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Educar… para quê?
| Foto: Bigstock

Ficou famosa a história daquele menino perdido, na Índia, que cresceu sem nenhum contato humano, e passou anos sendo criado pelos lobos no meio da mata — sobretudo porque a história foi romanceada nos livros de Rudyard Kipling e, mais tarde, na animação da Walt Disney Pictures. Acontece que, se na ficção, além do garoto, todos os animais falam, têm sentimentos humanos e conflitos morais, na história real é o menino que, assim como os animais de verdade, não é capaz de falar. E mais: anda de quatro e não gosta de comida cozida, mas prefere, imitando seus primeiros professores, morder a caça crua e se lambuzar de sangue. Será preciso um longo tempo até que, bem instruído, ele consiga abandonar seus hábitos arraigados de ferocidade, que o privam de desfrutar de tudo aquilo que é genuinamente humano, como as alegrias do amor e do intercâmbio intelectual, e conquiste, enfim, o seu lugar como um igual entre todos que vivem na aldeia. Esse exemplo basta para que se possa concluir: seria uma tolice afirmar que não é necessário nenhum tipo de educação, ou então, como reza a sentença do filósofo Rousseau que ficou popular, que “o homem nasce bom”, é “um bom selvagem” que “a sociedade humana corrompe”. Muito ao contrário.

Do mesmo modo que o menino lobo, os nossos filhos também precisam aprender de nós, ou com a nossa ajuda, como se comporta um ser humano e, acima de tudo, como desenvolver e fazer florescer aquelas qualidades e faculdades que são especificamente humanas, uma vez que o ser humano não é só mais um animal entre os outros. Ora, eu não conheço ninguém que negue a necessidade absoluta de algum tipo de educação, de uma condução das crianças para que, de criaturinhas que não falam, elas se tornem pessoas de verdade, e sejam capazes de viver, sozinhas e já sem a proteção dos pais, no mundo dos adultos, entre os pares. Mas esse consenso geral termina muito rapidamente, tão logo alguém se pergunte, tendo como dado que alguma educação é certamente necessária, qual seria essa educação. Quando ela deve começar? Quem deve conduzi-la, e de que modo? Qual o nível de sua interferência nos processos naturais, e com que métodos se deve fazer isso? Quais coisas devem ser ensinadas primeiro, ou só depois, ou nunca? E, mais importante, mas tantas vezes esquecido — e é bem isto que eu quero apontar aqui —, com que objetivo se faz o que se faz, isto é, qual é exatamente o ideal, o tipo de “pessoa de verdade” que se imagina e em que se almeja transformar os lobinhos?

Do mesmo modo que o menino lobo, os nossos filhos também precisam aprender de nós, ou com a nossa ajuda, como se comporta um ser humano

Esta é uma reflexão que, em meu trabalho, procuro sempre suscitar, porque ela é de fundamental importância. Não exatamente porque os pais e educadores em geral tenham para si um ideal ruim, uma idéia errada a respeito da educação, ou uma teoria falsa sobre a natureza humana e os valores que ela deve cultivar; não. Isso seria relativamente fácil de resolver, porque idéias erradas são corrigidas pelo diálogo, pela simples apresentação de argumentos melhores e por um bom raciocínio (se todos os envolvidos estiverem realmente interessados na melhor idéia, e não em manter a sua a qualquer custo). O que acontece, na verdade, é que a maioria das pessoas não tem claro para si um ideal de ser humano, e portanto de educação. Na maioria dos casos, vejo que isso se dá simplesmente porque ele não nos foi transmitido em nossa própria educação, e a cultura, de modo geral, não nos forneceu as imagens, os exemplos e os modelos suficientes para que ele se sedimentasse em nós. E, não tendo clara a questão, acabamos nos tornando vítimas de pessoas, e principalmente de instituições, que vão incutindo em nós, sem que nos demos conta, seus próprios ideais e valores a respeito. Sem que o percebamos, muitas das nossas ações e escolhas estão contribuindo para a conquista de objetivos com os quais, se os enxergássemos com clareza e os trouxéssemos à consciência, não concordaríamos. E isso porque os objetivos dessas instituições — e deixo para citá-las e tratar deste ponto mais de perto, quem sabe, numa próxima ocasião — não são que os nossos filhos sejam pessoas livres, sábias, nobres, que saibam amar e tenham reverência pelo divino. Não, as suas diretrizes estão mais para que populações inteiras troquem o amor pelo sexo animalesco, a família pelo prazer imediato, a sabedoria pela eficiência, a vida real por uma tela, e Deus pelo próprio ego.

E, apesar das múltiplas possibilidades de educação e dos tantos ideais possíveis que se pode ter como fim dela, eu nunca conheci alguém que quisesse, francamente, o pior para os seus filhos. Todos os pais que eu conheço querem sinceramente o melhor para eles; mas se, como eu disse, não tivermos consciente e claro o nosso ideal, e se não pautarmos nele cada uma das nossas ações e escolhas cotidianas (ou ao menos as julgarmos com base nele, quando falharmos), esse nosso impulso de “desejar o melhor para os nossos filhos” será como uma força cega, um cavalo sem condutor, a ser orientado por quem tenha algum objetivo. Dito de outo modo: Se, na frase, a palavra “melhor” não tiver um referente claro, se for uma caixinha vazia, alguém vai preenchê-la para nós. Por isso é imprescindível olhar para dentro dessa caixinha, isto é, meditar, sempre e de novo, sobre qual cremos ser a finalidade da vida humana e, assim, a que fim a educação dos nossos filhos deve conduzi-los. E, nessa contínua meditação, ir enriquecendo e aprofundando a nossa própria compreensão desse fim, com exemplos e testemunhos de pessoas do passado e do presente, gente de verdade e personagens da ficção. Afinal, se o que guia a educação das crianças é um ideal de perfeição humana, nós mesmos devemos desejar essa perfeição, e com base nela pautar, não somente as nossas atitudes enquanto pais e educadores, mas todas elas — também você e eu temos ainda muito de Mogli.

Não, as suas diretrizes estão mais para que populações inteiras troquem o amor pelo sexo animalesco, a família pelo prazer imediato, a sabedoria pela eficiência, a vida real por uma tela, e Deus pelo próprio ego

Vejamos, agora, um exemplo breve, e reflitamos muito rapidamente sobre uma atitude geral de alguns pais para com a educação dos seus filhos, dessas que são, sem dúvida nenhuma, motivadas pelo desejo intenso de “dar o melhor” para eles, mas cuja idéia de “melhor” talvez esteja um pouco confusa, e tenha sido invadida por concepções um tanto estrangeiras. Em meu último artigo, quando falávamos sobre o uso de telas e sobre as variadas motivações que levam os pais a adotá-lo, mencionei, como sendo uma delas, o desejo de proporcionar aos filhos a maior quantidade possível de estímulos, para que desenvolvam habilidades, aprendam coisas, aproveitem todos os “períodos críticos” do seu crescimento e não desperdicem nada de todo o potencial da sua neuroplasticidade. Meditemos com um pouco mais de atenção sobre esse anseio.

Não convém tanto embarcar, agora, numa análise dos estudos científicos, que, adianto a vocês, nem sempre confirmam essas teorias. Mas nós podemos assumir, provisoriamente, que de fato exista, da maneira como hoje se apregoa, toda essa coisa de períodos críticos do desenvolvimento cerebral, que favorecem excepcionalmente as sinaptogêneses, quer dizer, que contribuem para a formação de conexões cerebrais perfeitas, que jamais serão esquecidas. O que isso passa a significar, em outras palavras (mais especificamente, nas palavras do anúncio do colégio, e outras propagandas)? Ora, que não se pode perder tempo. Que é preciso fornecer às crianças, nesses primeiros anos, o máximo de estímulos possível, para que essa época fértil da sua absorção de informações, habilidades e conteúdos, que não vai voltar, não seja desperdiçada. Os pais encantados por essa conversa, como querem o melhor para os seus filhos, movem-se prontamente a fazer até sacrifícios para que as crianças consigam dar conta de tudo. Em primeiro lugar, a melhor escola, que seja a mais atualizada, que já tenha ensino forte de inglês, e quem sabe mais uma língua estrangeira, e também de robótica, e cujo uso de materiais multimídia e tablets seja a regra. E, se houver expediente extracurricular, como mais habilidades a aprender, como um instrumento musical, o melhor é garantir a vaga. Fora da escola, mais aula de língua — e andam dizendo hoje dia que o melhor para a criança é logo aprender latim! —, e talvez seja bom reforçar a matemática no Kumon, fora o judô, a natação, o ballet, e também ir ao teatro, e fazer a viagem, conhecer, experimentar, esquiar! E em casa o uso de telas, as horas jogando, os mil e um aplicativos que “fazem bem” ao cérebro... Muito bem, mas paremos um instante. Para que tudo isso mesmo? Para que a criança, ao crescer, tenha como que instaladas em seu cérebro, da melhor maneira possível, o maior número de destrezas e habilidades e, como um computador de última geração, seja maximamente funcional. Não se perde uma oportunidade sequer, e mesmo os jogos e passeios são aproveitados como algo educativo, até que, enfim, eis! Uma super-criança, um super-homem! — que pode até ser um pouco sofisticado e cool. Foi uma infância corrida, cheia de leva-e-traz, não passamos muito tempo juntos, não houve muito ócio e muitos momentos descontraídos, mas, vá lá... é preciso fazer sacrifícios, afinal. Não lhes vai faltar emprego nunca!

Desculpe perguntar, mas... é de fato este o “melhor” que queríamos para os nossos filhos? Emprego garantido? Será que era essa formação do profissional do futuro o que pretendíamos fazer quando formamos nossa família, ou acabamos sendo pressionados, e até angustiados, pelo bombardeio da propaganda? Talvez tenhamos sido ludibriados, e estejamos, como no conto, chocando no nosso ninho, sob a casca da palavra “melhor”, o ovo de outra ave. Porque essa educação para a funcionalidade, para o alto desempenho e para o “sucesso” é muito pobre na perspectiva de tudo aquilo que a natureza humana é capaz, e é um ideal muito medíocre. Um menino lobo que passe a caçar com armas, e não só com as mãos e os dentes, ainda não é um homem, é só um super-lobo.

Talvez tenhamos sido ludibriados, e estejamos, como no conto, chocando no nosso ninho, sob a casca da palavra “melhor”, o ovo de outra ave

E reduzir a educação tão-somente à aquisição de informações e de habilidades, para que se tenha sucesso profissional e social, não é somente uma perda, como se avançássemos até metade do caminho, e ficássemos sem conhecer o resto. Quando se persegue na educação um ideal que é inferior ao que merece o ser humano, desconsiderando a sua dignidade espiritual e a sua grandeza, mais que uma redução acontece uma subversão: não é meio caminho, é o caminho errado, e para o lugar errado. Quero dizer com isso que, embora, na maior parte dos casos, não haja nada de intrinsecamente mau no aprendizado de tal ou qual habilidade, e no treino deste ou daquele jogo, é mesmo verdade que não se pode perder tempo; não correndo com pressa, mas desperdiçando o valioso e maravilhoso tempo da infância com essas ninharias.

Tem um valor incalculavelmente maior, e dura para além desta vida, criar nossas crianças para que sejam alguém, primeiro, antes e independentemente de que sejam mais ou menos eficientes; que sejam verdadeiramente livres, capazes de dominar seus impulsos mais baixos com vistas àquilo que vale mais, de amar verdadeiramente o próximo, e não somente a própria satisfação e o próprio prazer. Como disse o filósofo Platão, a educação consiste propriamente em ensinar as crianças a desejar o desejável, a querer por si aquilo que é melhor. Por isso digo que o verdadeiro desenvolvimento não é, em primeiro lugar, o das destrezas, físicas ou mentais, mas, por meio delas, o desenvolvimento das motivações interiores. E por isso salientei, e repito, que a atividade própria da criança é o brincar, o tranqüilo e descompromissado ato de brincar. Na brincadeira, elas aprendem a narrar as suas experiências, e põem à prova aquilo que vinham absorvendo do mundo: as situações, os sentimentos, as relações de causa e efeito, etc. É brincando que a criança processa e integra todas aquelas formas que seu olhar, naturalmente maravilhado e curioso, colheu de fora, e é assim que começam a construir, nos rudimentos, a sua identidade biográfica, a sua personalidade.

É preciso, portanto, que haja esse tempo para brincar, e que o dia-a-dia dos pequenos seja entremeado por salutares períodos de ócio, que às vezes, ao olhar desatento, se parecem com nada, parecem tempo perdido. Não, não é tempo perdido: é o tempo que as sementes, escondidas na terra, precisam para crescer, em que nós não as vemos, apenas confiamos. É o tempo de “digestão” da imaginação, em que todos os estímulos são integrados e passam a realmente significar alguma coisa, passam a verdadeiramente fazer parte da pessoa — e não apenas do profissional do futuro. E o principal, nessa grande aventura da escalada da razão, não é outra coisa senão a relação com o adulto, com aquele que a educa e a ama, aquele que a conduz. Não importa tanto a quantidade de estímulos e de informações, mas a relação afetiva, profunda e estável, entre o educador e a criança, porque é através desse vínculo que ela vai enxergar o mundo, e é por meio dele que vai interpretá-lo e articular um mundo semelhante dentro de si.

Nós nos preocupamos e inquietamos com muitas coisas, quando apenas uma é necessária. Não se aflija tanto com o fato de as coisas serem caras, longe, difíceis; não se descabele tanto, indo buscar fora — fora de casa e fora de si — as coisas de que seu filho precisa, o que é necessário para melhor educá-lo, da melhor maneira possível... A única coisa de que o seu lobinho realmente precisa é de você.

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