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A dança da morte
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O ser humano está farto, com sucessivas ondas de “estar farto”. Assim como no século XIV, a humanidade dança com a morte — ou como diriam os antigos, faz uma “dança macabra”. Nas manifestações artísticas da época, em decorrência da peste, era comum encontrar essa cena, onde se misturam vivos, mortos, moribundos, e até mesmo a morte dança em conjunto.

No entanto, não é sobre essa dança que venho tratar aqui. Na Idade Média, esse símbolo tinha como objetivo lembrar os fiéis que a morte era inevitável, que o fim chegaria, gostemos ou não.  Como o mundo ocidental passou a se destacar pela inversão de seus valores tradicionais, o cenário que temos hoje é um pouco diferente.

Cumprindo sua promessa de campanha, o presidente da Argentina, Alberto Fernández, ao final do seu primeiro ano conseguiu aprovar um projeto que legaliza o aborto no país. Quando o assunto é interrupção deliberada da gestação, a primeira pergunta que se faz é sobre a existência ou não de uma vida no feto, consequentemente abrindo a questão do momento em que surge a vida. O debate é inconcluso, as divisões ideológicas e políticas antagonizam as respostas.

Então poderíamos aceitar que não há uma resposta concreta para esse problema? Vamos dizer que sim; dar o benefício da dúvida aos incautos. Com isso, alguém poderia esperar uma dança que cultua o ato que possivelmente extermina uma vida? Sim, poderíamos. Em 2018, feministas se mobilizaram para celebrar a possibilidade de abortar. Desta vez não foi diferente, com a exceção de terem protagonizando um show de horrores na cara de quem vislumbra essa insanidade. Mas essa não era a intenção?

Se há algo em comum entre a dança da morte do período medievo e a celebração das “mulheres conquistadoras” na Argentina, está na essência. Em ambos os casos, a finalidade dessa expressão é chocar, e a origem é a tentativa de colocar a vida contra a própria vida. Explico.

O ser humano vive em uma relação de conflito com o mundo, buscando se impor sobre ele; quando consegue, ganha uma elevação do seu próprio ser, mas do contrário, fica impedido de externalizar sua vontade, e volta sua imposição contra si mesmo. No primeiro caso, a Europa estava devastada pela Peste Bubônica, colocando todos as certezas do homem contra a parede. A angústia e o desespero frente a essa realidade que se impõe contra o sujeito provocam reações distintas; a Igreja soube muito bem controlar os impulsos naturais daqueles que viviam naquele contexto. As representações da dança da morte provocavam medo, choque, espanto, resultando em maior fidelidade ao ideal apresentado pela Igreja. O homem se revolta com a ideia de que tudo iria se resumir a desgraça do mundo infestado pela peste. 

Do mesmo modo, a dança macabra das “hermanas” surge de uma ação da vida contra a própria vida; não pregam uma vida após a morte, mas possuem também um ideal. O horror e a depressão presentes na mente dessas feministas surgem também da revolta, da insatisfação e do ressentimento com a imposição do próprio mundo. Todavia, o que diferencia os casos é justamente uma questão de ordem. A celebração resulta de uma espécie de “vitória” contra o mundo. O resultado, meus caros, não parece ter sido nada parecido também. A dança não provocou medo ou desespero, mas aversão e repulsa; elas não pretendem nos lembrar da morte para que, ao fim, nos juntemos a elas. Pelo contrário, a dança expressa a grande contradição da própria luta do movimento.

A senadora Silvina García Larraburu, do parlamento argentino, antecipou seu voto favorável ao projeto, quando declarou: “Meu voto é por uma mulher livre, que possa decidir por sua própria consciência”. É justamente daí que nasce o sentimento de repulsa frente à dança macabra. Partindo desse voto, podemos entender como é, portanto, a consciência daquelas que dançavam e pulavam festejando a “conquista”.

Como podem passar anos gritando para terem o “direito de escolha” e agora saltitarem como se houvesse algum prazer, alguma vitória, quando juravam se tratar apenas de uma opção necessária para a mulher? Mesmo com a “colher de chá” que demos no início do texto, a mínima celebração de um procedimento baseado na morte justifica a atribuição do termo “macabro” ao ato.

A repercussão do vídeo no Brasil deve deixar claro qual é a mentalidade por detrás da luta desenfreada pela interrupção da gravidez. Certamente não se trata de uma questão sanitária, como costumam dizer com o objetivo de anular argumentos éticos, jurídicos e até científicos.

Trata-se de uma reação meramente calcada no ressentimento, na frustração existencial que busca um ideal para se impor sobre o mundo; uma conquista que pisa em cadáveres, que servem de voz — mera narrativa — para seu grito angustiado em um mundo que cada vez menos faz sentido para todos nós.

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