"O que me preocupa não são os generais, mas os guardas da esquina".
- Pedro Aleixo, ex-vice-presidente, sobre a concentração de poder advinda do AI-5.
O cidadão José da Silva se tornou réu na ação movida pelo guarda-da-esquina, digo, senhor guarda-da-esquina Astolfo Bulhões de Carvalho Figueroa, encarregado de patrulhar a rua onde mora o sujeito. O senhor Bulhões alega que foi chamado de “você”, mesmo depois de insistir para que o cidadão se referisse a ele como “senhor”. O crime é o de injúria hierárquica.
O caso aconteceu na noite do dia 11 de janeiro, coincidentemente o mesmo dia em que, para azar do cidadão, a injúria hierárquica se tornou crime inafiançável e imprescritível. Em depoimento, o ilustríssimo senhor guarda-da-esquina contou que fazia seu costumeiro trabalho de andar para lá e para cá, aqui multando um carro estacionado irregularmente, ali chamando a atenção de um cidadão (outro) que jogou lixo na rua, quando foi interpelado por José, alcunha Zé.
“Você tem um isqueiro para me emprestar?”, teria perguntado despudorada e desrespeitosamente o cidadão. O excelentíssimo senhor guarda-da-esquina, que apesar do cabelo azul e dos aparentes 25 anos se identifica como “senhor” (e ninguém tem nada a ver com isso!), ainda tentou corrigir o cidadão ignorante. “Tentei explicar a ele a importância de se usar os pronomes de tratamento corretos a fim de termos bem estabelecida uma hierarquia social capaz de mostrar quem manda e quem obedece. Isso é a democracia!”, explicou o eminentíssimo senhor guarda-da-esquina, parafraseando Mussolini (acho).
Distraído, porém, o cidadão (provavelmente direitista, conservador e, se duvidar, até olavista) insistiu no pronome de tratamento informal, ofendendo o emérito senhor guarda-da-esquina com as palavras que só reproduziremos aqui por dever jornalístico, e pelas quais desde já pedimos desculpas: “Parece que vai chover. Você não acha?”.
Essas palavras duras, combinadas com o pronome de tratamento inaceitável, levaram o venerável senhor guarda-da-esquina às lágrimas. Ou melhor, a apenas uma lágrima, que escorreu furtivamente por seu egrégio rosto. “Além de tudo, depois que reclamei o elemento foi irônico, me perguntando se eu tinha ficado louco e usando novamente o ‘você’ com o qual, já disse, não me identifico”, contou o douto senhor guarda-da-esquina.
Outro lado
O cidadão-que-acha-que-liberdade-é-para-todos, José da Silva, tentou se defender das acusações. “Não tenho culpa. Estava escuro. E, no mais, ele tinha cara de ‘você’, andava como um ‘você’ e falava como um ‘você’. Como eu poderia imaginar que ele era um ‘senhor’?”, se justificou. Vai que cola, né?
Recém-promulgada pelo alto comissariado da nossa pujante ditadura democrática, a lei da injúria hierárquica prevê, em seu artigo 20-C, prisão (é, cana mesmo!) para qualquer atitude ou tratamento dado às autoridades e que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida. A lágrima que escorreu pelo rosto do distintíssimo senhor guarda-da-esquina foi colhida e servirá como prova.
A conversa ia bem e este repórter quase chegou a sentir pena do cidadão. Afinal, ele parecia sincero ao descrever o grave incidente, o crime bárbaro, como um lapso pronominal.
Perguntado, porém, se pretendia se retratar, pedir desculpas, ajoelhar no milho, qualquer coisa, o cidadão partiu para ignorância, atacando covardemente este repórter que não usa gravata-borboleta à toa. “Por que eu me retrataria? O que fiz de errado? Se eu chamar você de você, você também vai me processar?”, argumentou ele, provocando este repórter que, por acaso, também se identifica como “senhor”. Ops, caiu uma lágrima aqui.
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