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Lançamento do livro “O Grande Circo”, do Guilherme Fiuza. Chove e faz frio, mas o público é grande e chega cedo. Eu também. Enquanto a fila se forma à espera do intelectual orgânico mais querido do Brasil, fico por ali circulando pela livraria, pensando que um lugar daqueles, que antes eu considerava um templo, hoje é só uma loja cheia de itens que não pretendo comprar.
Ali na parte de livros de arte, penso em levar para casa um daqueles volumões grandes sobre Turner ou Caravaggio ou Ticiano. Ou Salvador Dalí, que nas conversas de bar tem sido motivo de debates veementes. Mas a livraria não tem Turner, Caravaggio, Ticiano nem Dalí. Só encontro porcarias como Os Gêmeos ou Adriana Varejão. Ou os onipresentes Monet e Van Gogh para impressionar as visitas e as crianças.
“Já tem fila, princesa”
Enquanto a princesa não chega, circulo pela livraria. Estou cansado. “Já tem fila”, escrevo para ele. Acho uma poltrona vazia e me sento. Logo, porém, sou abordado por um casal de simpáticos leitores que vêm conversar sobre o meu trabalho e tal. Conversamos trivialidades. Digo que voltei de férias, mas já estou cansado. Que não vejo muita saída para o Brasil. Pois é, a coisa tá feia. Não, nunca tive problemas com Alexandre de Moraes. Ah, a Gazeta do Povo me dá liberdade total. Sou um privilegiado, etc.
Aí o senhor, que até então estava assim meio afastado, me olhando com alguma desconfiança, me diz que tem informações a meu respeito. “Pronto, lá vem alguma história de ex-namorada”, penso. Mas não. “Ouvi dizer que você é de esquerda”, acusa ele. Acusa. Pelo menos me sinto acusado. No susto, arregalo meus olhos miúdos. Rio constrangido. Não me ocorre nada para dizer e por isso pergunto apenas: “Quem disse uma idiotice dessas?”.
Nunca fui
Não quero saber realmente, mas meu espírito traquinas entra na brincadeira e fico ali, sugerindo nomes. Foi Fulano? Sicrano? Ah, já sei! Só pode ter sido Beltrano. A todos os nomes sugeridos o senhor responde que não. Mas percebo que nele a dúvida sobre meu lado político, que em essência é uma dúvida sobre minha honestidade intelectual, persiste e implora para ser esclarecida. Talvez porque eu tenha essa cara de Lênin mesmo. Até que, sem absolutamente nenhum sinal de agressividade na voz, ele me pede: “Olhe nos meus olhos e diga que você não é de esquerda”.
Chego perto. Tiro os óculos. Meus diminutos olhos eslavozóides procuram os olhos dele. “Não sou de esquerda”, digo. Assertivo, mas sem drama. Com uma segurança até inesperada, sabe? “Nunca fui”, acrescento para preencher o silêncio constrangedor que se instala. E imediatamente o provoco: “E o senhor? O senhor tem cara de quem já votou no Lula, hein? Lá em 2002... Não votou, não? Tem certeza?”. Rimos. Ele jura que não, de jeito nenhum. Acredito, mesmo sem acreditar no que acabei de fazer: me justifiquei para um desconhecido que me cobrava coerência e sobretudo lealdade.
Mas eu tenho, ué
Aí vou lá para a fila. Fico pensando. Sei que alguns dos meus leitores também são assim: resumem seus semelhantes aos de direita, de esquerda e os isentões – balaio no qual estão incluídos todos aqueles dos quais se discorda pontualmente. É uma visão triste, que ignora nuances, complexidades e circunstâncias. Pior, é um atalho mental que leva sempre a uma mesma conclusão: a de que o outro não merece meu respeito e afeto porque defende ideias contrárias às minhas. E às vezes nem tão contrárias assim.
A fila anda. Dou um passo: quando é que a gente começou a desconfiar tanto assim um dos outros? E por quê? Outro passo: e se eu tivesse respondido ironicamente que era de esquerda? O que teria acontecido? Mais um passo: e se eu pegar esse livro aqui da Marilena Chauí só para provocar? Chega minha vez. Livro autografado. Foto feita. Abraço dado no Fiuza. Mas a noite ainda não tinha acabado e, na saída, sou interpelado por uma senhora que, dedo em riste, me repreende: “Não gostei de você ter dito que tem pena do Bolsonaro”, diz. Mas eu tenho mesmo, ué.




