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Samia Marsili

Samia Marsili

Dia dos Pais

O descanso no espírito

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Pais precisam aprender a descansar, para o bem deles mesmos e de sua família. (Foto: Imagem criada utilizando Whisk e Grok/Gazeta do Povo)

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Ah, finalmente... — bate a porta do carro, agarra a bolsa e o casaco de qualquer jeito. Está acesa a luz de fora, lá dentro ouve-se um chorinho, mas também uns risos. O mais velho já está pronto com seu pijama de flanela, a do meio ainda com os cabelos molhados, a neném está embrulhada na toalha. – O papai chegou! – e aquele abraço é todo o sentido da sua vida. Não haveria por que se esforçar tanto, para levantar cedo e se pôr na estica, para suportar as agruras e as sem-razões de um trabalho um pouco louco ou de um chefe mesquinho, para cansar-se além da conta, além do que permitem a saúde e bom senso, não fosse a esposa amada e os filhinhos, não fossem as responsabilidades da família. É tudo para eles: Não é para si que os papais trabalham, é para o bem dos seus.

Isso é lindo, é maravilhoso, é um caminho de vida que engrandece e que eleva, é uma vocação que nos põe no caminho do amor e da vida eterna. Entretanto, como todo caminho, tem seus obstáculos, e como toda luta, tem suas derrotas. Minha reflexão hoje, neste Dia dos Pais, não será pintar com vocês, queridos pais, um quadro romântico, sobre a beleza do ideal, para emocioná-los e animá-los a persistir – não faltarão outras ocasiões para isso, e vocês com certeza verão hoje muitos vídeos e propagandas com conteúdo assim.

Quero hoje falar concretamente de uma dificuldade, a qual, pelo que chega ao meu conhecimento, já está bem longe de ser incomum. Há muitos pais extremamente cansados, sobrecarregados, deprimidos, com aqueles sintomas que, numa pesquisa rápida na internet, logo se veem listados abaixo do título “Burnout”. São muitos os papais que trabalham duro e tentam dar o seu melhor, mas têm sua psique e seu coração erodidos pelo peso e pela confusão do mundo contemporâneo, pelo excesso das mídias e pelas adversidades do mundo do trabalho atual. A energia se esgota não apenas porque se trabalha demais, mas porque se vive demais no futuro, nos medos, nos conflitos não resolvidos, nas cobranças sem fim. E, assim, rapidamente estão se atrapalhando naquilo mesmo que era o objetivo principal do projeto, o cuidado da família. Tornam-se pais irritados, distantes, maridos pouco atenciosos, fugindo, sem que eles mesmos entendam o porquê, das “conversas difíceis” ou dos momentos de intimidade. Pais, queridos pais – responsáveis e bravos papais! –, é preciso aprender a descansar. Descansar não é faltar com seus deveres, não é amar menos nem entregar-se menos: é a justa manutenção da sua própria permanência na saúde, da própria continuidade dos seus esforços.

Pelo bem das suas famílias, pelo cumprimento mesmo dos seus deveres como pais, é preciso livrar-se desse cansaço crônico, que é endêmico nos nossos dias. Quando não se descansa o suficiente, não é apenas o corpo que se ressente, mas a alma inteira se recolhe sob o peso do estresse, da ansiedade, da tristeza, do afobamento e de outros estados afetivos que culminam, todos, num mesmo esgotamento, numa mesma exaustão de viver. A causa mais profunda desse esgotamento não está, geralmente, no trabalho em si, mas no modo de viver. Muitos pais aplicam-se com esmero a suas tarefas, atendem prontamente às exigências da família, dos amigos, do trabalho e do mundo inteiro, mas permanecem negligentes consigo mesmos. Sabem cuidar dos outros, mas ignoram como cuidar de si. Ficam à mercê de suas tensões internas, como se não houvesse dentro delas um mundo a ser escutado. E o resultado, com o passar dos anos, é previsível: dores de cabeça recorrentes, insônia, problemas digestivos, hipertensão, desânimo, dificuldade de concentração, e, não raro, a depressão que aparece quando a alma, de tanto gritar e não ser ouvida, se cala de vez.

Descansar não é faltar com seus deveres, não é amar menos nem entregar-se menos: é a justa manutenção da sua própria permanência na saúde, da própria continuidade dos seus esforços

É comum (e compreensível) que procurem alívio imediato – quando não em expedientes de diversão e anestesiamento, como álcool e televisão, então junto a médicos e medicamentos. Mas a abordagem geralmente se restringe aos sintomas, e não à causa. A medicina pode atenuar as dores, mas não pode, por si só, restaurar o equilíbrio interior. E, se o esgotamento se prolonga, a vontade adoece. Tarefas banais tornam-se titânicas; obrigações se acumulam; ligações são adiadas; a simples organização do quarto e do guarda-roupa parece um Monte Everest intransponível. Até os pequenos prazeres se tornam insípidos: ouvir música, ler um bom livro, caminhar ao ar livre... tudo perde a cor, o sabor, ou fica difícil de aproveitar. Quando esse estado se instala, não se trata mais de mera preguiça ou falta de ânimo, mas de uma real paralisia da alma.

Outro sintoma do esgotamento é o embotamento afetivo: tudo o que é bom e belo parece distante, inacessível. As emoções positivas se retraem; as negativas, por outro lado, intensificam-se. Multiplicam-se as reações de impaciência, tristeza e irritação. Busca-se o isolamento como forma de autoproteção, mas o mal-estar persiste: o cansaço não nos abandona quando trocamos de ambiente, porque ele vem de dentro. Com o tempo, essa anestesia da sensibilidade desemboca numa espécie de apatia existencial. A pessoa já não encontra mais sentido no que faz, nem mesmo no que antes lhe dava gosto. É o prenúncio da depressão.

Se o cansaço é um veneno lento, o descanso é o seu antídoto natural. Não é apenas uma necessidade fisiológica, mas uma urgência da alma. Como a sede ou a fome, o descanso clama por ser atendido. Quando repousamos, não apenas eliminamos o desconforto físico, mas restauramos a inteireza interior.

Em muitos casos, descansar é simplesmente deixar de fazer aquilo que nos consome. Em outros, é necessário reencontrar atividades que promovem bem-estar: caminhar, pintar, tocar um instrumento, assistir a um jogo, praticar um esporte. Essas ações só são eficazes se, ao terminá-las, não nos deixam o amargo sabor da culpa ou do remorso. Por isso, nem todo prazer proporciona verdadeiro descanso. Só descansa aquilo que nos pacifica. A prevenção é sempre o melhor remédio. O segredo está no equilíbrio cotidiano entre tensão e alívio. É preciso cultivar o repouso como parte da rotina – e não apenas como exceção reservada aos feriados. Um pouco de silêncio, uma pausa ao meio-dia, uma leitura que inspire, uma conversa sem pressa. Pequenos intervalos que funcionam como frestas de luz na correria da vida.

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Muitos aprenderam desde cedo a trabalhar duro, a cumprir deveres, a não falhar. Mas não aprenderam a parar. Sentem culpa por descansar, como se repousar fosse sinônimo de fraqueza, preguiça ou egoísmo. Tornam-se escravos da própria autoexigência, como se a pausa os desautorizasse. Não percebem que descansar não é fugir do dever; é preparar-se para cumpri-lo melhor. Afinal, o descanso é também um dever. Tal como o sono, a higiene ou a alimentação, o repouso é parte integrante da vida bem vivida.

Descansar não é apenas interromper o movimento. É também – e talvez sobretudo – aprender a relaxar por dentro. Muitas pessoas, mesmo quando aparentemente em repouso, permanecem interiormente tensas, como se não soubessem soltar-se da expectativa, do controle, da responsabilidade excessiva. Seus músculos repousam, mas não se libertam; sua mente desacelera, mas não aquieta. Há nelas uma espécie de “tônus muscular” da alma, uma contração contínua que, mantida ao longo do tempo, produz um cansaço surdo, profundo e persistente – o tipo mais perigoso, porque se instala sem alarde e parece não ter origem clara.

E, ao falar do descanso, não podemos deixar de lado aquele que é o seu emblema por excelência: o sono. Passamos cerca de um terço da vida dormindo, e isso não é um desperdício: é uma necessidade estruturante. O sono restaura, organiza, cicatriza. Ajuda-nos a manter a sanidade e a inteireza. Está entrelaçado aos ritmos naturais do nosso corpo. Dormir na hora certa, por tempo suficiente e com regularidade é, pois, uma necessidade vital, não apenas corporal. Infelizmente, cada vez mais pessoas dormem mal. Ou melhor: vivem de modo tão tenso que já não sabem mais adormecer! Acumulam ansiedades ao longo do dia e, quando finalmente se deitam, não conseguem desligar-se. Sofrem da insônia chamada “de conciliação”, isto é, aquela dificuldade persistente em cruzar o umbral do sono. E, quando finalmente dormem, seu sono é leve, fragmentado, quebradiço. Despertam antes da hora, sem repouso verdadeiro.

Entre os fatores mais comuns de desgaste psíquico, talvez nenhum seja tão disseminado quanto a preocupação. Preocupar-se é viver no modo da tensão antecipada: sofrer por aquilo que ainda não aconteceu – e que talvez nem venha a acontecer. Diferente da ocupação, que implica ação e responsabilidade, a preocupação consome sem produzir. É composta de três elementos: o afeto negativo do medo, a repetição mental de ideias catastróficas, e um comportamento geralmente desorganizado e impulsivo. Paradoxalmente, a preocupação intensa pode levar justamente àquilo que se queria evitar. A mente tomada pela emoção age sem prudência, sem distância crítica. E quanto mais se tenta controlar tudo, mais se escapa o essencial. Em geral, preocupamo-nos mais com aquilo que nos é mais caro: a saúde, os filhos, o trabalho, o futuro. Mas é preciso compreender e aceitar que o controle absoluto do mundo exterior é uma ilusão. Não se trata de resignar-se, mas de aceitar aquilo que não depende de nós, para melhor agir sobre aquilo que de fato depende. E essa aceitação não tem nenhum parentesco com um conformismo, ao contrário: é a justa perspectiva para bem agir.

Muitos pais aplicam-se com esmero a suas tarefas, atendem prontamente às exigências da família, dos amigos, do trabalho e do mundo inteiro, mas permanecem negligentes consigo mesmos

Há outro tipo de cansaço que não se anuncia com alarde. Ele se infiltra lentamente, por meio da repetição silenciosa das coisas. É o cansaço das rotinas sem alma, dos ambientes sem variação, dos dias sem contraste. Mesmo quem se diz afeito ao conforto da previsibilidade – ao mesmo escritório, aos mesmos objetos, à mesma rotina – percebe, cedo ou tarde, um enfado surdo, uma perda de brilho, uma espécie de apatia estética que vai se instalando como poeira fina sobre os móveis da alma. É verdade que é possível, a todos nós, encontrar sentido na vida cotidiana, e viver do segredo e da presença que se oculta sob o trabalho de todos os dias, sobre as pequenas tarefas... Várias vezes, inclusive, já tratei desse tema aqui em meus artigos. Porém, também é verdade que, às vezes, esse pensamento pode estar mascarando uma inércia, uma covardia diante de uma necessidade premente de mudar. Queridos pais, só vocês podem avaliar a sua situação concreta e presente, mas levem isto em conta: às vezes devemos pedir a Deus que nos ajude a suportar um trabalho ruim, porque nossa família precisa dele; outras vezes, devemos pedir a Deus a coragem de colocarmos nossa dignidade perante situações abusivas, e confiar que ele nos encaminhará para uma melhor situação. Se for o caso, não tenha medo: envie currículos, fale com pessoas – e continue sendo honesto e amigo da verdade.

Também porque – e aqui toco em outro gatilho desse sofrimento contemporâneo – o erro de medida pode corromper a própria virtude. Ser responsável é uma virtude. Mas pode ser distorcida pelo excesso. O responsável demais torna-se refém de sua própria consciência. Carrega não apenas o que lhe compete, mas também aquilo que os outros não fazem, ou que imagina que só ele saberá fazer bem. Vive como se o mundo dependesse de sua atuação incansável. Essa “hiper-responsabilidade” muitas vezes tem raízes na insegurança ou no orgulho disfarçado. A pessoa pensa que deve dar conta de tudo, que precisa provar seu valor, que não pode jamais falhar. E, como realiza as tarefas com eficiência, logo se torna o depósito natural das incumbências alheias. Os outros confiam, delegam, sobrecarregam – e o “hiper-responsável”, incapaz de dizer “não”, afunda pouco a pouco sob o peso das próprias virtudes. O risco maior, nesse caso, é que o comprometimento pessoal passe a ser confundido com o próprio valor da pessoa, o que seria um grande erro. Quando isso acontece, qualquer falha é interpretada como uma falência do ser. A autoestima, então, se torna refém do desempenho, e o trabalho, em vez de ser uma forma de serviço e realização, converte-se num campo de batalha interior.

Há ainda outra forma de cansaço que não nasce necessariamente do excesso de tarefas, mas da desordem interior com que as enfrentamos. Uma hierarquia de valores mal construída transforma qualquer agenda em labirinto, qualquer dia em prova de resistência. A vida moderna, ao colocar tudo em pé de igualdade – um e-mail e um velório, um prazo e a sua saúde –, produz um tipo de estafa que não vem do fazer em si, mas da sensação constante de que tudo é urgente, tudo é importante, tudo depende de nós. Ter uma hierarquia clara – saber distinguir o essencial do acessório, o urgente do adiável, o possível do impossível – é como ter lastro em alto-mar: dá estabilidade nas tempestades. As forças humanas são limitadas. A juventude talvez disfarce esse limite com vigor, mas a maturidade obriga à sobriedade. Não se pode abarcar tudo. E se o essencial vai bem – se a família está em paz, se os princípios estão intactos, se o trabalho é feito com esmero –, o que falta pesa menos. Quem não aprende a dizer “não”, não apenas às novas tarefas, mas também aos padrões impossíveis de exigência, acabará por perder a si mesmo. E, paradoxalmente, deixará de cumprir até mesmo o que mais deseja realizar.

A vida moderna, ao colocar tudo em pé de igualdade – um e-mail e um velório, um prazo e a sua saúde –, produz um tipo de estafa que não vem do fazer em si, mas da sensação constante de que tudo é urgente

Para alcançar essa serenidade seletiva, nem sempre basta o esforço solitário. Muitas vezes carecemos de um olhar de fora, do juízo calmo de alguém que nos conheça bem e nos ajude a ver as coisas com mais perspectiva – bons amigos, profissionais de psicologia, nosso diretor espiritual. Quando estamos imersos no turbilhão, tudo parece urgente. A parede diante do nariz se torna o mundo inteiro. Por isso, conselhos de pessoas sensatas são mais que orientações: são pontos de apoio para sair da confusão interior.

Seja como for, papais: enquanto a plena maturidade espiritual não chega, é possível abrir caminhos, e mitigar esse estado de inquietação por meio de atitudes práticas: partilhar as angústias, rir um pouco de si mesmo, cultivar interesses, fazer coisas boas que tragam leveza. O essencial é não alimentar falsas soluções: não é fugindo para o álcool, as distrações vazias, a pornografia ou o cinismo que se encontra descanso. O que pacifica é a verdade.

Enfim, é preciso reaprender a descansar – não apenas nas férias, mas em toda a nossa vida. Descansar que não é inatividade, mas alternância, ritmo, verdadeira sabedoria. Cultivar espaços internos onde o dever não entre, onde seja possível lembrar-se de quem somos, e do verdadeiro lugar que o trabalho ocupa dentro do qual geral da nossa vida e da nossa vocação – dentro, inclusive, da sua vocação de pai de família. Assim cumprirão melhor a sua vocação, assim cumprirão verdadeiramente a sua vocação. Nada vale mais para o bem de uma família do que a presença viva do pai, ainda que passe muito tempo trabalhando. Cuide que seu trabalho não o destrua, não prive a sua família de um verdadeiro pai – que trabalha tão somente para eles, em nome de Deus, e para ninguém mais. Na posse desse espírito, poderão verdadeiramente descansar, ao fim de um dia exaustivo, no melhor lugar do mundo: nos olhos iluminados de um filho.

Feliz Dia dos Pais!

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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