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Samia Marsili

Samia Marsili

Rotina

Carga pesada: como dar conta de tudo o que a vida exige sem se perder

(Foto: Ann Danilina/Unsplash)

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Como dar conta de tudo?! Meu Deus, essa pergunta sincera e desesperada ressoa de inúmeras casas, hoje em dia. O mundo de hoje exige muito de nós, é verdade, e não é somente a quantidade de coisas, mas a velocidade, a complexidade, a qualidade de atenção que cada detalhe pede da nossa alma cansada. A sensação é a de equilibrar pratos no ar, sempre prestes a cair, como se a vida fosse uma exibição circense em que o menor deslize significasse um desastre. A pergunta é, na verdade, um grito de socorro na boca de muitas mães que, diante da multiplicidade de tarefas e expectativas, sentem-se sobrecarregadas: esposa, mãe, filha, irmã, dona de casa, profissional, amiga — e, quando possível, cuidadora de si mesma. Quem pode com essa carga pesada? A ilusão que muitas alimentam é a de que existe um segredo, um método infalível para realizar todas as tarefas com perfeição. Ou é necessário ser de fato uma super-heroína, alguém capaz de equilibrar múltiplos afazeres sem jamais falhar. Mas será que esses ideais são realistas? O que significa realmente dar conta de tudo?

É comum observarmos, admirados, aquelas pessoas que parecem ser capazes de se dedicar a todas as áreas de suas vidas com perfeição. Elas parecem se mover com facilidade entre o trabalho, a família, a vida social e a espiritualidade, e surge a impressão de que a capacidade de realizar tantas tarefas de forma impecável é algo quase extraordinário. No entanto, a verdade é que a habilidade de “dar conta de tudo” não está vinculada a uma força descomunal de origem incerta, mas a uma profunda compreensão de si mesma e da vida. As pessoas que conseguem equilibrar suas responsabilidades de maneira eficaz são aquelas que não dependem exclusivamente de suas forças. Elas reconhecem que, para realizar tantas tarefas com dedicação e qualidade, é necessário mais do que apenas esforço pessoal: é preciso contar com a graça divina.

Além do mais, essas pessoas não encaram a vida como compartimentos separados, mas como um todo integrado. Elas sabem que ser mãe, esposa, amiga e profissional não são aspectos isolados, mas partes de uma única jornada. A virtude da ordem, nesse sentido, é essencial. “Ordem” não se refere apenas à organização externa, mas à harmonização interna, o que faz com que os diferentes papéis se entrelacem e, juntos, concorram e contribuam para um propósito maior: a entrega constante aos outros. Aqueles que conseguem fazer isso, portanto, não apenas “dão conta de tudo”, não apenas aguentam a carga pesada: eles o fazem de maneira a se tornarem mais autênticos e plenos, sem perder a unidade. Este processo de integração de diferentes aspectos da vida não se dá de maneira fácil, nem de longo é algo imediato, que basta ter compreendido, após ler estas minhas linhas, para pôr em prática amanhã com perfeição. É uma construção constante, uma ininterrupta harmonização, ativa e renovada.

Muitas vezes, a tentação de se isolar num ou noutro papel pode ser forte. O medo de perder a individualidade pode levar à busca incessante por espaço pessoal em meio ao caos das demandas cotidianas. No entanto, a verdadeira entrega — seja à família, ao trabalho ou à fé — não resulta em perda, mas em crescimento. Ao se dedicar por amor, a pessoa se torna mais ela mesma, mais verdadeira em cada área de sua vida. A entrega, quando realizada de maneira ordenada e com intencionalidade, não destrói a individualidade, mas a fortalece.

Para que isso aconteça, no entanto, é necessário um esforço contínuo de reflexão e organização, tanto externa quanto interna. A pessoa precisa identificar o que é mais importante, entender suas prioridades e ajustar sua vida de acordo com um plano de crescimento pessoal e espiritual. A tarefa de “dar conta de tudo” não é, pois, uma questão de fazer mais e mais coisas, mas de fazer as coisas certas com propósito e unidade, preferindo as primeiras, e negligenciando as últimas, se for o caso.

No âmbito familiar, essa dinâmica é ainda mais evidente. A educação dos filhos, por exemplo, não é uma tarefa individual, mas um projeto compartilhado entre marido e mulher. A harmonia familiar, crucial para o bem-estar de todos, depende da compreensão mútua e do apoio recíproco entre os cônjuges. O sucesso desse projeto depende da capacidade de cada um se conhecer e se entender, respeitando as decisões do outro e trabalhando juntos em prol do bem comum da família, que quer ir junta para o Céu. O equilíbrio, então, surge não da busca incessante por realizar todas as tarefas de maneira isolada, mas da integração desses afazeres dentro de um projeto de vida comum, fundamentado no amor e na entrega. E é essa entrega, longe de ser um sacrifício que resulta em perda, que permite à pessoa se tornar mais completa, mais realizada e capaz de “dar conta de tudo”. Pois, ao fim e ao cabo, dar conta de tudo é, na verdade, ser capaz de viver com unidade e propósito, entregando-se sem medo de perder, mas na certeza de que essa entrega a torna, de fato, mais inteira.

Jesus disse, de fato, “o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11, 28–30). Mas como seria leve carregar marido, filhos, tarefas, trabalho, que se acumularam sobre nós por termos aceito esse desafio, de ter um matrimônio e uma família? Ora, é porque devemos “buscar primeiro o reino de Deus e a sua justiça”, que o resto nos será dado por acréscimo, sem nos preocuparmos, pois “nosso Pai sabe que precisamos dessas coisas”. A unidade de vida, direcionada a seu objetivo último, faz ordenarem-se todos os nossos objetivos segundo os critérios da prioridade, e atrai sobre nós a graça divina, que nos vai amparar nessa busca: nós dependemos dela.

É uma loucura tentar fugir dessa dependência, e ainda mais louco é tentar tocar a vida sozinho, isolando cada um dos papéis que desempenhamos: a vida materna de um lado, a vida paterna do outro, a vida profissional, a vida como esposa, a vida como marido. Não somos uma única coisa, é verdade; somos muitas ao longo da existência. Mas, para não nos estilhaçarmos e perdermos tudo,  é essencial termos uma visão clara de um plano superior, um plano que alça nossa vida para o alto, e que dividimos com nossa família. Isso vale para nosso desenvolvimento como casal, nas responsabilidades de pais, em nosso crescimento enquanto indivíduos e também enquanto amigos.

Somos um feixe de relações, somos todos partes de um projeto conjunto, que não pode ser tocado adiante sem união, sem organização, sem estratégia. Não podemos apenas viver nossas vidas separadamente, cada um movendo-se por impulso. É preciso um sério diálogo, um diálogo radical e vital sobre nossa vida familiar, para que juntos possamos organizar os passos que queremos dar, levando em conta o momento em que estamos — as idades dos filhos, a situação financeira, o contexto familiar, o lugar onde vivemos, entre outros fatores.

A vida familiar é dinâmica e exige reflexão constante, pois depende das escolhas que fazemos no presente, e essas escolhas não podem ser baseadas apenas no que imaginamos ou desejamos para o futuro. Sonhar com o que será possível no futuro é importante, mas é igualmente essencial agir no presente. Quando desejamos ter uma vida profissional bem-sucedida, ser boas mães e esposas, cultivar uma fé verdadeira, não podemos nos perder apenas nos desejos. O que importa é o que fazemos agora. Cada decisão precisa ser concreta. Então, se no futuro queremos alcançar algo, precisamos começar a construir isso desde já, com ações reais no presente.

Se, por exemplo, decidimos que, enquanto nossos filhos são pequenos, ficaremos em casa para cuidar deles, devemos pensar em como fazer isso não como uma limitação, mas como uma fase necessária para um plano maior. Podemos estudar, pesquisar, fazer cursos ou aprofundar áreas de interesse para quando o momento chegar. Hoje, posso usar o tempo de maneira mais estratégica, organizando-o melhor, colocando meus filhos para dormir mais cedo, aproveitando essa brecha para estudar ou desenvolver alguma habilidade que me ajudará mais tarde.

A ideia é que cada ação no presente tem um impacto no futuro, e o plano familiar precisa ser executado de maneira colaborativa, pois envolve todos: marido, esposa e filhos. Assim, é preciso um esforço conjunto para definir a maneira como vamos administrar nossa vida e nossos compromissos. Às vezes, será necessário trabalhar mais ou menos, mudar de casa ou de rotina, mas isso não pode gerar angústia. O que é essencial é que, no dia a dia, evitemos nos perder em pensamentos ansiosos sobre o futuro.

A ansiedade, muitas vezes, nasce dessa tendência de viver pensando no amanhã. Como será quando meus filhos crescerem? E se não tivermos dinheiro? E se algo acontecer com meu casamento? Essa fixação excessiva com o futuro pode bloquear nossa capacidade de agir no presente. A vida é uma cruz, simplesmente: o segredo está em agir no agora, organizando as ações necessárias para o que precisamos realizar no dia a dia, tendo em vista e com o coração voltado para o plano superior que transcende o tempo. Com isso, conseguimos criar uma estrutura de tranquilidade. Não podemos nos deixar paralisar pela incerteza do que virá. Se ficarmos apenas pensando nos problemas do mês que vem, sem realizar as tarefas imediatas, perderemos o foco. O importante é focar no que pode ser feito agora, ajustando os horários e estabelecendo uma agenda que nos permita avançar aos poucos.

Em outras palavras: a ordem, em nossa vida, não tem a ver apenas com a organização material, com uma casa bem arrumada. Isto é válido e necessário, sem dúvida; é apoio para a perpetuação da ordem, sim, mas é também o resultado de uma ordem mais profunda. A ordem, em nossa vida, tem uma dimensão profunda e transcendente. Quando dobramos uma roupa, organizamos um livro, arrumamos os móveis, não estamos apenas executando uma tarefa simples. Estamos treinando nossa paciência, nossa dedicação e disciplina. Estamos praticando virtudes como a prudência, a temperança e a justiça, sem as quais seria impossível manter a harmonia em qualquer ambiente. Em casa, esse cuidado com as pequenas coisas — cuidar da limpeza, dos objetos, organizar o espaço — se reflete na construção de um ambiente propício à educação e ao afeto. A ordem material reflete e reforça a nossa ordem interior.

Esta organização não é apenas uma tarefa prática, mas uma preparação interna, que nos ensina a lutar contra a preguiça e o desejo de fazer grandes coisas, sem dar atenção ao necessário. As grandes conquistas surgem da consistência nas pequenas ações. Assim, organizar a casa não é uma tarefa apenas funcional, mas um reflexo de nosso compromisso com a responsabilidade e a atenção ao que realmente importa.

A nossa carga pesada será, no fim das contas, um jugo leve e suave

A hierarquia das ações na nossa vida segue um padrão. Se colocarmos o que é mais importante primeiro, tudo o que vem depois se encaixa. Nunca envelhece aquela excelente metáfora das pedras: se colocarmos as pedras grandes primeiro, depois as médias e as pequenas, tudo encontra o seu lugar. Sobra espaço, no final, para ainda deitarmos areia sobre o conjunto, que ocupará os mínimos espaços remanescentes sem prejudicar o equilíbrio de nada. Mas se começarmos com as coisas menores, não haverá espaço para o que realmente importa. As pedras grandes, para nós, são o nosso relacionamento com Deus, nossa espiritualidade, a base da nossa vida. E esse relacionamento deve ser o primeiro de todos, pois é nele que encontramos nossa verdadeira fonte de amor e nossa razão de ser.

Para quem é católico, como eu, isso significa reservar um tempo para a oração pessoal, para a missa, para a leitura espiritual, para o exame de consciência. A religião não é algo imposto de fora, mas sim a ajuda que recebemos para cumprir o propósito para o qual fomos criados. Deus, como fonte de amor, é a pedra imensa que deve vir antes de tudo. Em seguida, vêm os compromissos familiares, como ser boa esposa e mãe, que surgem a partir dessa base de amor divino. E então, os deveres profissionais e sociais ocupam seu lugar dentro dessa estrutura. Quando vivemos de acordo com essa ordem, com o amor de Deus no início e no centro, podemos administrar nossa vida com mais tranquilidade e equilíbrio. Essa organização não apenas nos traz paz, mas também nos fortalece para agir de maneira mais livre e mais sábia, conforme nossa verdadeira vocação.

A verdadeira virtude não está apenas no planejamento meticuloso e na busca incessante por organização, mas na capacidade de se entregar plenamente às exigências do momento. A vida cotidiana, com sua multiplicidade de tarefas e responsabilidades, exige um tipo de disciplina que vai além da simples execução mecânica de ações. Trata-se de cultivar a atenção e o discernimento sobre o que realmente importa, priorizando o amor e a entrega aos outros em cada gesto, por menor que seja.

Quando a ordem das coisas é subvertida por imprevistos — como a criança que não dorme no horário esperado, ou um imprevisto que altera os planos e o fluxo do dia —, a virtude está em saber lidar com a frustração sem perder a serenidade. Em vez de ceder ao egoísmo da irritação ou do desconforto, somos chamados a lembrar que cada momento, por mais desafiador, possui seu valor espiritual e transformador. Cada pequeno sacrifício, cada vez que interrompemos nossos próprios planos em benefício do outro, torna-se uma oportunidade de transcender o próprio ego e amar. A paciência, a capacidade de esperar e aceitar as coisas como elas são, é uma das grandes lições que surgem quando enfrentamos essas inevitáveis mudanças de plano. Não se trata de um esforço passivo ou resignado, mas de uma entrega consciente ao momento presente. A virtude, então, se manifesta na habilidade de manter a paz interior, mesmo quando o mundo ao redor parece fora de ordem.

Ademais, o zelo por nossas responsabilidades não deve ser confundido com a obsessão por controle. O desafio está em aprender a equilibrar os cuidados com o dever e a capacidade de agir com flexibilidade. Às vezes, a ordem que buscamos precisa ser adaptada à realidade do momento, sem que isso comprometa nossa essência ou o propósito de nossa ação. Neste ponto, a reflexão sobre o descanso também se torna essencial. O descanso não é simplesmente uma pausa do trabalho físico, mas um momento de renovação interior, onde somos chamados a reequilibrar as energias não apenas do corpo, mas da alma. Esse descanso virtuoso, longe de ser um estado de inatividade sem propósito, é uma oportunidade de redirecionar a atenção para o essencial: para o cuidado consigo mesmo, para a reflexão, e para o aprofundamento da espiritualidade.

Em suma, a vida cotidiana, com seus altos e baixos, seus pequenos ajustes e grandes demandas, nos oferece o campo perfeito para cultivar a virtude da ordem. Isso não significa uma vida sem mudanças, mas uma vida bem vivida, onde cada instante é vivido com propósito e amor. A verdadeira disciplina está em colocar o coração no que fazemos, de modo que, ao final do dia, possamos olhar para trás com a certeza de que cumprimos nossa missão, com serenidade e gratidão, independente do que tenha sido planejado. Assim seguimos cultivando a virtude da ordem, não como uma meta rígida a ser alcançada, um desafio sobre-humano que pede de nós mais do que somos capazes de dar, mas como um caminho de entrega contínua ao que realmente importa: o amor ao próximo, que se converte em amor a Deus.

Como dar conta de tudo? Não é simples, não é fácil; não é automático, e não, não é gostoso dar conta de tudo. Ficamos cansadas, exauridas, por vezes confusas. Mas devemos voltar, a cada dia, sem exceção, para o centro e para o início, que é, também, o fim e o prêmio: “Marta, Marta, tu te inquietas com muitas coisas”, nós nos deixamos tomar pela ansiedade das muitas funções, das muitas pessoas que se exige que nós sejamos, todas numa só. Mas “uma só coisa é necessária”, e é atentando para esta, antes e sobre todas as outras, que teremos a força e o apoio para ordená-las e dar conta delas. Buscar primeiro o único necessário, e todo o restante nos será dado por acréscimo, se tivermos confiança. A nossa carga pesada será, no fim das contas, um jugo leve e suave.

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