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Tenho pensado nesses acontecimentos que consomem nossa energia e, não raro, nossa sanidade, e que rapidamente se revelam como fogos-fátuos históricos.
Tenho pensado nesses acontecimentos que consomem nossa energia e, não raro, nossa sanidade, e que rapidamente se revelam como fogos-fátuos históricos.| Foto: Reprodução

De pouco em pouco, estou revendo “Ben-Hur”, clássico a que assisti na adolescência, no tempo em que a gente tinha que rebobinar as três fitas VHS desses épicos longuíssimos. Ontem, numa dessas mordiscadas (5 minutos aqui, 10 ali), fechei os olhos em plena tarde de sol para tentar imaginar a vida há dois mil anos. E sobretudo imaginar grandes feitos que nunca nos chegaram ou que, se nos chegaram, estão hoje reduzidos a notas de rodapé ou asteriscos em livros que ninguém vai ler.

As redes sociais, ou melhor, a vida virtual distorce a nossa já distorcida noção de tempo. Tudo tem que ser rápido. Para ontem. E, em determinadas semanas, parece que estamos vivendo aquela história que muitos escrevem com agá maiúsculo, mas eu ainda me recuso. Em geral, porém, é raro que estejamos vivendo algo digno de ser contado para nossos netos e bisnetos. Isto é, para quem conseguir se lembrar do próprio nome até lá.

Tenho pensado bastante nesses acontecimentos recentes que consomem a nossa energia e, não raro, nossa sanidade mental, e que rapidamente se mostram como de fato são: fogos-fátuos históricos. É a efemeridade que, durante uns dias e às vezes umas poucas horas, se traveste de permanência. É a irrelevância que tira a cabeça para fora d´água para dizer que existe – e volta a mergulhar na imensidão do nada.

Quer um exemplo? Oquei. Eu te dou um exemplo. Quer saber? Vou dar logo dois exemplos e estamos conversados. É que acordei generoso hoje. Mas não o suficiente para abrir um parágrafo, então aqui vai: em março de 2020, quando as notícias sobre Covid-19, então chamada simplesmente de “coronavírus”, começaram a botar medo no mundo, discutíamos o abraço do médico Drauzio Varella em Suzy, um trans preso por ter matado uma criança. O médico-estrela ficou com peninha do assassino e estava instaurado o caos.

Durante uma semana, se tanto, não se falou de outra coisa. E olha que este é um caso em que a notícia alcançou as pessoas comuns. Me lembro bem de, na padaria perto da redação da Gazeta do Povo, as atendentes estarem discutindo o assunto. Do qual hoje ninguém se lembra. “Será que Suzy teve Covid-19?”, me pergunto não sei por quê. Acho que tenho essa tendência às curiosidades mórbidas mesmo.

O outro exemplo eu esqueci

O outro exemplo eu esqueci. Me dá uns segundinhos para lembrar, por favor. Ah, sim. As manifestações de Sete de Setembro de 2021. Aquela mesma que levou milhões às ruas, mas que parte da imprensa resolveu ignorar. Aquela do xingamento presidencial. Aquela que todos tratavam como golpe certo. Aquela do recuo mediado por Temer. Enfim, aquela manifestação para todos os efeitos “histórica”. Será mesmo? No ano 2100... Não. Não precisamos ir tão longe. Em 2050, quantas linhas você acha que essa megamanifestação ocupará nos livros de história?

Pensei essas coisas todas porque estava assistindo a “Ben-Hur” e também porque ontem e na semana passada dediquei meu intelecto (parco uma ova!) a refletir e propor reflexões sobre duas notícias que no futuro renderão, se tanto, um asteriscozinho (ops) para os historiadores entediados: a visita de Jair Bolsonaro à Rússia e o todo aquele auê sobre nazismo. Eu mesmo, se quiser entender o que escrevi daqui a 5 ou 10 anos, terei de incluir asteriscos sobre esses fatos que, i-na-cre-di-ta-vel-men-te, fizeram o sangue de muitos ferverem – em vão.

Como já dizia o grande Vinícius de Moraes (que foi discreta e silenciosamente cancelado por causa do “machismo”), esta é a sina do cronista: escolher um acontecimento minimamente digno de atenção, besuntando-o com suas memórias e fantasias, na esperança de que esse nada doce ou salgado ou amargo demais se torne algo mais palatável no futuro incalculável.


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