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Com o uso disseminado dessa transinvenção chamada linguagem neutra, a mais oprimida das vogais finalmente ganha destaque.
Com o uso disseminado dessa transinvenção chamada linguagem neutra, a mais oprimida das vogais finalmente ganha destaque.| Foto: Bigstock

Todos aprendemos na escola a repetir as vogais pela ordem “a, e, i, o, u”. Por quê? Não tenho a menor ideia. E, pensando bem, até me revolto um pouco com a criança alienada que fui e que não ousou questionar a professora sobre essa aberração hierárquica. Podia muito bem ser “i, e, u, o, a” ou “e, i, a, u, o”. A sequência só não podia começar com o patriarcal “o”.

Aliás, uma coisa a se destacar sobre as conquistas feministas ao longo do século é o fato de a letra “a” ser a primeira do nosso alfabeto latino. Pouca gente sabe disso, mas antes de Simone de Beauvoir, o alfabeto começava pelo “o”. Foram necessários milhares de sutiãs queimados para se vencer o machismo alfabético e para que o “a”, tradicionalmente associado a pessoas com vagina, assumisse essa posição de destaque.

De qualquer forma, uma coisa que sempre me incomodou na hierarquia própria das vogais foi o desprezo ao “u”. Ou, para usar a terminologia da moda, a ufobia (não confundir com ufofobia, que é o desprezo aos ufos, nem ufofofobia, que é o desprezo aos unicórnios fofos). Desprezado pelas demais vogais, o “u” sempre sofreu preconceito e, consequentemente, teve de se contentar com um papel histórico menor.

Na saudosa Enciclopédia Delta Universal da minha infância, por exemplo, a letra “a” ocupava todo um tomo, enquanto o “u”, coitado, tinha que dividir espaço com o “v”, o “x” e o “z” – aquele sacana. Na lista telefônica, o “a” era cheio de aristocráticos Albuquerques e Almeidas, enquanto o “u” se contentava com os raros e pobretões Urbanos e Uchoas. As pessoas têm sangue tipo “A”. Por acaso você conhece alguém com sangue tipo “U”?

E no jogo imperialista estadunidense “stop!”, que os cariocas chamam de “adedanha” ou “adedonha” (do tupinambá clássico “adhedhonyah”, que significa “brincadeira que sempre acaba em briga”)? Quando a letra sorteada era “a”, todo mundo ficava feliz. Nome, país, capital, animal e carro que começam com a letra “a” todo mundo sabe. Agora, quando a letra sorteada era “u”, sempre surgia alguém para sugerir “escolhe outra senão eu não brinco mais”. O que era até compreensível, naquela Idade das Trevas. Afinal, quero ver você me dizer, sem pesquisar, um esporte ou uma moeda que comecem com a letra “u”.

Uni-vos!

Por sorte, essa transinvenção genial chamada linguagem neutra (me recuso a usar o termo “não-binária” por ser, obviamente, biexcludente) surgiu a tempo de corrigir a injustiça, dando um protagonismo inédito ao oprimido “u”. Não que essa vogal que até para se dizer humilhada precisa da ajuda do ”h” tenha aceitação universal. Depois de vencer o “x” como substituto não-binário (ops!) das desinências de gênero, o “u” ainda tem um longo caminho de luta se pretende substituir de vez o “e” no coração de todus. Us do mundo, uni-vos!

E a que se deve o milagre? Mistério! Há detratores, inclusive, que dizem que o “u” se recusava a se submeter a esse uso. Que ele era ultrarreacionário ou ultraconservador, não lembro mais. Ou que ele preferia ficar quietinho na dele, arrancando das pessoas uma risada aqui e ali ao ser usado em rimas impublicáveis. Seja qual for o motivo, a verdade é que hoje o “u” ostenta todo garbosão o título de “vogal oficial do movimento trans”. Uhu!

Têm contribuído para que a honra do “u” seja recuperada em toda a sua formosura também toda uma geração disruptiva, para a qual as normas ortogramaticais são reconhecidamente uma forma de sedimentar uma estrutura segregacionista ulterior, hetero-organizada de modo a legar ao “u” o papel universal ultrajante de último.

Tanto é assim que, pela primeira vez na história, uma Olimpíada não ficará marcada pela paz universal, pela derrubada dos mitos raciais, pelo terrorismo, por casos de doping, pelos tombos no hipismo ou pelos meritocráticos (argh) recordes, e sim pelo uso apropriado da linguagem neutra. Isso graças aos sempre eruditos jornalistas esportivos que, ousada e revolucionariamente, têm se recusado a chamar os admiráveis e corajosos “elus” de “elas” ou “eles”, como exige a sociedade reacionária.

Toda vez que elu entra em campo, elu cai na piscina, elu saca, elu corre e elu tira o lugar de uma pessoa com vagina no pódio, damos um passo a mais rumo à criação de uma ditadura pronominal. Essa etapa intermediária é importante para que alcancemos nosso objetivo máximo: a instauração da utopia vogal. Quando, finalmente e de uma vez por todas, “a”, “e”, “i”, “o” e “u” serão iguais e indiscerníveis nas palavras.

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