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Minha ojeriza pela mesóclise começou com o “’Bebo porque é líquido. Se fosse sólido, comê-lo-ia”, de Jânio Quadros.
Minha ojeriza pela mesóclise começou com o “’Bebo porque é líquido. Se fosse sólido, comê-lo-ia”, de Jânio Quadros.| Foto: Reprodução/ Twitter

Neste texto, lembrá-lo-ei da existência dela, a mesóclise. Essa estrutura pernóstica e cafona, que soa como um enxerto mal feito no verbo, mas que muito doutor faz questão de expor com o mesmo orgulho dos diplomas em molduras rococó. Minha amiga Denise, presidente do Fã-clube das Mesóclises, irritá-la-ei com minha implicância gratuita. E essa sintaxe estranha, repeti-la-ei até o parágrafo final, na esperança de que o exagero leve o leitor a desenvolver a mesma repulsa que nutro pelas mesóclises.

A história, começá-la-ei pelo início, isto é, pelo dia em que conheci a mesóclise e por ela cultivei um leve afeto. Convencê-lo-ei, agora, de que era bonitinha a primeira mesóclise que li, numa daquelas salas geladas mas incrivelmente aconchegantes do colégio Madalena Sofia. Conduzi-lo-ei bem rapidinho pelos labirintos da memória, até que nos deparemos com o ex-presidente Jânio Quadros, beberrão assumido, falando “'Bebo porque é líquido. Se fosse sólido, comê-lo-ia''. E a professora Olinda nos obrigando a analisar sintaticamente o chiste de cartorário ébrio.

As análises sintáticas não me incomodavam. Pelo contrário, eu via tudo aquilo como um joguinho divertido. O que me incomodava mesmo era a voz de Jânio Quadros ecoando o “comê-lo-ia” como uma mosca que resolvesse fazer ninho em meus ouvidos. O tempo foi passando e a mesóclise embarangou precocemente. De bonitinha e ordinária passou a ser... desagradável. Anos mais tarde, aprendi a ver nessa mesóclise específica um sonoro camelo que ia não sei para onde nem por quê. E, aqui, leitor, alegrar-me-ia muito se você repetisse dez vezes a mesóclise famosa com a voz que originalmente a emitiu. Pronto. Agora instigar-lhe-ei não pela última vez: não é caricaturalmente abjeto o verbo como que empalado pelo pronome atrevido?

Passou o tempo – como sempre passa. E, ao longo dos anos, me deparei com muitas mesóclises que, não raro, despertavam em mim um desgosto injusto por certos autores. Até alguns amigos. Dar-te-ei, aqui, minha mão. A palmatória, usá-la-á se considerar conveniente – além de prazeroso. E a você juntar-me-ei numa autorreprimenda: é obsessão demais por uma palavrinha cujo único pecado é ser feia e sempre, sempre, sempre, sempre falar com a voz de taquara rachada do pândego que ilustra esta crônica.

E talvez da aversão livrar-me-ia, não tivessem sido os infelizes encontros com doutores sempre dispostos à mesóclise empunhar como sinal de seu saber incontestável. Também cartorários e burocratas de toda sorte obrigar-me-ão à lembrança indesejada da sinfonia de carimbos sempre entremeada por uma folha ininteligível que invariavelmente trazia ela, a mesóclise, marca maior da cafonice bacharelesca (maior até do que o bigodinho fino e a prosódia de pacheco).

Aqui, desculpar-me-ia se achasse que tenho culpa. Banhar-me-ia na lava penitente, até. Mas, em se tratando de mesóclises, reconheço a obsessão, mas jamais a culpa ou vítima do meu desamor. E é uma pena que a crônica esteja chegando ao fim. Do contrário, convencê-lo-ia com meu melhor latim a se abster da mesóclise. Ou melhor, persuadir-te-ia a vê-la pelo que ela é: estandarte do anticoloquialismo, insígnia do amanuense-em-espírito que não perde a oportunidade de se dizer melhor do que os outros.

Espero que você tenha entendido por que das mesóclises quero distância. Um dia, quem sabe, apresentar-te-ei também os motivos que me levaram a abandonar a ênclise – parasita a roubar os holofotes da ação. E, se você tiver um tempinho, esclarecer-te-ei por que nesta crônica misturo o você e o tu a meu bel prazer. Sem mais para dizer ou maiores deferimentos a pedir, despedir-me-ei agora.

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