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Não perca o sono. Os gafanhotos podem até assustar por causa do nosso medo ancestral da fome. Mas, com a tecnologia atual, eles são mera curiosidade.
Não perca o sono. Os gafanhotos podem até assustar por causa do nosso medo ancestral da fome. Mas, com a tecnologia atual, eles são mera curiosidade.| Foto: Pixabay

Não adianta. O apocalipse está dentro de nós. Dentro até de quem nunca leu o livro. Dentro do ateu. E dentro tanto daquele senhorzinho meio tantã que nos desenhos animados está sempre numa esquina berrando “o fim está próximo!” quanto do jovem influenciador digital que pia para seus seguidores que “o fim está próximo #apocalipsenow #2020eusobrevivi”.

Me refiro aqui (como você deve ter percebido pelo título) às nuvens de gafanhotos que ganharam as manchetes no último mês. A simples menção à praga é mais um sintoma do que eu, lá no remoto março a.C. (antes do Coronavírus), e num arroubo da criatividade (contém ironia), batizei de Fetiche da Peste™.

Fetiche da Peste™ é, segundo o criador do termo, essa coceirinha perversa na alma, algo que a gente inconfessadamente sente diante da mera sugestão de uma catástrofe de proporções mundiais, dessas capazes de dizimar milhões, não!, bilhões, eliminando os maus e salvando os bons (entre os quais nos incluímos sempre, claro). Em resumo, até porque minha mulher odeia quando escrevo frases com interpolações demais (como esta, por exemplo), o Fetiche da Peste é o sonho de uma catástrofe que venha para purificar a Humanidade. E, por consequência, para atestar nossa pureza.

Apesar de ter ganhado evidência com o onipresente coronavírus, o Fetiche da Peste™ está, em maior ou menor grau, por aí, no ar, desde que me entendo por gente. Não foi por acaso que, em 1986, minha mãe foi me levar para ver o cometa Halley (que eu juro que vi, mas evidentemente não vi). Tampouco foi o acaso que nos reuniu diante da TV para assistirmos Bagdá sendo bombardeada ao vivo (por que só me ocorrem desgraças tão antigas?).

E, para satisfazer esse nosso desejo por uma forma perversa de “salvação”, nada melhor do que uma doença misteriosa surgida num exótico país asiático. Um vírus – uma coisa tão estranha que nem a ciência sabe ao certo se ele é um ser vivo, coitado. Minto. Melhor do que uma doença só mesmo uma praga bíblica que nos desperta, antes de mais nada, o temor da ira divina. E depois esse medo ancestral da fome, da escassez absoluta e do desespero que a acompanha. Daí as nuvens de gafanhotos.

Que, em outras épocas, mereceriam uma notinha no pé da página (quando ainda havia “pé da página”) ou um daqueles textos que se pretendem a jornalismo literário, cheios de fascinação, com direito a citação de Manoel de Barros e alguma revoada de andorinha. Mas hoje não! Hoje elas se tornaram, com um empurrãozinho do Fetiche da Peste™, ameaças graves à agricultura (mesmo não sendo) – o que irracionalmente associamos, desde os tempos imemoriais, como diria alguém afeito a esse tipo de lugar-comum, à fome e à própria extinção da espécie.

Eu é que não perco o sono. Porque sei que a ciência, essa menina travessa (na qual todos dizem confiar, mas só se ela servir para a minha narrativa), dispõe de conhecimento bastante para lidar com gafanhotos. (Ou saúvas! Meu Deus, houve um tempo em que o inimigo número 1 do Brasil eram as saúvas). Assim como hoje, poucos meses depois do surgimento da Covid-19, primeiro como uma curiosidade vinda lá do outro lado do mundo e depois como pandemia, a ciência já começa a acumular conhecimento suficiente para o surgimento da primeira vacina.

A ansiedade diante da nuvem de gafanhotos, essas manchetes espalhafatosas e até as notas do Ministério da Agricultura faziam sentido no tempo de Moisés (quando as manchetes eram escritas em hieróglifos e o Ministério da Agricultura prestava contas somente a Osíris). E no tempo dos nossos bisavós. E ainda faz sentido em lugares sem um mínimo de tecnologia ou cheio de tecnocratas bem-intencionados e suas regulamentações contra a agricultura comercial.

Mas a Humanidade como um todo, ah, a Humanidade como um todo deveria estar vendo essa nuvem de gafanhotos aí e exaltando as maravilhas de nosso tempo. Os defensivos agrícolas poderosos, eficientes e baratos ou, para quem não curte, o manejo do fungo Metarhizium acridum (nome em latim é chirque no úrtimo) no controle dos gafanhotos. E toda a cadeia de produção global que impede que um dia venhamos a passar fome por causa do simpático e esfomeado inseto. Não é pouca coisa.

Tá, eu sei que a Greta vai voltar em breve dando de dedo na gente por causa do aquecimento global. Já estão voltando até a falar em queimadas na Amazônia, não é? E eu sei ainda que os gafanhotos são um prato cheio (sem trocadilho; não, vai com trocadilho mesmo) para os chineses e sua máquina de propaganda diversionista. Sei também que, em 2021, quando as camisetas “2020: eu sobrevivi” estiverem na moda, surgirá alguma outra coisa para saciar nosso Fetiche da Peste™.

Mas sei que, quando isso acontecer, estarei aqui, devidamente alimentado, dando uma de otimista (razoavelmente) racional.

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