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Será que as crianças, quando sonham ir ao espaço, imaginam que chegarão à Terra e dirão: "Vocês pagaram por isso"?
Será que as crianças, quando sonham ir ao espaço, imaginam que chegarão à Terra e dirão: “Vocês pagaram por isso”?| Foto: Bigstock

Minha mulher chega em casa, dá atenção e comida para a Catota e, estranhando meu silêncio e ausência, me chama pelos cômodos. Ela está prestes a ligar para a polícia quando me encontra na sacada, olhando as parcas estrelas que a poluição visual da metrópole me permite enxergar.

Depois de levar a devida bronca por quase tê-la matado do coração, ela me pergunta o que estou fazendo ali, àquela hora e naquele frio. Respondo que estou pensando em Bezos. Ela entende errado e abre um lindo sorriso malicioso. Mas, acabrunhado que estou em minha filosofice cotidiana, esclareço que estava pensando em Jeff Bezos e sua viagenzinha-relâmpago ao espaço.

Ela põe as mãos na cintura e dou um passo para trás, prevendo a catástrofe. “Não vai me dizer que você também considera desperdício de dinheiro e acha que esses bilionários deveriam tentar resolver o problema da fome na África antes de saírem por aí com suas navezinhas!”, diz ela, entre a reprimenda e a esperança de não me ver transformado num demagogo espacial.

Não, não vou usar esses argumentos que fedem mais do que sede do DCE depois que a mesada cai na conta. Simplesmente porque não acredito nesse discurso que mistura estupidez e burrice. Abro a boca para expor o motivo da minha melancolia, mas sou interrompido por um abraço e um besos que me levam a um Universo muito mais fascinante do que aquele que o ex-dono da Amazon teve o privilégio de observar.

E na alminha, não vai nada?

Naquele que ainda hoje considero o melhor episódio da série “The Crown”, o recém-falecido príncipe Philip está passando por uma crise existencial. Ex-piloto da Força Aérea Britânica, ele se vê reduzido a um mero bibelô, destinado a acompanhar a rainha sem exercer qualquer papel mais relevante na história. E, no meio dessa crise, ele tem a oportunidade de conhecer os três astronautas que, há não muito tempo, tinham sido protagonistas do maior feito da Humanidade: o pouso na Lua.

Acompanhamos o príncipe em sua angústia metafísica. Qual o sentido da vida para alguém fadado às pompas e honras de uma vida cercada de privilégios, mas virtualmente inútil? E o que os três astronautas têm a dizer sobre a sensação de vislumbrar a Eternidade escura e de colocar seus pés em outro corpo celeste?

Ao fim do episódio, porém, descobrimos que Neil Armstrong, Buzz Aldrin e Michael Collins são o que são: engenheiros. E não exploradores, no sentido mais britânico do termo. Muito menos poetas ou filósofos dignos de alguma epifania quando mergulhados no breu do Universo ou sujos de poeira lunar. Não! São homens que, apesar de terem colocado os pés no Mar da Tranquilidade, infelizmente os mantiveram bem presos à Terra e ao que temos de mais intelectualmente mundano.

O episódio beira a perfeição, mas também a crueldade, ao mostrar os astronautas como representantes máximos de um novo mundo. Um mundo obcecado pela tecnologia e que despreza, como se fosse superstição, essa metafisicazinha à toa de uma noite fria de terça-feira.

“Vocês pagaram”

Pois foi em meio a um dia com cara de Cioran e sob um frio dostoievskiano que acompanhei a viagem-relâmpago de Jeff Bezos ao espaço. O que ele, o homem mais rico do mundo, expoente da Revolução Digital e senhor do "capitalismo do futuro", teria a dizer sobre a experiência não única, mas rara, de admirar a imensidão escura, para além da qual só há mistério?

Minha esperança era a de que o departamento de comunicação da Amazon ou da Blue Origin criassem algum tipo de mensagem tão marcante quanto o “este é um pequeno passo para o homem, mas um passo enorme para a Humanidade”, de Armstrong. Afinal, imagine quantos PhDs e quanta diversidade racial e sexual não há nesses departamentos de comunicação. Fossem quais fossem as palavras de Bezos à porta da cápsula espacial, tinha certeza de que elas estariam gravadas não só nos livros de história, mas também na memória coletiva, como prenúncio de uma Nova Era.

Mas aí Bezos me sai com um agradecimento aos clientes da Amazon. “Vocês pagaram por isso”, disse ele, tão emocionado quanto um gerente das Casas Bahia que acabou de vender a geladeira mais cara da loja. Tão poético quanto o som do último carimbo de um cartorário. Tão inspirador quanto um tuíte de Paulo Coelho.

Sorumbático, saí para a sacada e lá fiquei, primeiro admirando o crepúsculo rosa do inverno curitibano e depois assistindo ao surgimento das primeiras e escassas estrelas. E, depois de algum tempo, chegando à conclusão de que não há erro no plano divino. Talvez o mais acertado mesmo seja jamais permitir que alguém com espírito de poeta vá ao espaço – para não corrermos o risco de ouvirmos ou um trocadilho infame ou uma epifania da qual não daremos conta.

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