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Fora da Lei não há salvação!
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Por Edson Travassos Vidigal

Parece que, em 1892, Rui Barbosa teria encontrado D. Pedro em Paris, e lhe dito: “Majestade, perdoe-me, eu não sabia que a República era isso”.

No mesmo ano, teria abandonado a bancada do Senado justificando sua conduta em mais um dos muitos discursos contundentes contra os abusos de nossa “esquálida” República Federativa.

Dias depois, publicou um manifesto com a sua famosa frase:

“Com a lei, pela lei e dentro da lei; porque fora da lei não há salvação. Eu ouso dizer que este é o programa da República”.

E eu ouso frisar que este É o programa de uma República. Quem dera que fosse da nossa, se vivêssemos de fato em uma.

Rui Barbosa, o Tal do “Águia de Haia”, foi um dos mais brilhantes brasileiros que existiram na História de nosso país, numa época remota, que deixa saudades, muito antes do “nunca antes”, quando existiam homens públicos preparadíssimos para o exercício das funções públicas, que se orgulhavam de terem aptidões, preparo, estudo.

Ele foi jurista, político, escritor, diplomata, jornalista, orador, tradutor, filólogo. Foi o responsável pela primeira Constituição de nossa República, e pelo respeito devotado à diplomacia brasileira até hoje. Foi corajoso e obstinado defensor da abolição da escravatura, do federalismo e dos direitos humanos. Fez tudo isso alicerçado em uma formação técnica impecável e em um intelecto invejável e raro.

Poucos sabem que foi, também, praticamente o “inventor”, em nosso país, da campanha eleitoral moderna, quando, em 1910, lançou a sua famosa “campanha civilista” (nome dado em defesa da candidatura de um civil) à Presidência da República, em oposição ao Marechal Hermes da Fonseca.

Rui Barbosa rodou o país difundindo suas bandeiras – a Constituição, os direitos dos cidadãos – acompanhado pela nata da inteligência nacional, promovendo discursos, comícios, palestras, encontros. Realizou uma campanha empolgante, apoiada também por estudantes que lotavam salas de aula, teatros e ruas, apoiando o “candidato do povo”, que lutava pelos direitos dos cidadãos a partir de conhecimento técnico, tendo como principal arma a utilização do Habeas Corpus no STF contra toda e qualquer afronta a tais direitos.

Anos antes, aconteceu de o Marechal Deodoro deixar a Presidência antes do fim de seu mandato, em uma grave crise na qual as forças dominantes tentavam impor nova eleição, afrontando o previsto na Constituição.

Rui Barbosa foi ao STF defender a permanência do Vice Presidente – Floriano Peixoto, alegando que seu projeto de Constituição era baseado na Constituição americana, e determinava que, dada a vaga, fosse em que tempo fosse, o vice-presidente exerceria a presidência até o termo do período presidencial.

Desse embate a turbulência aumentou e o resultado foi a decretação de estado de sítio, a prisão de senadores e deputados, reforma de 18 oficiais e deportação de vários presos.

Rui Barbosa, não obstante sua amizade com Floriano Peixoto, impetrou habeas corpus no STF em favor dos ofendidos, mesmo tendo dentre eles alguns de seus inimigos políticos.

Em seu pedido, ressaltava:

“… Não quer o impetrante ofender por modo nenhum a alta magistratura do Poder Executivo, cujas glórias, se forem as que se conquistam com a lei, redundarão em glórias da instituição republicana e honra para todos os filhos do país. Acredita o impetrante no patriotismo do cidadão a quem está presentemente cometida a administração da República. MAS NENHUMA VIRTUDE PODE PÔR ACIMA DA LEI O CHEFE DE UMA NAÇÃO REPUBLICANA”.

Rui perdeu a ação, e Indignado, publicou um artigo intitulado “O Justo e a Justiça Política”, que assim terminava:

“Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de Estado, interesse supremo, como quer que te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde”.

É o exemplo que marca. Não o discurso. O discurso só encontra força nas ações coerentes de quem o pronuncia. Rui Barbosa foi um ser humano que transformou a coerência de sua vida com o seu discurso em um exemplo, e hoje vive entre nós não mais como ser humano, mas como uma ideia – da defesa preparada e coerente de um Estado Democrático de Direito Federalista contra a demagogia, a hipocrisia, os abusos, as exceções, as arbitrariedades, as ilegalidades, as imoralidades.

Hoje temos governantes semianalfabetos, que se acham acima da lei, acima do bem e do mal, que se acham supra-humanos. Governantes incoerentes entre o que falam e o que fazem. Para quem os direitos servem para atacar os inimigos e defender os amigos, conforme a conveniência. Que debocham da lei, da Justiça e do povo descaradamente, transformando uma campanha eleitoral em simples enganação da pior qualidade. E o pior é que conseguiram contaminar nosso povo.

Mais uma vez são atuais as palavras de Rui, ditas no Senado em 1914:

“Sinto vergonha de mim por ter sido educador de parte desse povo, por ter batalhado sempre pela justiça, por compactuar com a honestidade, por primar pela verdade e por ver este povo já chamado varonil enveredar pelo caminho da desonra,
(…)

Tenho vergonha de mim pela passividade em ouvir sem despejar meu verbo a tantas desculpas ditadas pelo orgulho e vaidade, a tanta falta de humildade para reconhecer um erro cometido, a tantos “floreios” para justificar atos criminosos,
(…)

De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto”.

 

Edson Travassos Vidigal é advogado especialista em Direito Eleitoral, professor universitário de Direito e Filosofia, músico e escritor.

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