vinhada, nessa época, tinha shows gratuitos de uma das melhores bandas que Curitiba já ouviu. A – sempre nos perguntávamos se era “A” ou “O” – Poléxia, grupo de Rodrigo Lemos que hoje colhe frutos com a Lemoskine (ou O?) e A Banda Mais Bonita da Cidade.

Mal sabíamos, mas era mesmo um um privilégio ver Poléxia tocando “Aos Garotos de Aluguel” ali naquele e em outros palcos duvidosos. Porque, mesmo na confusão geral do som e da festa em si, algo brilhava. (#voltapolexia!).

“Olhando em retrospecto, acho que foi um momento muito especial em que as pessoas conviveram em sintonia. As festas, que acabaram por revelar bandas importantes do cenário local, me pareciam também uma extensão do curso de comunicação; com seus temas engraçados, seus frequentadores lendários… Era como se as vinhadas fizessem parte da grade curricular”, diz Lemos, que nunca estudou no campus, mas era assíduo da festa. A Poléxia lançou um discaço em 2004 (O Avesso), chegou a abrir para Los Hermanos e se despediu do mundo com A Força do Hábito (2009).

Troca-troca
Imagine um mundo sem YouTube. Era assim em 2003. Apesar da popularização dos sites Myspace e Trama Virtual, na época o compartilhamento de música ainda era feito na base da troca, via MP3. Lembro de alguns eventos distópicos, em que levávamos nossos computadores – grandes e desengonçadas caixas brancas – na casa de amigos para compartilhar músicas. Só assim para ouvir Placebo fazendo cover de Boney M. Assim ou ir às vinhadas e se deparar com o Upsters.

O trio formado por Artur Lipori (hoje trompetista, guitarrista e membro mais entroncado da Gentileza), Diogo Fernandes e João Paulo Borgonhoni, causava faniquitos ao emendar um Soundgarden num Smashing Pumpkins, ou um Silverchair num Blur. Era uma banda grunge-indie-pop conhecida por suas versões e por algumas zoações, caso das interpretações de “Baby One More Time”, de Britney Spears e “Saí da Tua Vida”, de Reginaldo Rossi.
“Se para muitas bandas a primeira barreira era encontrar um lugar para se apresentar, na Floresta isso não existia. É claro que acabava aparecendo muita gente que não agradava. Mas o sistema era autorregulativo: você tocou e as pessoas gostaram, você volta. Você tocou um metal progressivo instrumental com quatro guitarras solando e ninguém entendeu, seja bem-vindo à platéia. Era uma espécie de seleção natural fonográfica que, 12 anos depois, ainda traz seus sobreviventes,” diz Artur Lipori, que também fez parte da gestão do Cacos responsável por transferir a sede do Centro Acadêmico de “uma área pouco convidativa, uma saleta apertada e escondida que, se fosse um jogo de batalha naval seria o quadrante I9, mais ou menos,” para “um galpão abandonado, sujo e inóspito a 30 metros da entrada da sala de aula.” Mas, conta Artur, “no interior daquele barracão escuro e úmido ecoou um suspiro de otimismo: ‘se a gente passar uma WAP vai ficar legal’”. Ficou.

Comprovando a já indubitável verve musical daquele lugar: dessa mesma gestão do Cacos fazia parte o publicitário Carlinhos Esteves, hoje engenheiro de som do, hmm, Paulinho da Viola.

Quem te viu, quem te vê
Parece até causo da carochinha. Mas, a cidade que foi recentemente escanteada em se tratando de grandes shows e festivais, recebeu, entre 2003 e 2007, três edições do Curitiba Pop Festival e duas do Tim Festival. No Orkut e nos papos pelo ICQ (!) e MSN, muitas emoções ao comentar sobre a confirmação de shows de Weezer, Teenage Fanclub, Björk, Arctic Monkeys, Mercury Rev, Raveonettes e Pixies, banda que rendeu uma baita gripe à Heitor Humberto, vocalista da Banda Gentileza. Ele passou mais de 24 horas no sereno: foi o primeiro da fila a comprar ingressos para o Curitiba Pop Festival 2004.

“Além dos festivais, Curitiba parecia estar dando atenção à música autoral da cidade. Tudo isso funcionou como um alicerce. Entrar na faculdade e conhecer várias pessoas com gostos musicais semelhantes ou que apresentavam aos amigos outros estilos, potencializou tudo. Ainda mais com a presença de músicos no campus, dispostos a criar canções e apresentá-las em festas frequentes em bares toscos e nas vinhadas, que rolavam praticamente todos os meses. Tudo isso ajudou a compor um cenário propício”, diz Heitor, que lembra de outros “projetos paralelos” na Floresta.

“Teve show de bossa nova (Bora em Bossa), tosqueiras duvidosas (Trés de Marchand e Urso Panda Banda), e as bandas iniciantes (Sabonetes, Gentileza). A execução das faixas, obviamente, acabava sendo o menos importante. Enfim, era uma grande piada interna e eu imagino que todo mundo ali achava graça.” Se antes era verde, a Banda Gentileza virou sinônimo de criatividade e o grupo a ser batido em matéria de show. Um novo disco deve sair em 2013.

Contemporânea da Gentileza, a Sabonetes também surgiu de ensaios despretensiosos entre uma aula de criação publicitária e redação jornalística. As primeiras apresentações, marcadas por covers de Franz Ferdinand, Coldplay, Strokes e Pixies — e por gritos de “Salim! Salim! Salim!”, homenagem espontânea e insistente ao ex-baixista — foram nas vinhadas. Logo a banda achou seu caminho. Neste ano, lançam um disco novo, cercado de expectativas. Bom observador, Artur Roman, vocalista e guitarrista, explica porque o estopim do sucesso foi na Floresta.

“Acredito que seja pela escassez de aulas no departamento e pelo excesso de criatividade e energia dos alunos. As vinhadas eram momentos catárticos. A gente estava experimentando a música e a vida. Tudo isso regado a grandes quantidades do maravilhoso vinho ruim e barato.”

Há mais de dois anos não vou à Floresta. Deixei de acompanhar a vinhada lá por 2009, quando o show, ao mesmo tempo desavergonhado e sincero de novas bandas, foi sumariamente substituído pelo som mecânico e guturalmente grave que vinha do porta-malas de um carro estacionado quase dentro do Cacos. “Tuch tuch tuch, tuch, tuch, tuch, tuch, zóóóóóóóinnnn, tuch tuch tuch.” As vinhadas ainda acontecem, não sei com quais bandas. DJ Baco, dizem, trocou de disco.

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