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Kurt, fã de Zéfiro e figurante de “De Volta para o Futuro”, morre em Nova York
| Foto: Reprodução

Só hoje fiquei sabendo que Kurt morreu.

Curioso. Semana passada mesmo, e depois de mais de dez anos, me lembrei dele ao rever pela enésima vez De Volta para o Futuro. Kurt, um grande e convincente mentiroso, contava que havia trabalhado como figurante no filme. Sendo mais específico, na cena do baile. Me lembrei disso por acaso e assisti à cena em câmera lenta, na esperança de encontrar um rosto conhecido. Nada.

Conheci Kurt num dia digno de Ulysses. Pela manhã, atravessei Nova York até chegar a um pequeno farol que fica sob a ponte George Washington. Naquela época eu tinha fôlego. Depois de fotografar exaustivamente o belo farolzinho, saí andando a esmo, até me deparar com uma townhouse estranha. Talvez até assustadora. Porque no primeiro andar ela exibia uma espécie de vitrine com objetos que, naquele tempo indiferente à linguagem politicamente correta, identifiquei como macumba.

Me aproximei para estudar melhor aquilo quando da townhouse saiu Kurt, me convidando para entrar. Ele me explicou que aqueles objetos eram de santería. Oquei. Entramos e lá dentro encontrei Andy, ex-editor da Vanity Fair. Outro cara muito estranho: um jornalista que gostava de Marisa Monte, Machado de Assis e futebol (se dizia flamenguista até). Kurt me convidou para um café fraco tipicamente americano e ficamos conversando.

Da conversa entendi: Que Kurt era casado com uma estilista famosa que fazia vestidos para uma cantora também famosa; Que Kurt tinha um filho autista; Que Kurt esteve em Woodstock; Que Kurt tinha um carro antigo que estava alugado para a produção de um filme de época; Que Kurt vivera no Village durante a epidemia de AIDS dos anos 1980; Que nessa época Kurt ia a um funeral por semana, seus amigos morrendo como moscas; Que Kurt gostava de Carlos Zéfiro; Que Kurt trabalhou como figurante em De Volta para o Futuro.

Depois desse encontro, nos vimos mais duas vezes. Numa delas ele me disse que ali, na esquina de sua casa, em plena Nova York da política de tolerância zero, o tráfico de drogas movimentava US$400 milhões por ano. Não sei se era verdade. Nesse dia, entramos em seu carro antigo, que aqui vou dizer que era um Buick, mas sinceramente não tenho a menor ideia, e demos uma volta por Nova York. Eu me sentia, óbvia e ridiculamente, num filme, mas jamais confessaria uma coisa tão capiau quanto essa. Sem saber o que dizer, fiquei quieto.

Kurt, então, me convidou para traduzir Zéfiro com ele. Seus planos eram grandiosos e incluíam uma matéria na Vanity Fair e uma exposição numa galeria do SoHo. Até onde sei, nem uma coisa nem outra aconteceram. E lá veio ele com uns Zéfiros na mão, os olhinhos brilhando de curiosidade para saber o que significavam aquelas obscenidades todas em idioma estranho. Ao longo de uma tarde inteira, gastei todo o meu parco inglês vulgar traduzindo palavrões. Cheguei em casa exausto.

Nunca mais pensei em Kurt. Até outro dia, quando resolvi rever De Volta para o Futuro. Foram simplesmente um flash e uma sucessão de imagens à velocidade da luz: farol-santeria-townhouse-aids-carro-zéfiro-kurt. “Por onde será que anda aquele cara maluco?”, perguntei para ninguém. Sem saber que naquele momento ele vivia seus últimos dias, cheio de histórias reais ou mentirosas, e aquele olhar meio cínico de quem viveu O Uivo, de Allen Ginsberg.

Sem obituário no New York Times ou verbete na Wikipedia, e sem nem ao menos um sobrenomezinho para lhe conferir alguma dignidade individual, restou a Kurt a imortalidade deste texto apressado. E isento dos palavrões escabrosos em português que, na prosódia atrapalhada de aprendiz de Kurt, pareciam conceito filosóficos abstratos e pudicos.

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