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A multiplicação de pessoas dispostas a amar
| Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney

Para tecer algum comentário em resposta à menção do meu nome na já bastante divulgada matéria, não creio que haveria qualquer vantagem em investir contra a revista que a veiculou, nem mesmo em elencar as pavorosas qualidades literárias do texto ou em destrinchar a total inépcia da autora para tratar do tema, que, aliada à sua pérfida intenção de provocar e satirizar, transformou-se numa petulância ridícula, num papelão maior que uma família de 30 filhos. E lamento que tanta gente tenha se abalado e se chateado com a publicação, como se tivesse sofrido a mordida de uma víbora, quando, analisando-a com cuidado, não chega a ser sequer a mordida de uma pulga. A caricatura e o deboche desesperado representam apenas o sentimento de quem, infelizmente, não é capaz de compreender o amor, porque busca-o no lugar errado, porque busca o amor na poça lamacenta de Narciso. Entretanto, não tenho muito mais a dizer aos que sentiram isso – raiva e nojo, ou, na melhor das hipóteses, piedade. E acho que eu nada poderia dizer, também, aos que se deleitaram com o texto, aos que ainda acreditam na velha mídia pedante que vive de blefe, aos que acharam geniais os seus giros linguísticos ginasiais, e aos que saborearam como sagacidade o que é pobreza, a miséria simplista de quem crê que o problema da vida seja a vida. E lamento, na verdade, ter de replicar, ainda outra vez, com este comentário, a palavra daquela matéria.

Mas é que pode ser-nos útil, num sentido: quero fazer dela ocasião para me dirigir aos confusos, aos desavisados; aos que pressentem a malícia da matéria, mas não têm clareza sobre exatamente onde está o truque; aos que ficam em dúvida se, mesmo tendo sido um pouco vil, não teria a senhora jornalista alguma razão, afinal, não seria melhor, no mundo de hoje, ter apenas um filho, ou dois? Essas pessoas não acabam fazendo uma loucura, fazendo mal a si mesmas, não considerando o custo, o cansaço, a dificuldade, e isto porque estão dominadas ou cegadas por “convicções religiosas inabaláveis”? Qual seria o problema de se usar métodos contraceptivos, de se poupar e viver melhor? Acaso Deus não quer que vivamos bem, que tenhamos prazer nesta vida e sejamos felizes? Que contradição haveria em rezar, ser religioso, e fazer planejamento familiar? – É aos que sinceramente se questionam desse modo que me dirijo; aos que não conseguem se furtar de meditar assim em seus corações, mas que guardam ainda alguma sincera disposição para ouvir, um genuíno desejo de compreender algo que lhes parece estranho, em vez de fazer como uns jornalistas, que entrevistam as pessoas apenas para colher “evidências” para suas ardilosas e frágeis insinuações.

Em primeiro lugar, é preciso distinguir uma coisa: que esta questão, a da abertura à concepção, não é uma questão de fé, puramente, mas sim uma consequência da fé. Trata-se de uma atitude ou de uma disposição para com a nossa natureza humana, a mesma natureza de todos nós, com ou sem fé, mas que leva em consideração as realidades da fé. As questões de fé têm a ver com a dádiva de realmente crer e, assim, enxergar de algum modo a verdade dos acontecimentos narrados na revelação, aquelas ações do Criador na história de sua própria Criação (para resumir, são aqueles 12 pontos do Credo). Recebemos o dom da fé quando, olhando para essas realidades e ouvindo esses fatos, vemos que são verdadeiros, e experimentamos interiormente um antegosto de sua plena manifestação. Mas nós não precisamos nos encaminhar para águas mais profundas nesse sentido, o que ficaria melhor em outras ocasiões. Basta dizer aqui, muito sinteticamente, que o cristão se reconhece amado por Deus, como a um filho, e esse reconhecimento desperta nele o desejo de retribuir a esse amor.

A rigor, a quantidade de filhos não importa: o que importa de fato é a quantidade de amor, de entrega, da qual o número de filhos pode, ou não, ser um símbolo

Mas corresponder ao amor infinito de Deus é, certamente, impossível a nós, pobres, restando-nos apenas nos entregar inteiramente, doar tudo aquilo que tivermos, todo o nosso ser – a exemplo do próprio Mestre –, o que será, enfim, para o nosso próprio bem, e a causa de nossa felicidade. É fácil entregar-se inteiramente? É evidente que não. Não à toa os heróis da fé são reverenciados nos altares. Há, na nossa natureza humana, algo mal ajustado, um desarranjo estrutural que oferece resistência, e faz, muitas vezes, com que façamos o mal que não queremos e deixemos de fazer o bem que queremos. É justamente para auxiliar nesse exercício progressivo de entrega, dessa nossa resposta a Deus, a qual nos fará de algum modo semelhantes a Ele, que existe toda a prática cristã, e a Igreja, e os sacramentos que ela herdou do Cristo e dos apóstolos. E há, para além daquilo que é comum a todos os cristãos, opções de vida que são, cada uma, caminhos privilegiados sob certo aspecto – e o matrimônio é uma delas.

O matrimônio católico é um dos sete sacramentos da Igreja. Trata-se da elevação de uma realidade natural (o casamento, a união entre um homem e uma mulher, que existe antes e fora do âmbito da religião) a um nível superior, ao de sinal visível de uma realidade invisível aos olhos, que é a ação que Deus quer e vai então operar em nós para que passemos a ser capazes de amar. O que se faz num matrimônio é doar-se ao outro, e esforçar-se, mesmo que em aparente prejuízo próprio, por apoiá-lo em seu caminho no amor. Ora, essa doação e esse desejo de fazer o ser amado feliz tem seu símbolo régio, seu grande cerimonial, na união que se dá no encontro sexual. E esta união, sendo um símbolo verdadeiro do amor, não pode ser, diferente dele, fechada, falseada, comedida, sovina. Ela é aberta, é confiante, fecunda e abundante. Essa doação mútua – oh, que grande milagre, sobre o qual não paramos para pensar o suficiente! Que milagre, perto do qual uma expressão como “prevenção da gravidez” parece um chiste diabólico –, esse encontro entre duas pessoas que se comprometeram a viver a vida juntas abre a possibilidade de que o mesmo Criador de todos os seres humanos se ponha a criar mais um, mais alguém, alguém como nós, mais um ser humano, em toda a sua maravilha e profundidade. Um ser humano, cujo mundo interior é maior do que o universo inteiro, um ser capaz de falar, de criar, de amar.

Quem, olhando com os olhos bem abertos para a realidade de uma única vida humana, seria capaz de maldizer alguém por ser... “pró-vida”? Acaso quem não é “pró-vida” é pró-morte? Ou – “calma lá, sem radicalismos” – apenas contra-vida? É a favor de quê, então? Do egoísmo; é a favor da esterilidade, da inevitável infecundidade que é olhar e amar apenas a si mesmo, como são – permitam-me a indiscrição de dizer – muitas relações “sexuais”, entre as devidas aspas, porque não passam de fricções a dois sem maiores consequências.

Mas mesmo que isso não aconteça, e que não seja concebido um bebê, nesse gesto os corações se abriram para a vida, e conceberam o amor divino dentro da realidade humana. É por isso que, a rigor, a quantidade de filhos não importa: o que importa de fato é a quantidade de amor, de entrega, da qual o número de filhos pode, ou não, ser um símbolo. A quantidade de filhos apenas aumenta as chances, digamos, numéricas do amor. Mas o gesto de amar e doar-se será sempre uma opção profunda do coração.

Uma família numerosa não é, ou não deve ser, um manifesto, uma bandeira em si mesma. Coelhos também têm muitos filhotes, é verdade, e isso não faz deles, ainda, uma família. Cada um dos nossos filhos é um convite renovado a multiplicarmos o nosso amor, dando-lhes a alegria de viver numa família afetuosa que o cerca. A tal “convicção religiosa” não é como uma ideologia, que se pensa com a cabeça e se quer ver promovida e comprovada. Porque, vejam bem: é possível sustentar uma ideologia dessas até quantos filhos? Quem sofreria tanto, quem se negaria tanto, quem arranjaria para si tanto trabalho e tanta responsabilidade, só por conta de uma ideia? Os que realmente sabem o quanto exigem de nós o cuidado e a criação dos filhos – e a intenção do meu trabalho não é senão auxiliar aqueles a quem possa ser útil o que eu já estudei e vivi – podem responder facilmente: não se vai muito longe apenas com uma ideia; ou decidimos fazer do amor a nossa vida, ou não fará nenhum sentido, e pereceremos.

Descontado o ardil, o termo “convicções religiosas” poderia tentar explicar um fenômeno alheio e incompreensível para quem não tem fé; mas, na vida real, no lar concreto onde vivem as crianças, no lar de quem se abriu para a possibilidade de amparar e educar muitas delas, não somente para que sejam pessoas humanamente virtuosas, mas para que a virtude lhes sirva de apoio para conquistarem a vida e a felicidade eternas prometidas à sua alma imortal, ah, ali o amor vivido, em ato, é muito mais; é suor, é sangue, é um sorriso banhado de lágrimas. Não, nos momentos em que o sofrimento é muito não há convicções inabaláveis, pois a convicção se dissolve na treva da dúvida, da dor e do medo; o que prevalece é o amor, que sustenta e ilumina, e logo, muito logo, tudo volta a valer a pena. Simplesmente porque esta vida passa, não é o fim.

As pessoas religiosas, com disposição para ter uma família numerosa, também julgam que o mundo não está lá essas coisas. Mesmo assim, não se recusam a trazer seus filhos para este mundo tenebroso, fazem o oposto

Então, se antes dos anos 60 a gravidez não podia ser facilmente evitada e isso criava um outro cenário para a vida de muita gente, que acabava tendo filhos e não os amando, não pretendo discutir levianamente. Mas falo do presente, e afirmo que, se há tanta gente escolhendo isso, tendo clareza de todas as possibilidades e consciência das consequências – sobretudo assumindo as consequências –, é porque tem lá seus motivos. E é compreensível até certo ponto que se estranhe aquilo que não se entende, e posso afirmar que, se não conhecesse a Verdade, eu não pensaria muito diferente do que pensa a autora da matéria, e tantos outros como ela. Mas, para conhecer e compreender um outro, diferente de nós, é preciso abrir-se honestamente.

Haveria o que dizer ainda àqueles que, embora compreendendo o que motiva esses casais católicos, mas não tendo a mesma fé, podem ainda trazer em seu coração o pensamento de que “talvez ainda assim isso não seja o melhor para as crianças... Trazer crianças a um mundo como este, para que sofram?!” A isso respondo parafraseando de perto o que disse Peter Kreeft sobre o mesmo tema. Ora, a primeira coisa que os pais dão aos seus filhos é aquilo que também eles receberam em primeiro lugar: a existência. Este valor é primário, absoluto, e é sempre melhor existir do que jamais vir à existência, por pior que seja a vida da pessoa. E qualquer dom subsequente – o sustento, o carinho, a educação – só pode ser oferecido a quem existe, e não a alguém cuja existência tenha sido negada (ou então ceifada tão logo seja concedida, num assassinato intrauterino).

Muita gente dá esta disparatada explicação para justificar não ter filhos, ou então pregar que ninguém deveria tê-los: “Não quero trazer uma criança para um mundo como este. Seria um ato irresponsável”. “O que querem dizer com isso?”, diz Kreeft. “Só há dois cenários possíveis: que o mundo é ruim para as crianças sob uma perspectiva material, ou sob uma espiritual.” Bem, a preocupação daqueles que dizem uma coisa dessas quase nunca é espiritual, mas sim material. Se respondermos perguntando o que exatamente há de errado com o mundo, responderão que não há suficiente paz, prosperidade, segurança, conforto, atendimento médico, igualdade, sustentabilidade ambiental, em suma, que o homem ainda não controla as coisas o suficiente, e que a Terra ainda não é um paraíso.

Aos que têm esse pensamento, que pode ser mais ou menos ingênuo, mais ou menos hipócrita, é preciso abrir a janela, apontar para fora e mostrar o seguinte: de todas as civilizações da história, a nossa é, segundo estes mesmos padrões materiais, o melhor lugar para se criar uma criança. Nenhuma civilização teve tanto dinheiro, tantos bens e recursos à disposição de uma parcela tão grande da população, da qual o mais pobre de todos vive com mais confortos do que o mais rico dos séculos passados. Nenhuma civilização antes teve tanta tecnologia, instrumentos, auxílios, facilitadores materiais em todos os sentidos. Saúde, terapias, expectativa de vida, e tudo o mais que nos oferece a tecnologia médica, extraordinariamente melhor do que nunca. Então, por mais que a economia vá mal, e que a gente tenha de ralar, e mesmo que passe sérios perrengues, as chances de isso acontecer são muito menores do que nos tempos passados. As nossas carências de hoje são, para os nossos próprios pais, luxos e excessos. Será que é tão problemático assim trazer seus filhos para esse mundo?

E as pessoas religiosas, com disposição para ter uma família numerosa? Qual é a opinião delas sobre o mundo? Elas também julgam que o mundo não está lá essas coisas, mas pelo motivo oposto: há materialismo demais, não há espírito, não há transcendência suficiente. Esse mundo reserva provações, dificuldades, e até mesmo perseguições, intolerância. Mesmo assim, não se recusam a trazer seus filhos para este mundo tenebroso, fazem o oposto: “têm-nos, sacrificam a si mesmas, deixam-se deitar, literalmente no ato sexual, não apenas pelo prazer (obviamente, o prazer é um dom, e universal), mas também pelas crianças, pelos outros. Elas não reclamam de haver ‘outros’ demais, antes, acreditam que há ‘outros’ de menos, e então geram mais deles”.

É assim que pretendem fazer um mundo melhor: gerando e educando gente melhor, que vai agir e transformar o mundo ao seu redor e, se tudo correr bem, gerar e educar mais gente boa, e esta será uma verdadeira multiplicação, de bebês, sim, num primeiro momento, mas logo de homens e mulheres, humildes e fortes, não de uma “ala conservadora da Igreja Católica”, mas de uma ala da humanidade disposta a amar, de uma ala que viverá apaixonadamente, de gente que viverá para além de si mesma, e, assim como na multiplicação milagrosa dos pães, desta também sobejarão cestos e cestos somente com os restos. E, multiplicando-se assim, quem irá perdurar, afinal? Quem pode dizer “o futuro pertence a nós”?

Talvez seja isso que os faça tremer.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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