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Polzonoff

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"Para nós, há apenas o tentar. O resto não é da nossa conta". TS Eliot.

Que loucura!

Que a cultura do cancelamento não tenha resultado em nenhum cadáver é um milagre

Às vezes para escapar do hospício basta abrir a porta. E dar o primeiro passo. (Foto: Reprodução/ Wikipedia)

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Consulto o relógio do computador. Quatro e meia da tarde. Olho pela janela e o céu não é nada convidativo à contemplação. Umas nuvens feias (e nuvens raramente são feias) em meio a um azul desbotado. No horizonte, prédios demais, araucárias de menos, uns ciprestes e uns pássaros voando em fila indiana (juro!). Talvez chova. Talvez não. Ao meu redor, apenas o ruído intermitente da rua e que por vezes confundo com silêncio.

Eis que me dou conta: passei praticamente o dia inteiro discutindo os muitos aspectos do linchamento virtual de um podcaster e da demissão de um comentarista da TV Jovem Pan. Um amigo diz que isso. Outro diz que aquilo. Um terceiro nos brinda com um link para algum absurdo que nos revolta. Todos expressamos nossa indignação, um com palavras, outro com emojis e outro com tantos pontos de exclamação quanto forem possíveis. Os memes começam a chegar e, entre a culpa e o constrangimento, opto pela risada inofensiva.

(Este é aquele momento em que o chato, em toda a glória de sua chatice, vê acender sobre a cabeça a crítica mordaz e ferina, nascida da sua oh-que-esperteza!, que perspicácia! E que mores, ó tempora! Satisfeitíssimo consigo mesmo, o chato, então, se permite manifestar tamanha inteligência na forma de uma pergunta feita com aquela inflexão irritantemente aguda que é a marca de todos os chatos indignados: quer dizer que você ri de coisa séria?!).

Inofensiva, mas não inócua, a risada. É bom saber que, fora do alcance das multidões, a palavra ainda pulula e o discurso é livre, ou melhor, está restrito apenas à nossa consciência e à nossa disposição em corrermos o risco de sermos mal-entendidos. Um risco calculado de acordo com variáveis como a capacidade de interpretação dos interlocutores, a estranha relação de lealdade nas amizades virtuais e reais, bem como o senso de humor apurado (apuradíssimo) daqueles que ainda se permitem rir sem ter de pedir autorização à turma que o cerca. A risada me faz dar o devido peso às coisas. E o que nasceu como um pesadelo muito do palpável se transforma num daqueles sonhos modorrentos sobre algo trivial.

Me levanto. Vou lavar a louça. Não tem louça para lavar. Pego uns copos e pratos limpos do armário, uns talheres reluzentes da gaveta, e começo a lavá-los assim mesmo. De cima da mesa, ouço meu telefone vibrar várias vezes. Dentro do aparelhinho, os amigos ainda não esgotaram as possibilidades de veredito para o que aconteceu. Mas o que foi que aconteceu mesmo? Um disse uma coisa; outro fez um gesto. Quantos foram os mortos e feridos dessa batalha? Lavo a louça e reflito e quase me corto e me pergunto se não é um caso de pedir para a Alexa tocar Ella Fitzgerald. E, quando dou por mim, estou preocupado.

“Que a cultura do cancelamento não tenha resultado em nenhum cadáver é um milagre”, digo para o apartamento vazio. Concluo apressada (e talvez equivocadamente) que é uma frase digna de ser usada num texto, neste texto. Fecho a torneira, seco as mãos, procuro papel e caneta e... Como era a frase mesmo? Ah, sim. Que a cultura do cancelamento não tenha resultado em nenhum cadáver é um milagre. É preciso ter a pele grossa para suportar essas chibatadas da vida. Nem todos têm. E, como vivemos num mundo que muitas vezes vê na aceitação pela multidão o único sentido para a vida, não é de se duvidar que uma hora ou outra um desses cancelados chegue a uma conclusão não só fatídica, mas também trágica.

Largo a caneta, me perguntando se deveria ou não incluir um “ainda” na frase. É quando escuto barulhos no corredor. Será que minha vizinha, essa mesma da risada espalhafatosa, sabe quem é Monark e Adrilles? Não que ela seja ignorante; eu é que sou, já que não sei nem o nome dela. Vizinhos curitibanos, sabe como é. Pelo menos digo “bom dia” se a encontro no elevador. Mas perguntar o nome já é exagero. É coisa de carioca. Voltando: será que minha vizinha tem uma opinião sobre esse assunto? Será que ela já se imaginou na Alemanha nazista ou na União Soviética stalinista? Se ela soubesse que passei o dia escrevendo, lendo e discutindo liberdade de expressão, cultura do cancelamento e saúde mental de celebridades canceladas, será que me consideraria louco ou um profissional dedicado a seu ofício?

Encontro refúgio para a minha loucura e/ou dedicação exacerbada na cadeira de balanço. A palha trançada pinica minha pele. A Catota? Que bom que você perguntou. Sei lá! Tá por aí. Quando ela quiser biscoitinho vai vir toda dengosa e fingindo amor, a danada. Antes de me deixar levar pelo romance policial que tenho em mãos, me permito uma última olhadela no simulacro de vida, nas redes sociais onde tudo parecer acontecer, mas, se você parar para pensar, nada acontece de fato.

Ao constatar que todos os que conheço e estimo, e até uns que não conheço ou não estimo, estão bem e continuam se xingando como se ter razão fosse a coisa mais importante do Universo, solto um suspiro de alívio. Às vezes para escapar do hospício basta abrir a porta. E dar o primeiro passo.

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