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A qualidade do trabalho de um artista não depende de suas escolhas políticas. Quem usar esse critério correrá o risco de viver sem arte. É uma vida ruim. Um artista deve ser julgado principalmente por sua arte. Na maioria dos casos, ela é a única informação sobre o artista que chega ao nosso conhecimento. A óbvia exceção a essa regra é quando o artista coloca sua arte a serviço do mal, apoiando, justificando e defendendo causas nocivas e glamourizando comportamentos socialmente destrutivos.
Uma pessoa que tem o dom de compor ou cantar, ou que é um bom ator, não tem, necessariamente, um entendimento melhor do mundo do que as pessoas que não têm essas habilidades. A capacidade de produzir coreografias, projetar prédios, esculpir ou pintar não precisa vir acompanhada de erudição, de conhecimento de história, política e filosofia, e muito menos de uma formação moral completa. É claro que, às vezes, é inevitável que as escolhas existenciais do artista se manifestem em seu trabalho.
Já encontrei grandes insights e boas ideias em livros de autores cujo histórico político e pessoal era ruim. Algumas das minhas músicas favoritas foram compostas, ou são cantadas, por artistas com posicionamento político oposto ao meu. As músicas continuam sendo ótimas
Um dos mais celebrados arquitetos do Brasil se declarava, até o fim da sua vida, stalinista. Para quem não está associando a palavra ao criminoso, Stálin foi um dos maiores assassinos da história, responsável pela morte cruel e deliberada de dezenas de milhões de pessoas. Muito antes de conhecer suas preferências políticas eu já estranhava a obra do arquiteto: uma coleção de vastas extensões de concreto áridas e inóspitas, sempre construídas em uma escala monumental que reduzia o ser humano à insignificância. Mais tarde, refletindo sobre isso, me dei conta de que se tratava de uma arquitetura verdadeiramente stalinista. A obra representou fielmente as convicções do projetista.
Se passarmos a exigir de nossos artistas que sejam exemplos de compreensão do mundo, de comportamento moral e de correção política corremos o sério risco de ficar sem arte. Em minha opinião (e sei que estou abrindo um debate inesgotável), as duas artes mais necessárias são a música e a literatura. As duas estão recheadas de exemplos de grandes artistas cuja vida pessoal e escolhas políticas foram inteiramente reprováveis.
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O mundo no qual habitam os artistas – principalmente aqueles mais celebrados e famosos – é caracterizado pela existência de um rígido sistema de pressão social, a chamada peer pressure, que força esses artistas a se submeterem a um padrão de comportamento sem o qual suas chances de sucesso, ou mesmo de simplesmente conseguir trabalhar, são quase zero. Esse padrão de comportamento é, há muito tempo, totalmente dominado pelo pensamento “progressista”. É evidente que isso precisa ser levado em consideração.
Não estou justificando ou aceitando o posicionamento de artistas que servem de marionetes ideológicas para um radicalismo que mal compreendem. Estou apenas explicando o fenômeno. Minha reprovação pelo equívoco das escolhas permanece. Mas isso é diferente de compartilhar a atitude de algumas pessoas que precisam verificar o posicionamento político do compositor antes de decidir se gostam ou não da música. Isso é ineficaz do ponto de vista político e uma insensatez existencial. É também uma tarefa impossível. Você deve decidir se gosta ou não de uma obra de arte aplicando critérios estéticos e morais à obra e não ao artista.
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Algumas pessoas, traumatizadas pelos eventos políticos recentes, provavelmente discordarão de mim. É compreensível. Eu mesmo só cheguei à posição atual depois de muita reflexão. Não quero que minha vida seja privada da beleza e da contemplação que, muitas vezes, só pode ser alcançada através de boa arte. Fui também movido por motivos práticos: não tenho condições de aplicar um filtro político ao criador de toda a arte que encontro. Em particular, quando se trata de música e literatura, é impossível condicionar meu julgamento de romances, contos e canções a uma rigorosa investigação sobre a vida política e ideológica de autores e compositores.
Um livro precisa ser analisado e criticado com base em seu conteúdo, nas ideias e escolhas morais que expressa e defende, explícita ou implicitamente. Isso, às vezes, é tarefa complexa. É mais fácil atacar o autor. Então deixe que eu diga: já encontrei grandes insights e boas ideias em livros de autores cujo histórico político e pessoal era ruim. Algumas das minhas músicas favoritas foram compostas, ou são cantadas, por artistas com posicionamento político oposto ao meu. As músicas continuam sendo ótimas.
E se a música é boa, eu esqueço a política e aperto o play.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos