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Num esforço de reportagem sem precedentes, me sentei para acompanhar as eleições dos EUA pelas redes sociais.
Num esforço de reportagem sem precedentes, me sentei para acompanhar as eleições dos EUA pelas redes sociais.| Foto: Pixabay

Hoje (4) bem cedo, num esforço de reportagem sem precedentes na história do jornalismo profissional mundial, ajeitei meus glúteos no sofá, peguei salgadinho, bolacha, salame e o que mais estivesse dando mole na geladeira, grudei um canudinho no outro para alcançar o galão de refrigerante, apoiei o computador no colo e me pus a acompanhar as eleições norte-americanas por meio das redes sociais.

“Ah, mas não foi você quem disse que uma vitória de Biden ou Trump não muda nada na sua vida?”, perguntou minha mulher assim que expliquei a ela que meu plano para o dia era, basicamente, ficar sentado absorvendo a loucura do mundo. Minha mulher tem dessas e adora esfregar uma contradiçãozinha na minha cara. Sem muita criatividade àquela hora do dia, disse apenas que eram ossos do ofício e o clichê me salvou, porque fomos procurar a origem da expressão “ossos do ofício” e, por alguns minutos, nos perdemos nos labirintos da etimologia.

De volta à vida pulsante ao simulacro de vida das redes sociais. Lá estão todos os “cientistas políticos” que sigo e mais aquele monte de gente em cujas opiniões não tenho interesse algum, mas que sou obrigado a consumir por causa dos retuítes alheios. Gente cuja biografia é só um currículo, cuja autoestima depende exclusivamente da quantidade de seguidores, likes e quetais, e que acredita realmente que sua opinião é fruto de uma investigação científica.

Vem a foca com a bola no nariz

Há também os onipresentes gráficos. Um quer dizer uma coisa e outro igualzinho quer dizer outra coisa. Um dia alguém ainda precisa explicar a fascinação do homem contemporâneo pelos gráficos, pelas linhas multicoloridas que tentam desesperadamente explicar o acaso, pela insistência arrogante em se supor o senhor feudal de todas as variáveis. Diante da profusão de gráficos e dados, me sinto como se estivesse num circo. Dá até para sentir o cheiro de serragem e dejetos de elefante enquanto os malabaristas assumem o picadeiro principal, brincando com a gravidade e os números e as pesquisas e as tendências. E principalmente com as certezas de todo mundo.

Não demora e os palhaços dão o ar da graça no espetáculo. Lá estão eles, os intelectuais, cunhando expressões pelas quais querem royalties – e ai daquele que não pagar o pedágio! Eles usam aspas que não dizem nada com nada e um discurso intencionalmente dúbio para provar que sempre estiveram com a razão sobre absolutamente tudo e que, com muitos meses de antecedência, previram o que aconteceria. E, misturando um esoterismo aqui e ali, o que eles todos preveem é invariavelmente ou o colapso da Civilização Ocidental ou o fim da democracia.

Já se passaram algumas horas. E, aos poucos, aquela realidade alternativa vai ganhando forma para mim. Está claro que existe um recorte nas publicações que Mark Zuckerberg e Jack Dorsey querem que eu veja. Está claro que meu cantinho naquele universo de bites é uma bolha. Resta saber o tamanho da minha culpa na construção dessa bolha. Será que só me relaciono com pessoas que pensam igual a mim? Ou será que, por obra e graça de um algoritmo qualquer, fui aos poucos me juntando a pessoas que a máquina considera semelhantes a mim? E o mais importante: qual o impacto dessa, digamos, versão mui personalíssima da realidade objetiva sobre as pessoas?

Vida de repórter

Ao longo desta reportagem investigativa ultraperigosa, enfrentei muitos desafios. Em dado momento, por exemplo, desviei de notícias falsas e de memes sem graça só para me ver defronte a um desses cientistas políticos/sacerdotes que me jogou na cara meia-dúzia de indiretas cheias de insulto porque tinha certeza de que eu estava torcendo para o lado errado da contenda. Noutra ocasião, ao entrar no perigoso mundo das conspirações e investigar acusações muito sérias baseadas no alinhamento dos astros e no encadeamento meio dadaísta de fato que “só não vê quem não quer”, tive de sair correndo antes que alguém injetasse em minha uma agulha com autismo. Vida de repórter não é fácil.

Até que meu editor me ligou todo esbaforido para cobrar o texto e achei melhor dar minha odisseia por encerrada. Mas não sem antes agradecer à deusa Democracia e seus deuses-assistentes do Vale do Silício por terem me poupado de notícias sobre Covid-19, atentados terroristas ou catastrofismo climático neste dia. Já é alguma coisa.

Sobre as eleições norte-americanas, ainda não sei se quem ganhou foi um ou foi outro, nem se isso é bom ou ruim. Mas desconfio que nem a vitória de um nem a derrota de outro será capaz de levar paz aos milhões que, como eu, insistem em tentar acompanhar o que se passa no mundo por meio dessa igreja profana consagrada à loucura.

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