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Um país de Juliana Paes
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Um povo desacostumado a ter esperança deveria ser imune à fé política. Via de regra, esta é a regra — não fosse o caso brasileiro. Ainda que permanentemente desenganados, despertamos da apatia como que de súbito, motivados por um fio de esperança que nos tira da agonia trágica de todos os dias e nos conduz para uma explosão efêmera de sentimentos ufanistas e gritas de futuro glorioso. Nossos surtos de otimismo, porém, quase sempre se confundem com ilusão, premiando homens que se comportam como catalisadores destes sentimentos que, irreais por natureza, fazem da esperança matéria-prima para seus projetos pessoais de poder. 

É da natureza do homem cordial, expressão cunhada por Sérgio Buarque de Holanda, impor na tomada de decisão aquilo que vem do coração. Nos apaixonamos com facilidade, mas odiamos na mesma medida. Isso talvez explique a ascensão e queda de figuras tão diferentes como Getúlio Vargas, Lula e, agora, Jair Bolsonaro. Sim, o presidente talvez amado por muitos que ora leem esta coluna (e me enxovalham nos comentários) está longe de ser unanimidade para aqueles que nele devotaram o “17 confirma” em 2018. É o que mostram as pesquisas e — melhor que elas — as estratégias de um dos grandes Mandraques da política brasileira.

João Santana entende de comunicação. Ex-marketeiro de Lula, o baiano foi responsável pela estratégia política nos tempos áureos das campanhas bilionárias (extra-oficialmente, claro) do PT. Foi dele a ideia de cindir o país em dois, o Norte/Nordeste petista que haveria de alcançar a glória e o Sul/Sudeste “invejoso da ascensão dos mais pobres”. Foi dele a ideia de polarização irremediável que nos consome até os dias de hoje. É dele, em grande medida, a culpa pelo desastre que vivemos.

Santana foi contratado por Ciro Gomes para construir sua campanha eleitoral. Incapaz de atingir o eleitorado pretendido — as massas que votavam no PT e estavam carentes de representação —, o cearense via-se perdido para o pleito. O que fazer agora que Lula voltou? A resposta não “estava soprando ao vento”, como cantou Bob Dylan, mas foi planejada friamente pelo marketeiro baiano. Ciro deveria abandonar o eleitorado que tentou cultivar em vão ao longo dos últimos anos e buscar, ironia das ironias, a pequena burguesia e a odiosa classe média cujos valores repudiou com veemência com sua habitual verve. 

Ciro agora chama Bolsonaro de traidor. Soa no mínimo engraçado, posto que Bolsonaro nunca lhe traiu. Bolsonaro foi mais Ciro que o próprio Gomes, exercendo nacionalismo tacanha e sabotando reformas liberais com a agilidade de um Brizola. O novo Ciro se impõe esta tarefa pois o pote de ouro, ao final deste arco-íris, é recompensa das grandes. É ouro puro em termos eleitorais.

João Santana sabe que no mínimo metade do eleitorado brasileiro repudia Lula e Bolsonaro. É o que as pesquisas e o sentimento das ruas mostram. A massa de trabalhadores que perderam emprego, mulheres de todas as regiões e os jovens — cerca de 75% dos brasileiros entre 16 e 24 anos — tem ojeriza completa ao governo Bolsonaro, o que não significa adesão espontânea ao projeto petista. São eleitores digitalmente participativos, de fácil acesso através das redes sociais. Eleitor que não demanda máquina, mas discurso, horizonte, esperança. 

Se essa percepção fria do “Nem Nem”, baseada em números, não faz a cabeça dos fiéis de Lula e Bolsonaro, eis que sinais mais carnais, humanos, fáticos, aparecem no horizonte para desorganizar a festa construída para 2022. Pois foi isso que Juliana Paes e Sara Andrade, atriz e ex-BBB, fizeram ao renegar ambos em suas respectivas redes sociais. Expuseram-se e, de tanto apanhar, descobriram que o apoio amealhado era maior que a pancada orquestrada. Em resumo, deram voz a um público — um eleitorado — que se vê sozinho e perdido no deserto de alternativas. 

A massa que se mobilizou em seu socorro, desorganizada porém expressiva, impressionou pelo tamanho e pela repercussão. É como se Juliana Paes, e não um político de ocasião, fosse o catalisador do processo, o indivíduo a encarnar um sentimento que se fez causa. Tal processo é importante por detonar, dentro do cidadão desesperançado, o sentimento de “não estou sozinho”, de “é possível fazer diferente”. Essa fagulha é fato dado — notado por todos os agentes políticos interessados.

O cancelamento de Juliana Paes pela esquerda, destarte, demonstrou que o favoritismo Lulista depende muito de sua articulação com Bolsonaro. Passa por abafar — na base da destruição de reputação — toda e qualquer possibilidade alternativa que surja no horizonte. Juliana não terá paz até que capitule em prol do candidato dos seus colegas de emissora. Ou abaixa a cabeça, ou cortam-lhe a moringa. A guilhotina do bem já está armada pra gente como ela.

O que nem Lula nem Bolsonaro esperam é outro surto de esperança raiando por aqui. Ainda é cedo para falar que ocorrerá, mas os primeiros sintomas começam a aparecer. Na manhã da última segunda-feira foi o “craque Neto”, ex-jogador e comentarista esportivo; amanhã poderá ser alguém novo, como que impelido pela sensação de liberdade em exprimir uma angústia que precisa ser articulada. 

Fica aqui o desafio: caso a fagulha se torne chama, que não desperdicemos a oportunidade histórica com outro embusteiro como Jair Bolsonaro. A oportunidade está dada. Para um povo acostumado a errar, o prognóstico não é dos melhores. Mas deixa estar. O desengano é por vezes pior que a ilusão. É dele que os vendedores de sonho se valem após consumir a esperança de quem neles acreditou.

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