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E se abandonássemos por um segundo o tom panfletário e déssemos a nossos adversários o benefício da dúvida?
E se abandonássemos por um segundo o tom panfletário e déssemos a nossos adversários o benefício da dúvida?| Foto: Bigstock

Percebi que meu domingo é dia de passar raiva. Acordo cedo com os sinos da igreja aqui perto, tomo banho, faço café e me sento à mesa para, como um Neanderthal, dar uma olhada nas notícias. E, como tem acontecido com uma frequência vergonhosa, me deparo com ele: o panfletário antibolsonarista.

Por curiosidade, mas também um pouco de masoquismo, clico no link para encontrar o discursinho de sempre, que se resume ao adágio homersimpsoniano do “todo mundo é burro, menos eu”. Lá estão o estilo raivoso, a menção desonesta a antifatos, o desespero diabólico e a arrogância de se achar capaz de impor uma realidade que obviamente seria muito melhor do que “essa que está aí”.

Aí, como castigo por ter me exposto logo cedo à homilia doente do panfletário antibolsonarista, passo a manhã com o estômago revirado, andando de um lado para o outro e tentando, primeiro, entender a formação desse raciocínio nada sutil, cheio de um pessimismo odioso e alicerçado em certezas macambúzias. Para que serve isso?! Depois, ingênua e estupidamente, fico pensando numa forma de refutá-lo com alguma graça e leveza, tanto como um desafio intelectual quanto como um pedido de desculpas aos leitores que, possivelmente, tenham sujado o pé nesse pântano de raiva logo cedo também.

No domingo passado (18), a história se repetiu, mas com duas reviravoltas. Assim que terminei de tomar café e de ler o texto do panfletário antibolsonarista da vez (quase sempre é o mesmo, mas às vezes não é), pedi licença, me levantei da mesa, peguei meu computador e, em vez de ficar só degustando a bílis inútil, me pus a martelar o teclado enfurecidamente. “Hoje o texto sai”, pensei, prevendo que meu editor sabiamente vetaria qualquer belicosidade maior de minha parte.

Sentindo-me algumas toneladas mais leve, mas inegavelmente uma pessoa pior por ter dado vazão a sentimentos tão ruins, pus um ponto final no texto. Deixei o computador de lado. Peguei um livro (“O Idiota”, de Dostoievski) e, duas páginas romance adentro, me dei conta de estar repetindo com o panfletário antibolsonarista o mesmo erro que o panfletário antibolsonarista comete semanalmente em relação à realidade por ele observada e mal retratada. Isto é, eu não lhe estava dando o benefício da dúvida.

Foi uma revelação que ganhou contornos de milagre assim que os sinos da igreja aqui perto começaram a chamar para a Missa. Larguei o livro, peguei o computador, apaguei o texto virulento e banhei minha calva no sol da manhã gelada. E comecei a dar ao panfletário e a toda realidade política que me cerca o benefício da dúvida. O que, aliás, recomendo a todos. É libertador.

Grito de desespero

Dar a alguém o benefício da dúvida não é pressupor nele virtudes inexistentes. Por outra, é tentar entender a motivação para os crimes & pecados que ele talvez cometa sem nem perceber. Serve para o panfletário antibolsonarista, com suas certezas débeis de que (1) está do lado certo da história e (2) será capaz de transformar toda a complexíssima realidade política por meio de suas palavras. E serve também para o alvo do panfletário. Neste caso, o governo de Jair Bolsonaro e toda a atmosfera insuportavelmente raivosa que o cerca.

O problema é que vivemos tempos apressados que requerem sentenças também apressadas. Pervertemos de tal modo a presunção de inocência (não como conceito jurídico, e sim como conceito cristão) que estamos o tempo todo tendo de provar a honestidade de nossas palavras, ações e até intenções. Temerosos de recebermos uma punhalada pelas costas, nem passa pela nossa cabeça a possibilidade do “erro bem-intencionado”. E, aqui, mais uma vez, estou apontando algo que une tanto o panfletário antibolsonarista quanto o atual governo e tudo o que o cerca.

Seria muito fácil, por exemplo, dizer que o panfletário antibolsonarista escreve o que escreve porque quer demonstrar virtude para seus amiguinhos da praça Saenz Peña. Ou porque se vê como a mosca orgulhosa de ter pousado na sopa do leitor. Ou que Bolsonaro (ou um de seus ministros) age como age porque também quer um sitiozinho em Atibaia. Ou, sei lá, porque gosta de ver o circo pegar fogo.

Não adianta. Assim como o panfletário antibolsonarista é incapaz de derrubar o governo ou de convencer os apoiadores de Jair Bolsonaro de que eles estão todos dolosamente enganados, também sou incapaz de mostrar ao panfletário as limitações estéticas e éticas de seu raciocínio. Melhor para a alma e o fígado, pois, é pressupor que tudo não passa do grito desesperado de homens contemporâneos inconformados com a própria pequenez e o profundo desprezo com que a Eternidade os (nos) trata. Um grito de desespero ao qual não quero me juntar.

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