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Quando o traço vira estopim
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Não é de hoje, como se sabe. Algumas charges e caricaturas têm a incrível capacidade de provocar clima de guerra. O episódio mais recente envolve Maomé. E o conflito, fatalmente, nos remeteu ao Brasil de 1962 e a uma charge (ou, “aquela” charge) de Octávio, que retratou Pelé e mexeu com a padroeira do Brasil.
Natureza Morta comentou o assunto com o professor Afronsius, que fez uma observação procedente (ah, os tempos de internet): pipocaram muitas informações incorretas e injustas a respeito do polêmico desenho publicado pelo jornal Última Hora.
Diante de tais desencontros, nada melhor do que consultar a melhor fonte: o dono do jornal, Samuel Wainer.

De volta à UH

Houve quem atribuísse, hoje, a autoria da charge da UH a Arapuã, o Arapa. Arapuã era o titular da coluna “Ora, bolas”. E quem afirmasse que o desenho mesclando a imagem de Pelé e de Nossa Senhora referia-se à Copa de 1962, no Chile. “Sem contar com Pelé, contundido, a conquista do bicampeonato tinha virado um sonho quase impossível”. Só com reza braba.
Mas quem, de fato, conta o episódio (“com riqueza de detalhes”, como diz Natureza Morta) é o jornalista Samuel Wainer, que dedica quatro páginas de sua autobiografia à crise que se abateu sobre o jornal.
– Em primeiro lugar, o chargista assinava Octávio, e não Otávio, sem o C. Como apareceu agora.
– Em segundo lugar, não era Copa do Mundo nem se tratava de véspera do clássico Corinthians x Santos, mas sim de Corinthians x Palmeiras (página 309).
Conforme “Minha Razão de Viver – Memórias de um repórter”, 2005, Editora Planeta do Brasil, no governo João Goulart “o Brasil vivia um período de radicalização” e a UH, pró-Jango, estava na mira dos adversários – permanentemente -, “atentos a eventuais cochilos que pudessem explorar”.

Na linha de fogo (real)

Um desses cochilos ocorreu naquele ano de 1962, “quando Jango ainda esquentava a cadeira penosamente conquista”. Pelo telefone, Wainer é informado por Jorge Miranda Jordão, “um de meus auxiliares diretos na redação carioca”, que uma caminhonete da empresa fora incendiada no vale do Paraíba. Motivo: “Uma charge publicada naquele dia pela Última Hora paulista havia sido considerada uma agressão a Nossa Senhora Aparecida. Empalideci, prevendo a tormenta que se aproximava. Minhas relações com a Igreja eram frias, distantes. Estava claro que haveria uma reação violenta”.
E ela de fato ocorreu.
Para Wainer, que mandou buscar um exemplar da edição, a charge de Octávio “era de extremo mau gosto”. Recorda que, na época, às vésperas de grandes clássicos, “os times de futebol de São Paulo costumavam ir a Aparecida do Norte pedir a proteção da santa”.
Um ou dois dias antes do jogo entre o Corinthians e o Palmeiras, Octávio fez a charge, assim descrita por Wainer: “Mostrava uma Nossa Senhora com as feições do Pelé, um beiço enorme e braços musculosos, abençoando ambas as equipes ao mesmo tempo e com pontos de interrogação sobre a cabeça”. Tão logo viram o desenho, dois padres que dirigiam a rádio de Aparecida do Norte anunciaram que “o meu jornal cometera um sacrilégio” e pediram que “a população católica tomasse providências”.

Oferecendo a outra face

Samuel Wainer conta que escreveu “um editorial patético, reconhecendo o erro e oferecendo a outra face a Cristo. Inútil. Meus inimigos (entre eles Ademar de Barros, Carlos Lacerda e Amaral Neto) já estavam em campo”.
O dono da UH chegou a ter uma audiência com dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta, cardeal-arcebispo de Aparecida. “Levei o Octávio a tiracolo, tendo o cuidado de proibi-lo de fumar diante do cardeal. Era preciso muita cautela”.
Diz ainda que conseguiu salvar o jornal do empastelamento, mas, fatalmente, isso ocorreria um dia. E parece que já tinha data marcada. Março de 1964.
No fim do bate-papo junto à cerca (viva) da mansão da Vila Piroquinha, Natureza e o professor Afronsius concordaram que, realmente, viver (ou fazer jornalismo) é perigoso. Exige respeito à opinião do próximo. Tanto que, mesmo de posse de um amarelado recorte com a tal charge, jamais a reproduziriam. “Não se deve dar curso a determinadas coisas”. Até o nosso anti-herói de plantão concordou. E surpreendeu:
– Bom senso. O direito de torcer pelo Flamengo vai até onde começa o direito de torcer pelo Vasco… Afinal, é sempre uma faca de dois legumes.

ENQUANTO ISSO…


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