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Você se escandalizou com a imagem de Bolsonaro comendo pizza na rua em Nova York? Talvez isso revele mais sobre nós do que sobre o presidente.
Você se escandalizou com a imagem de Bolsonaro comendo pizza na rua em Nova York? Talvez isso revele mais sobre nós do que sobre o presidente.| Foto: Reprodução/ Twitter

Entendo que aceitar um presidente como Jair Bolsonaro não seja fácil. Acredite: não é fácil para mim. Também fui criado para ver o presidente do Brasil como um grande líder frasista à la Churchill ou um “reizinho republicano” cheio de pompas e ponderações, quando não um sábio inspirado em Marco Aurélio. Também me ensinaram a olhar com admiração para Fernando Henrique Cardoso falando um francês perfeito na Sorbonne.

Mas os tempos mudaram, assim como a moral e até os humores do mundo. Não é uma mudança que conte com minha aprovação pessoal. Mas é a realidade que está posta e com a qual preciso (precisamos) aprender a lidar. Uma realidade incontornável. Ou melhor, uma realidade cujo contorno, neste momento, acredito que traria mais prejuízos do que benefícios ao país.

Para usar uma palavra da moda, abjeta como todas as palavras da moda, Bolsonaro é... disruptivo. E, no entanto, paradoxalmente ele nada mais é do que produto da nossa democracia. Não é um dos preceitos da democracia a ascensão do “homem simples” ao topo da hierarquia? E, no entanto, por que é que quando isso acontece nos sentimos incomodados? Será que, no fundo, não temos ojeriza a esse povo ao qual a democracia confere a esperança de, um dia, agir como rei?

Se temos ou não razão nessa ojeriza é outra discussão – uma discussão que expõe inclusive nossas preferências estéticas diante de um mundo cada vez mais vulgar (palavra que uso aqui no sentido de “popular”). Sim, Bolsonaro é um presidente simplório. E vai da formação de cada um considerá-lo tosco e rude ou espontâneo e, digamos, simbólico de um Brasil para o qual insistimos em virar os olhos.

Confesso que não tenho uma resposta para esse “dilema”. Há dias em que Bolsonaro me surpreende positivamente, como quando da divulgação da carta que, ao menos temporariamente (e teoricamente), pôs fim à tensão com o Judiciário. Em outros momentos, sinto um nojinho e uma vergonha que rapidamente se transformam em indignação. Mas acredito que essas reações falem mais de mim do que daquele homem.

O escândalo da pizza

Veja, por exemplo, a foto que circulou à farta, na qual Bolsonaro & assessores aparecem comendo pizza numa calçada qualquer de Nova York. Ao ver a imagem, minha primeira reação foi apelar ao menino que nas aulas de OSPB aprendeu a respeitar o Sarney. O Sarney! Aquilo parecia indigno de um país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza. Imagine o que Lotay Tshering, primeiro-ministro do Butão, pensaria do nosso país ao ver aquela imagem.

Aos poucos, porém, a indignação e vergonha instintivas deram lugar a algo remotamente parecido com a razão. Até amanhã (ou depois de amanhã) a foto terá sido soterrada por um zilhão de imagens mais impactantes ou relevantes. Na semana que vem, Bolsonaro terá substituído essa gafe (se é que você considera uma gafe) por outra. Ao fim do mês, a imagem terá perdido qualquer sentido para além do anedótico. E daqui a uma década, com sorte, a imagem figurará numa notinha de rodapé de uma hagiografia bolsonarista ou de um panfleto antibolsonarista.

A vergonha, então, se dissipa totalmente quando me dou conta (e não precisa ser muito brilhante para isso) de que aquela imagem, assim como a imensa maioria das gafes presidenciais aqui e no mundo, não tem qualquer consequência na minha vida. Sigo aqui, trabalhando e tentando escrever da melhor forma possível, cuidando das pessoas que amo, lendo meus livrinhos, vendo uns filminhos, reclamando do calor e do preço da carne e acordando com uns tapas da Catota exigindo ração especial.

E, no caso dessa imagem específica, me dou conta de que ela não tem nenhuma consequência para vida do país. Afinal, apesar da opção (a meu ver, questionável) de Bolsonaro por não se vacinar, o Brasil segue vacinando quem deseja – e até quem não deseja. E o Congresso legislando. E o STF continua fazendo o que quer que o STF faça. E há seca onde há seca e chove onde chove. E, se o país não é melhor, tampouco é pior porque o Chefe de Estado comeu pizza de pé numa rua de Nova York.

Necessidade de aceitação

Do final das contas, deduzo que, se esse “escândalo” (mais um!) serve para alguma coisa, é para revelar a minha própria afetação. Uma afetação que, desconfio, nasce mais da necessidade natural de ser aceito ou, no mínimo, de não ser mal interpretado. Mas repare que ambas as necessidades pressupõem uma ação externa de aceitação e de interpretação sobre a qual não temos nenhum controle.

Essa afetação não tem nada a ver com as opções políticas e morais de um homem que, pelo menos até o fim de 2022, ocupará o Palácio do Planalto. Tampouco tem a ver com as opções políticas e morais de quem o considera mito ou opiorpresidentedahistória. Transferir minhas carências afetivas para um sujeito que não conheço, portanto, seria sintoma de uma insanidade viral para a qual não há Coronavac que dê jeito.

E hoje, só por hoje (mas espero que amanhã e depois de amanhã também), vou optar por me manter são, atendo-me ao que há de real e consequente na vida. E não ao que faz ou diz ou ameaça ou desiste o bode expiatório de uns e salvador de outros.

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