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O leão de “O Mágico de Oz” só é covarde porque não enxerga os próprios atos de bravura.
O leão de “O Mágico de Oz” só é covarde porque não enxerga os próprios atos de bravura.| Foto: Reprodução

Quis escrever sobre a covardia, mas tive medo. Porque covardia é coisa séria. Numa escala muito pessoal, ouso dizer que “covarde!” é o xingamento mais agressivo da língua portuguesa. Sim, mais do que esses aí nos quais vocês está pensando. Chamar alguém de covarde pressupõe, entre outras coisas, que esse alguém está disposto a qualquer coisa (qualquer coisa mesmo!) para sair de uma situação constrangedora. Ou pior: que esse alguém projeta nos outros defeitos tão abomináveis quanto inconfessáveis – e por isso tem medo.

Não passo de um antropólogo de botequim, mas diria aqui, até porque uma afirmação categórica dessas fica bonita na crônica, que em todas as sociedades do mundo o covarde é um pária. Aí vou além, boto meu pince-nez e tudo, e acrescento: isso se dá um pouco pela tradição militar e pela exaltação do que hoje os covardes inumeráveis chamam de “masculinidade tóxica”, sim, mas também um pouco pela ojeriza física e espiritual que o covarde desperta.

Afinal, o covarde é aquela pessoa que, diante de um desafio, hesita ou se nega a agir. Ou passa por cima de qualquer princípio para se salvar. Também é aquela pessoa que provoca, mas se furta a arcar com as consequências. E há ainda o covarde que teme tudo e todos porque lhe falta a Graça fundamental da confiança – nos semelhantes, nos estranhos, na honra dos adversários, nessa abstração realmente traiçoeira que pode ser a sociedade, nas instituições e, por fim, nos desígnios divinos.

E, no entanto, todos nós somos ao menos um tiquinho covardes. Uns mais, outros menos. Uns ontem, outros hoje, mas ninguém quer ser o covarde de amanhã! Ah, vou até aproveitar este parágrafo para dizer que este texto não é uma indireta a ninguém – porque só um covarde bem covardão faz acusações indiretas. Estou escrevendo sobre a covardia, pois, sem olhar para ninguém além de mim mesmo. O que, convenhamos, exige uma baita de uma coragem. Se bem que reconhecer isso parece covardia. Melhor parar por aqui, porque agora fiquei confuso.

Como ia dizendo antes de ser interrompido por mim mesmo, todos nós somos ao menos um tiquinho covardes. Uns mais, outros menos. Uns agora, outros daqui a pouco. Em nossos mais variados graus de covardia, estamos unidos por uma constante: a justificativa. Repare: a covardia sempre vem acompanhada por um “não tinha saída” ou um “não havia alternativa” ou "era só o que eu podia fazer". E agora me ocorreu que você talvez tenha uma leitura político-eleitoral disso e... tudo bem. Posso até ter sido e fui, mas não serei novamente covarde a ponto de querer controlar a forma como as pessoas interpretam meus textos.

A covardia, porém e ainda bem, tem seus atenuantes. Use-os com cuidado, eu diria, sugerindo sutilmente o primeiro desses atenuantes, que atende pelo simpático nome de “precaução”. Ou pelo apelido de “cautela”. O homem precavido (ou cauteloso) não é, de jeito nenhum, um covarde. Bom, talvez só um pouquinho. O mesmo não se pode falar do homem excessivamente precavido. Do tipo que se acha capaz de antever todos os perigos e que, diante deles, opta por ficar todo encolhidinho sob a cama.

A fronteira entre a precaução sábia e a covardia vergonhosa é, para mim, um mistério. Para você provavelmente também. Em que momento, aliás, o corajoso ou ousado, por medo de ser confundido com um covarde, se transforma apenas num tolo arrogante e intempestivo, capaz das maiores atrocidades para bancar o herói? Não sei. Estou covardemente jogando as perguntas para os leitores. Responde quem tem coragem.

O mesma dúvida serve para duas outras atenuantes que me ocorreram há pouco: a paciência e a fraternidade. Em que momento o homem paciente, por medo de ser confundido com um covarde, cede à tentação da pressa e age instintivamente só para bancar o herói? E como chamar de covarde alguém que abdica da coragem momentânea para proteger os próximos, sejam eles familiares, amigos, colegas de trabalho e até desconhecidos?

Num ambiente politicamente esquisito como o que vivemos, parece que nossos sentidos ficam mais aguçados. Ou é isso ou é melancolia da braba nesses dias úmidos e frios, porque tenho cá para mim que os covardes andam mais numerosos e, contrariando a lógica mais elementar (que covardia usar um chavão desses aqui!), mais ousados ao expressarem sua covardia. Novamente, porém, sou obrigado a pedir que se leia a palavra “covardia” aqui com a devida... precaução, benevolência e, se não for pedir demais, humildade. Afinal, aquele que nos parece o mais covarde pode abrigar dentro de si uma coragem silenciosa e inacessível, que se expressa por uma prudência, paciência e caridade incomuns.

Viu?! Era justamente por isso que eu estava com medo de escrever sobre a covardia. Como você pôde notar, não é fácil falar sobre algo que mexe tanto com nossos brios, com a imagem que temos de nós mesmos e com a imagem que acreditamos projetar para o mundo. Mas tentei e, só por isso, me sinto um pouco menos covarde. Se bem o autocovardenômetro volta a subir quando, já pelo título, temo o mal-entendido, a incompreensão total ou, pior ainda, a leitura hostil. Serei um covarde por causa disso? Sei lá. Só sei que está consumado.

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