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Zé Miguel Wisnik, o fabricante de sóis
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O jogo de ontem entre Brasil e Bósnia (obrigado, Papac), deixou claro: a seleção brasileira de futebol precisa mesmo é de um Zé, aquele ser em extinção. Zé é um meia ambidestro habilidoso, que chuta de longe, com efeito, e acerta a gaveta. Zé se posiciona de forma a antever a jogada. Zé orienta e cobra. O Zé também cai, mas se levanta. Esse Zé, inclusive, é quase capaz de, na mesma jogada, bater escanteio e sair em disparada como um novo Euler — o ex-filho do vento — a caminho da área para cabecear. Como se tudo fosse parte de um mundo paralelo onde ele é o rei da bola.

José Miguel Wisnik é o Zé da música. Chato é falar que Zé é compositor, ensaísta, pianista, professor de literatura brasileira, doutor em teoria literária e literatura comparada, autor de O Som e o Sentido — uma das obras mais completas sobre a história da música –, autor de trilhas para cinema e ex-parceiro de Paulo Leminski.

Mais fácil é dizer que Zé é um dos maiores artistas-intelectuais vivos por essas bandas tupiniquins. E que, ver um show seu, solo, é uma experiência sublime, capaz de suplantar por alguns momentos o que entendemos por realidade.

Zé se apresentou no Teatro da Caixa, em Curitiba, na noite de ontem. Foi o primeiro artista convidado da 4ª temporada da bem-sucedida Série Solo Música, que trará mais dez artistas para shows no mesmo formato até o fim do ano.

Vestindo branco dos pés à cabeça — ele tem cabelos grisalhos — e postado elegantemente em frente ao piano, Zé começou o show com “Luzes”, poema de Paulo Leminski. A escolha serviu como homenagem à terra de seu pai, polaco que veio para o Paraná – lhe prometeram a América, mas tudo acabou em Paranaguá.

Do texto musicado, também gravado por Arnaldo Antunes, são conhecidos os versos “essa noite vai ter sol”. “Essa música é um boa noite para Curitiba”, disse Zé, dirigindo-se à plateia pela primeira vez.

O concerto começou a ganhar em intimidade quando Zé quis ver quem estava a sua frente. As luzes se acenderam, e ele deu um tchauzinho para alguém. “Agora sim, é bom compartilhar isso”, disse.

Tim Ferguson

Mais à vontade, surgiu aos poucos a linda “Tempo sem Tempo”, presente em seu último disco, o duplo Indivisível (2011). É fácil se sentir confortável devido à temperatura que Zé consegue dar a determinadas passagens, aquelas em que sua voz se esvai aos poucos, como se estivesse não em sua garganta, mas em um conta-gotas ou em uma ampulheta.

(Ele tem mais três discos. Em 2000, gravou o independente José Miguel Wisnik, em 2002 lançou São Paulo Rio, com participação de Elza Soares, e em 2003 se saiu com Pérolas aos Poucos.)

O fato de um disco duplo se chamar Indivisível pode ser entendido como um paradoxo. O mesmo já não ocorre com o exemplo a seguir. Na sequência, Zé tocou músicas feitas em parcerias com Alice Ruiz. Uma delas, a mais recente, fala sobre uma ficha que cai em um abismo. Na verdade, essa imagem foi o ponto de partida para a canção, contou Zé.

Canção atual, mesmo que fale em “cair a ficha”, expressão em desuso, ao menos em termos literais – e literários.
Mas determinados artistas têm mesmo esse poder. Conseguem criar dialogismos por muito tempo sem perderem de vista o fio condutor, que é justamente a mensagem que transmitem.

Em seguida, “Feito para Acabar”, sucesso na voz de Marcelo Jeneci, fez alguns se empolgarem, ainda que timidamente. “A gente é feito pra acabaaaaaaar”, cantou a moça do meu lado, até que afinada.

Zé também tem a incrível capacidade de absorver canções – as mais emblemáticas – e recriá-las. “Assum Branco”, homenagem à “Asa Branca” de Luiz Gonzaga é tanto uma releitura histórica e poética quanto uma brincadeira. Uma pelada de piás, para continuar na metáfora.

De volta à academia, Zé tocou “Mortal Loucura”, poema de Gregório de Matos (1636-1695), o Boca do Inferno. Tocou e depois exclamou, com um didatismo de dar gosto.

Se lembram que Zé, aquele jogador em extinção, cai e se levanta? Pois é. José Miguel Wisnik errou ontem. Esqueceu o segundo verso de uma canção que fez em parceria com Luiz Tatit. Emburrou a cara, voltou ao começo, se lembrou da passagem e aí abriu um sorriso, se afastando do microfone em sinal de libertação.

“Obrigado por me compreenderem”, disse, em tom mais de lamento do que de desculpas. Não era preciso.

Coube ainda uma engraçadíssima música que fez parte da trilha sonora da peça As Boas, de Jean Genet — encenada pelo Teatro Oficina em 1991 sob a direção de outro Zé, o Celso Martinez. Foi curioso ver Wisnik cantar palavrões de maneira delicada.

“Para Elisa”, outra parceria com Tatit, manteve o bom-humor do show simplesmente porque a música é uma piada só. A história é essa: perguntaram ao amalucado Tom Zé (mais um Zé!) qual era a música que representa a cidade de São Paulo.“Pour Elise, de Beethoven”, disse o compositor-jardineiro. Pois era isso que tocava nos caminhões de gás que rondavam pela cidade, perturbando a vizinhança com aquele tiridiridiridiriri interminável.

Para fechar o show, “Luzes” foi a música escolhida, novamente, mas agora com uma plateia totalmente entregue. Todos cantavam “essa noite vai ter sol” como se esperassem sair na Conselheiro Laurindo às 21h45 da noite para ter de colocar seus óculos escuros. Valeu, Zé.

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