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Miriam Leitão
Miriam Leitão: “Isso é muito sério”.| Foto: Reprodução/ Twitter

No romance “Os Invernos da Ilha”, o escritor e amigo Rodrigo Duarte Garcia comete uma ousadia semi-imperdoável na modorrenta literatura brasileira. Abusando da imaginação, ele descreve um duelo de espadas entre dois personagens contemporâneos. “Seguiremos à risca as regras tradicionais do Código de Duelos, de 1777”, explica um deles. “A não ser que o senhor prefira utilizar o Flos Duellatorum...”, emenda.

Ao ler isso, eu ri. E, talvez porque já tivesse tomado sol e gim-tônica demais, me lembrei dos grandes embates intelectuais da imprensa de um tempo que não vivi. E foi assim que, em meio às piscinas naturais de Bora Bora, tive a ideia para esta seção na qual refuto e/ou comento trecho por trecho algum texto que tenha chamado a minha atenção.

Intitulado “Plataformas atacam democracia e PL das Fake News, mais que nunca, deve ser votado”, o texto de estreia de Ponto & Contraponto foi publicado no jornal O Globo e é de autoria da jornalista Miriam Leitão, sobre a qual não farei nenhuma consideração pessoal. Afinal, o objetivo aqui é refutar e até ridicularizar ideias, e jamais pessoas.

* * *

PONTO: Os ataques ao PL 2630 durante o feriado e fim de semana colocaram do mesmo lado bolsonaristas e as plataformas, que entraram em uma guerra suja.

CONTRAPONTO: A autora já parte da premissa vitimista de que qualquer crítica ao PL 2630, carinhosamente intitulado PL da Censura, é um ataque. Não é. E, mesmo que fosse, a fim de sobreviver as ideias deveriam ser capazes de resistir a ataques argumentativos. Afinal, democracia pressupõe que se chegue a um consenso depois de muito debate. Depois de muito duelo.

Na mesma frase, o que se vê são as bases frágeis do pensamento supostamente democrático da autora, que não concebe um mundo onde as plataformas (ela está se referindo às grandes empresas de tecnologia, como o Google, Meta e Twitter) e os “bolsonaristas” não podem, em hipótese alguma, se aliar em torno de uma causa justa e nobre: a da liberdade de expressão.

Já a “guerra suja” é apenas um dos vários clichês que pontuam o texto panfletário.

PONTO: Deixaram claro os riscos aos quais a democracia está exposta e a necessidade de que o Brasil vote com urgência uma lei para a regulação das plataformas digitais.

CONTRAPONTO: E lá vêm eles novamente com a história de que a democracia está exposta a riscos. O argumento, porém, é tão fraco quanto o estilo que em muito lembra as redações escolares cuja conclusão sempre começava com “precisamos nos conscientizar de quê”. A autoria encerra o primeiro parágrafo optando por reproduzir a novilíngua petista, para a qual “censura” é “regulação das plataformas digitais”.

PONTO: O PL das Fake News esteve sob intensas investidas políticas e ideológicas da extrema direita nos últimos dias.

CONTRAPONTO: A regra é clara: escreveu “extrema direita” é porque entende que só a extrema esquerda tem direito a opinar. Nada poderia ser menos democrático do que isso. E o que seriam “investidas políticas e ideológicas”? Por que essa diferenciação? Toda investida política é ideológica, e vice-versa. Mais uma vez, a autora usa a imagem de um confronto para retratar algo que, numa democracia de verdade, com "d" maiúsculo e todo trabalhado no gótico, deveria ser até exaltado: o debate de ideias.

PONTO: Mas a pior delas foi a das big techs (sic), em especial o Google, em um movimento que inclusive coloca em risco a votação do PL nesta terça.

CONTRAPONTO: Não sei se o projeto de lei que institucionaliza a censura foi ou não votado, aprovado ou rejeitado*. Mas é curioso notar como, agora que lhe convém, a esquerda reconhece o poder de interferência das empresas de tecnologia. A ideia de que a votação está em risco também é digna de nota, porque se trata evidentemente de uma ressalva para o caso de o projeto ser derrotado no plenário. Se isso tiver acontecido, ou se o projeto nem for votado, você já sabe: a culpa é do Google.

* Atualização: o projeto foi tirado da pauta.

PONTO: O pior não é a campanha que fazem contra o PL, mas o fato de que distorcem o debate usando o poder que têm sobre disseminação de conteúdo.

CONTRAPONTO: A frase é de um cinismo muito comum entre a esquerda semiletrada. Lendo com atenção, tem-se a impressão de que a autora está concedendo à oposição o direito de se posicionar contra o PL. Mas o que vem depois da vírgula denuncia a intenção real disso que só a muito custo se pode chamar de ideia. Para os defensores da censura institucionalizada, qualquer argumento contrário à ideia totalitária é “distorção do debate”.

PONTO: As plataformas entraram pesado nesse jogo. Fizeram anúncios em rádio, no Spotify e se posicionaram até no buscador principal do Google, fazendo a afirmação mentirosa de que o PL tornará mais difícil separar mentira da verdade.

CONTRAPONTO: Confesso que a primeira frase do parágrafo me fez voltar às aulas de redação da sétima série. No mais, por que apenas socialistas/progressistas é que podem defender com afinco (“entrar pesado no jogo”) seus valores? Novamente a autora deixa claro que tem uma visão muito particular de democracia. Uma visão que evoca a sabedoria milloriana, segundo a qual “democracia é quando eu mando em você; ditadura é quando você manda em mim”.

Em seguida, a autora denuncia o que ela acredita ser um crime gravíssimo: as empresas de tecnologia fizeram anúncios defendendo seu posicionamento contra a censura petista. Tudo isso para encerrar com uma oração sem pé nem cabeça, na qual ela acusa o Google de estar mentindo ao dizer o óbvio: distinguir a verdade da mentira sempre foi difícil. E um projeto de lei que dificulta a livre circulação tanto de ideias verdadeiras quanto mentirosas só dificulta ainda mais essa tarefa ancestral.

PONTO: Foram além disso. Bloquearam alguns perfis e reduziram a circulação de qualquer conteúdo que seja a favor do PL usando algorítmos, ao mesmo tempo em que promoveram conteúdos contrários.

CONTRAPONTO: Aqui vale notar a estratégia meio infantil de ocultar o sujeito antes de fazer acusações que se provaram, com todo o respeito, levianas. Miriam Leitão não tem qualquer prova de que as empresas de tecnologia bloquearam perfis ou reduziram a circulação de conteúdos favoráveis à censura. É pura especulação que me obriga a perguntar: e se fosse o contrário?

PONTO: A especialista em comunicação digital Nina Santos, representante da Sala de Articulação contra a Desinformação, aponta que isso é censura.

CONTRAPONTO: Nina Santos? Prazer, Paulo.

Nesse trecho fica clara a mentalidade academicista e burocrata da autora, que acredita que o título de “especialista” confere autoridade a qualquer pessoa, a ponto de ela julgar necessário mencionar a Nina (olha a intimidade!) no texto. No mais, Sala de Articulação contra a Desinformação cheira a eufemismo para Cantinho do Censor Esquerdista.

PONTO: É uma plataforma dizendo o que é ou não importante na discussão de uma política pública.

CONTRAPONTO: Não. É uma plataforma se posicionando diante de um projeto que prejudicará os negócios dela. E aqui é necessário fazer uma ressalva importante. Não é o “amor à liberdade” o que move as empresas de tecnologia. Isso ficou bastante claro durante as eleições. O que move as empresas é o temor de perder um mercado de 200 milhões de pessoas.

PONTO: Estão tomando atitudes antidemocráticas, e não podem fazer isso. As plataformas entraram na guerra de maneira suja, e querem forçar sua opinião. Isso é muito sério.

CONTRAPONTO: “Tomando atitudes antidemocráticas”. Mais uma vez a autora recorre à linguagem vazia e exaltada típica dos panfletos. Talvez ela conte com a passividade algo bovina de seus leitores, não sei. Adiante, ela repete o adjetivo que parece ter criado raízes em sua imaginação árida. A guerra é, novamente, suja. “Querem forçar sua opinião” é outra afirmação cuja pobreza estética fere os olhos de qualquer leitor minimamente exigente.

Tudo para concluir o texto com o brilhantismo estéril de uma frase comumente entreouvida em meio às discussões nos campeonatos de dominó do Passeio Público: “Isso é muito sério”.

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