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Muitas vezes, quando queremos dizer que uma coisa foi sempre como é, dizemos que “é assim desde que me entendo por gente”. Mas, falando a rigor, desde quando nos entendemos por gente? Por certo temos memórias longínquas, fragmentos de imagens e recordações a partir, mais ou menos, dos 2 anos. Mas entender-se por gente mesmo, assim, com consciência de causa, de autoria, de racionalidade. Isso se dá por volta dos 6 ou 7 anos, num despertar muito maravilhoso e impressionante de observar, à entrada no qual damos o nome, já consagrado, de “idade da razão”. Muitas vezes mencionada, raras vezes compreendida em profundidade, a chamada idade da razão é um marco silencioso na vida da criança – tão discreto quanto determinante. Com a chegada desse momento, muda também a conduta que devemos adotar com os filhos, e compreender essa transição é fundamental para qualquer projeto educativo sério. Mas o que, afinal, significa alcançar a idade da razão?
Este tema, embora talvez não pareça à primeira vista, tem relação com outro tema de estudo, a ética das virtudes. Tem a ver com a virtude da prudência. Embora seja com frequência considerada a última das virtudes cardeais, a prudência é, paradoxalmente, aquela que ilumina todas as demais: ela orienta a fortaleza, a temperança e a justiça; e, ao mesmo tempo, depende delas para se fortalecer. A prudência, diz-se, é a virtude que nos permite agir conforme a reta razão – ou seja, conforme uma consciência bem formada. E agir segundo a reta razão é exatamente isso: atuar de maneira coerente com o que a realidade nos revela como verdadeiro bem, com o que é de fato o melhor para nós.
Ora, essa definição já nos introduz numa dimensão importante: a da formação da consciência. E aqui entra, naturalmente, a formação da criança. Para que ela possa agir com liberdade e retidão, precisa primeiro reconhecer o que é bom. Precisa enxergá-lo. Mas, para enxergar bem, não basta ter olhos: é preciso que haja luz. A consciência deve refletir a verdade das coisas – e é essa, precisamente, a função da prudência. Agir bem, portanto, pressupõe conhecer a realidade com lucidez e dispor-se interiormente ao esforço necessário para escolher o bem.
E, no entanto, quem nunca se viu repetindo à criança pequenas lições de bom senso que parecem não surtir efeito? “Filho, isso faz mal.” “Minha filha, não é hora de comer doces.” A criança ouve, mas não compreende. Ou compreende, mas não se move. E essa resistência não é má vontade: é simplesmente limitação. Porque, antes da idade da razão, a criança não está ainda plenamente equipada com as ferramentas intelectuais e volitivas necessárias para compreender a realidade com profundidade, nem para se dirigir com firmeza ao bem. Ela vive mais guiada por seus afetos e impulsos primários do que por uma consciência desperta e formada.
Muitas vezes mencionada, raras vezes compreendida em profundidade, a chamada idade da razão é um marco silencioso na vida da criança – tão discreto quanto determinante
Mas reparemos bem, com franqueza: não é este também o drama de tantos de nós, adultos? Quantas vezes percebemos o bem, aprovamos o bem – mas não o fazemos? Assim iniciei meu último artigo. Quantas vezes temos olhos, mas não luz? Consciência moral e força de vontade são realidades complementares e inseparáveis. Uma vontade enfraquecida afeta a clareza da consciência, tornando nebulosa a percepção do que é verdadeiramente bom, e, mesmo quando o bem é percebido com clareza, se falta força de vontade, falta a energia interior necessária para concretizá-lo.
No caso da criança, a limitação é natural. Ela ainda não possui a razão plenamente desenvolvida, nem uma vontade robusta. Por isso, cabe aos pais o duplo papel de intérpretes da realidade e de vontade auxiliar. Somos nós que, percebendo com maturidade o que é bom, vamos guiando a criança – não com imposições arbitrárias, mas com firmeza amorosa, ajudando-a a formar hábitos que a preparem para, um dia, escolher o bem por si mesma. A virtude, afinal, se constrói por repetição: é na prática insistente de bons atos que a criança se fortalece para decidir bem no futuro. Isso significa ler o mundo por e para o filho – mostrando o que é bom, ensinando a julgar o que convém ou não convém, e ajudando a executar o que foi julgado como certo. Mas isso não se resume a dar ordens ou impor limites; trata-se de formar um olhar. Educar é ensinar a ver.
Tomemos um exemplo simples, mas icônico: o chocolate. A criança quer comer todo o chocolate da Páscoa num só dia. Se ela não tem ainda a capacidade de antecipar as consequências desse gesto – o mal-estar físico, o egoísmo de não dividir, o prejuízo de não aproveitar em outros momentos –, os pais devem ser essa consciência por ela. “Hoje não, meu filho. Depois do almoço. Só um pedaço.” Aos poucos, o pequeno vai aprendendo, por meio de regras externas, a estrutura interna da ordem.
É claro que ele protestará. Todo o seu ser vai se rebelar contra a limitação. Vai chorar, reclamar, espernear. Isso é esperado, porque ele ainda não chegou à idade da razão, e o que o move são os apetites mais imediatos. Mas esse choro, essa frustração, não são tragédias: são oportunidades pedagógicas. A “birra” é, muitas vezes, a explosão de uma vontade imatura diante da frustração. Se abandonarmos a criança à sua própria confusão interior, esperando que “ela resolva sozinha”, correremos o risco de deixá-la num estado de angústia crescente. A criança precisa ser conduzida para fora do labirinto de seus sentidos. É o adulto quem deve iluminar o caminho – com firmeza, com serenidade, com paciência. Cada negativa firme, cada contenção, cada pequena renúncia ensinada desde cedo, é um tijolo a mais na construção de uma vontade forte. Vontade que, quando a razão finalmente desabrochar, será capaz de reconhecer o bem e, com liberdade, buscá-lo. Esse momento do desabrochar é justamente o que se chama de idade da razão. Um ponto misterioso, que não se marca no calendário, mas se percebe no olhar da criança quando ela começa a compreender as consequências de seus atos, a ligar causa e efeito, a reconhecer que há caminhos melhores do que outros... e que é preciso, muitas vezes, sacrificar o imediato pelo duradouro. Nessa hora, começa-se a formar com ela, e não mais apenas por ela, a sua própria consciência moral.
Mas para que essa consciência, ao desabrochar, encontre solo fértil, ela precisa ter sido preparada. Precisa de uma vontade já minimamente educada, de hábitos já minimamente adquiridos, de exemplos já testemunhados com frequência. A infância, portanto, é o tempo por excelência da formação da vontade. E essa formação depende da autoridade segura e amorosa dos pais – os únicos que, de fato, sabem o que é melhor para seus filhos, e os únicos que têm a missão de conduzi-los, passo a passo, em direção ao verdadeiro bem. Muito em suma, a idade da razão não é o ponto de partida da educação moral, mas o seu primeiro florescimento. O trabalho silencioso, cotidiano e perseverante da infância é a semeadura de uma consciência que só mais tarde poderá germinar. O que os pais plantam com paciência e coragem, os filhos, um dia, colherão em liberdade.
É um erro comum imaginar que, ao alcançar a chamada “idade da razão”, a criança de repente passará a perceber o bem e agir em conformidade com ela; como se bastasse que a razão desabrochasse para que tudo se ordenasse. Mas a realidade é bem mais sutil, e bem mais exigente. A idade da razão não inaugura um automatismo moral. Pelo contrário, ela marca o início de um processo lento, paciente e assistido, que requer o afinamento progressivo da consciência e a consolidação de uma vontade robusta. É isso que está em jogo: uma harmonia entre inteligência, vontade e afetos – e tal harmonia não nasce espontaneamente; é forjada aos poucos, com ajuda constante.
Infelizmente, muitos pais alimentam uma esperança fantasiosa de que, ao crescer, o filho “verá sozinho” a necessidade de estudar, ajudar em casa, agir com responsabilidade. Mas isso é um engano. Sem formação prévia, sem experiência assistida da realidade, sem exercícios repetidos de vontade, a criança que cresce será um adolescente ainda mais inábil em perceber o que é bom e, pior, impotente para realizá-lo. O tempo, por si só, não educa. Se fosse assim, bastaria esperar. Mas o tempo apenas oferece ocasiões; quem educa é a presença, a palavra, a firmeza e o exemplo dos pais. É por isso que tantos conflitos surgem entre pais e filhos: os pais enxergam com clareza que determinada atitude seria boa, mas o filho resiste, chora, esperneia, age contrariamente. Não se trata de rebeldia intencional, mas de uma deficiência natural de percepção: seus sentidos falam mais alto, e os afetos desordenados comandam a ação. O papel do educador, então, é ajudar a criança a se “conformar”, a se amoldar à verdade percebida. Trata-se de incentivar a conduzir o esforço. Trata-se, como falamos no início, de orientar para a prudência.
A prudência é o princípio ordenador da ação moral. É ela que nos permite colocar os meios adequados para alcançar um fim bom. Mas cuidado: nem todo uso dos meios é prudência verdadeira. Há duas formas de prudência deformada que precisamos distinguir. A primeira é a “prudência sensível”: aquela que busca, com engenhosidade, alcançar apenas prazeres imediatos. A criança que deseja um brinquedo e empurra o colega para pegá-lo está sendo “prudente” neste sentido distorcido: ela identificou um fim (o prazer de brincar) e colocou meios para alcançá-lo (a agressão). Mas a verdadeira prudência exige mais: ela pede o juízo sobre a hierarquia dos bens e a consideração dos outros. A segunda deformação é a astúcia: a aplicação da inteligência prática para alcançar fins ruins. A criança que esconde uma travessura ou manipula a situação para obter vantagem está agindo com astúcia, não com prudência. A diferença é sutil, mas essencial. Por isso, educar nossos filhos para a prudência verdadeira é educá-los para a percepção fina do bem, e para a decisão firme por ele – mesmo quando os sentidos puxam em outra direção.
Ensinar uma criança a julgar corretamente, a interpretar os fatos com clareza e a decidir com retidão é, em última análise, ensiná-la a viver. E não há outro modo de fazê-lo a não ser com presença, paciência e confiança
Mas, como ninguém dá o que não tem, esse processo educativo exige dos pais a mesma prudência que desejam formar. Porque, muitas vezes, o erro da criança não está apenas no que ela faz, mas no que ela ainda não consegue ver. Assim, corrigir sem compreender é tão nocivo quanto não corrigir. Por isso, educar é também acolher a limitação, e responder a ela com paciência e firmeza. Muitas birras são fruto de um aprendizado em curso; não de má intenção, mas de incapacidade de enxergar o todo. E não podemos esquecer que a percepção da realidade não é uma tarefa simples nem mesmo para os adultos. Quantas vezes casais discutem porque percebem um mesmo fato de maneira oposta? Quantas vezes irmãos entram em conflito por interpretações distintas do mesmo acontecimento? Se nem nós, adultos, conseguimos interpretar o real com clareza constante, que dirá nossos filhos?
Por isso é tão perigoso o conselho, às vezes bem-intencionado, de “deixar as crianças se resolverem”. Ora, elas não têm ainda os instrumentos necessários para fazer justiça por si mesmas. Falta-lhes memória, reflexão, capacidade de abstração e senso de proporção. A mediação dos pais é necessária, não como interferência autoritária, mas como auxílio indispensável à formação do juízo. Mais que isso: para julgar bem, é preciso aprender a ouvir. A prudência requer docilidade ao conselho. E essa abertura só se dá num ambiente de confiança. Por isso, a relação entre pais e filhos precisa ser profundamente enraizada em confiança mútua. A criança precisa confiar no critério do pai e da mãe, para poder se deixar guiar. Quando isso acontece, começa a se formar, aos poucos, a verdadeira liberdade: não a liberdade de escolher qualquer coisa, mas a liberdade de escolher o bem, com lucidez e decisão.
Essa habilidade, tão humana, tão prática, tão moral, precisa começar a ser formada na infância. A confusão, hoje, vem também de uma pedagogia desorientada, que confunde liberdade com abandono. Alguns discursos contemporâneos – embora bem-intencionados – insistem em deixar as crianças “decidirem”, “seguirem seus próprios caminhos”, mesmo antes de terem critérios para isso. Deseja-se educar na liberdade, mas esquece-se de que só é verdadeiramente livre quem tem consciência formada. Respeitar a liberdade de uma criança não significa deixá-la entregue às suas paixões ou aos seus impulsos: significa conduzi-la com paciência até que ela seja capaz de conduzir-se por si mesma. “Minha filha de 2 anos e meio pode escolher sua roupa?”, perguntam-me alguns pais. Sim – desde que a escolha esteja orientada. A criança não está exercendo liberdade por escolher entre um vestido de festa e um pijama; mas por aprender, com a ajuda dos pais, que para cada ocasião há uma forma adequada de se apresentar. Vestir-se é um ato moral e cultural, não apenas estético. Quando o pai ou a mãe diz: “Vamos escolher juntos um vestido bonito para a festa, porque queremos honrar o aniversariante”, está ensinando à filha não apenas a se vestir, mas a pensar nos outros, a considerar o sentido de cada ocasião. O mesmo vale para outras escolhas cotidianas: ir à escola exige uniforme; participar de uma cerimônia exige compostura. Há normas gerais de conduta que, uma vez internalizadas, vão formando o senso moral da criança, sua consciência e sua hierarquia de valores. E, como já dissemos, liberdade verdadeira não é fazer o que se quer, mas querer o que é bom.
E isto é um fato: se não formarmos nossos filhos para a prudência, ninguém o fará. A sociedade os formará para outra coisa: por meio das redes, dos influenciadores, dos modelos falsos de sucesso e prazer, tornar-se-ão adultos guiados apenas pelos sentidos, sem capacidade de refletir, julgar e decidir com segurança. E isso também é falta de prudência: agir por impulso, por medo ou por inércia. Uma das tarefas mais delicadas e mais fundamentais da vida familiar é a formação do juízo moral. Ensinar uma criança a julgar corretamente, a interpretar os fatos com clareza e a decidir com retidão é, em última análise, ensiná-la a viver. E não há outro modo de fazê-lo a não ser com presença, paciência e confiança. E a confiança, aqui, é a chave. Ninguém se forma bem sem confiar em quem o guia. E essa confiança, que começa na infância e amadurece na adolescência, só nasce quando o filho percebe que os pais realmente se interessam por sua formação. Não se trata apenas de gostar do filho, mas de se comprometer com o seu bem, mesmo quando isso significa contrariá-lo, dizer não, apontar caminhos mais difíceis. Quando a criança ou o jovem percebe que há um amor firme por trás das exigências – e não apenas desejo de controle –, ela abre seu espírito à escuta. E é nessa escuta que se aprende a pensar. Por isso, tentar explicar longamente a realidade a uma criança que ainda não chegou à idade da razão pode ser um esforço vão. A linguagem moral precisa de um solo fértil para frutificar: a razão desperta, a vontade minimamente treinada, os afetos orientados. Antes disso, o que se exige dos pais é clareza, firmeza e afeto: dizer com amor o que se deve ou não fazer, sem esperar que a criança compreenda tudo. A obediência, nesse tempo, prepara a liberdade que virá.
Às vezes, nossos filhos só querem uma coisa: a confirmação do bem que já entenderam. Quando se sentem contrariados por ver alguém agindo mal – o colega que bate, que mente, que grita –, não desejam vingança nem justiça farisaica. Desejam que o educador confirme que o bem é o bem. Esperam ouvir, da boca de quem respeitam, uma frase simples: “Você está certo. Aqui não se mente. Aqui não se bate”. Essa simples frase, se dita com convicção e serenidade, pode bastar para restituir a ordem emocional e moral. Essas frases – que podemos chamar de “frases guia” – são ferramentas preciosas na formação da razão. Com elas, damos forma ao pensamento dos nossos filhos, ajudamos a modelar seus critérios, consolidamos valores. Elas não precisam ser complexas nem prolixas. Precisam ser verdadeiras, coerentes e reiteradas – como sementes lançadas ao solo, que frutificarão a seu tempo.
A formação da consciência e da prudência não tem fim. Ao longo da vida, continuaremos errando, revendo nossos julgamentos, retomando decisões mal tomadas. E isso é parte do processo. Educar bem é também saber dizer: “Tudo bem, você errou, vamos voltar atrás”. E dizer isso sem drama, sem escândalo, sem colocar o erro no centro da identidade do filho. Se somos pais que nos exaltamos diante do erro, que punimos com desmedida ou nos deixamos impressionar pelo tropeço, nossos filhos aprenderão a esconder os fracassos – e não a corrigi-los.
A maturidade não se alcança sem erro, nem sem perdão. E a emergência da razão é um momento riquíssimo, importantíssimo na caminha dos nossos filhos, em que precisam ouvir nossas orientações claras, mas também sentir que estamos com eles, que somos sua segurança. Eles precisam ouvir de nós: “Você vai conseguir. Eu estou com você. Vamos continuar juntos”. Essa não é uma fórmula de autoajuda, nem um palavrório motivacional; é uma profissão de fé na humanidade do outro, é a manifestação mais concreta do amor educativo: não exigir infalibilidade, mas sustentar, com carinho e firmeza, o caminho do crescimento.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




